Conta a história que a importante missão de fechar suas portas sempre que a paz reinava foi atribuída ao templo dele. Como se a calmaria pudesse ser capturada e seu povo deixasse de sofrer com os horrores das guerras. E, não à toa, a arquitetura desse templo foi construída de um jeito peculiar. Com duas portas, uma em cada extremidade, era impossível para um ser humano comum vigiá-las ao mesmo tempo. Mas não para ele, uma divindade com duas faces, capaz de observar tudo ao seu redor. Símbolo dos términos e dos começos, do passado e do futuro, Jano, deus da mitologia romana, ainda inspirou o nome do primeiro mês do ano – janeiro, justamente o período em que nos despedimos daquilo que já foi e damos boas-vindas ao que virá.
Sacudido pelo novo coronavírus, o mundo vive o dualismo de Jano, cheio de ambivalências, transições e aprendizados. A seguir, navegando por esses polos, HSM Management destaca dez lições que são também tendências para o mundo pós-pandemia. Temas que já estamparam nossas páginas e que voltam em um novo contexto, ajudando a desenhar o futuro próximo que nos aguarda.
## __01. Ambidestria Organizacional__
Segundo a teoria de Charles A. O’Reilly III e Michael L. Tushman, Jano e as lideranças empresariais têm muito em comum. “Executivos de empresas […] também devem olhar constantemente para trás, atendendo aos produtos e aos processos do passado, enquanto também olham para frente, preparando-se para as inovações que definirão o futuro”, é o que diz a introdução do artigo “A organização ambidestra”, publicado por O’Reilly e Tushman em abril de 2004 na revista Harvard Business Review. O conceito nunca foi tão atual.
A crise provocada pela pandemia de Covid-19 chegou com força a todas as esferas da sociedade, atingindo em cheio o mundo corporativo. E, em tempos de incerteza, a prática da ambidestria organizacional se mostra um aprendizado valioso e bastante aplicável: enquanto olham no retrovisor e buscam trazer para o presente mais eficiência e produtividade, muitas empresas continuam de olho no para-brisa, inovando e preparando seus negócios para o momento da retomada.
### __CASO PRÁTICO__
Há anos a Unilever, gigante de bens de consumo e dona de marcas como Omo, Dove e Hellmann’s, vem estudando como operar também no mercado de serviços. Em 2016, a multinacional comprou a startup Dollar Shave Club, clube de assinaturas de lâminas de barbear e outros produtos masculinos, fazendo frente à estratégia que sua concorrente direta, Procter & Gamble, havia adotado com a marca Gillete.
Nessa mesma direção, a Unilever anunciou, em plena pandemia, o lançamento das lavanderias com a marca Omo no Brasil. “Cerca de 70% dos imóveis lançados nos últimos dois anos são compostos por apartamentos de até dois quartos e cerca de 50 metros quadrados. Isso quer dizer que não há espaço sobrando para a lavanderia dentro dos apartamentos. O hábito de lavar roupas está mudando”, afirmou o vice-presidente de marketing da Unilever Brasil, Eduardo Campanella, ao Estadão Conteúdo.
Além de adquirir o Grupo Acerte, dono da rede de lavanderias Quality, a multinacional também vai operar um novo modelo de negócios instalado em condomínios residenciais. “As lavanderias compartilhadas com a marca Omo fazem parte da estratégia da Unilever de se preparar para o futuro. Não se trata apenas de vender sabão em pó. Se ficarmos só nisso, dificilmente vamos manter a liderança do mercado”, complementou Campanella, sintetizando, em poucas palavras, a prática da ambidestria organizacional.
## __02. Onipresença das marcas__
Estar onde o consumidor está, princípio básico da definição do termo omnichannel, já era um desafio para as marcas mesmo pré-pandemia. Isso porque, diferente de um projeto com começo, meio e fim, ser omnichannel exige que as empresas se mantenham em movimento, acompanhando preferências e mudanças de comportamento de seus consumidores. Nesse sentido, quem colocava muita ênfase no presencial, na experiência da loja física, teve enorme dificuldade de continuar o diálogo em outras plataformas com a chegada da quarentena.
“Empresas que se estabelecem e dependem apenas do presencial vivenciaram uma enorme dificuldade de continuar suas interações e resultados em outros canais e plataformas. Os gestores de marca precisam eliminar o limite do on/off porque, para o consumidor, esse limite já não existe há muito tempo”, analisa Viviani Tacila, fundadora da Bistrô Estratégia, consultoria com foco em varejo.
Para quem já tinha feito a lição de casa, o ajuste de rota na pandemia foi rápido. “O Carrefour, por exemplo, que antes estava apenas no Rappi, ampliou seu contrato para o aplicativo de compras pelo app Cornershop. Já a Hyundai investiu em lojas nos canais sociais, enquanto a Americanas.com inaugurou sua plataforma de vendas no live streaming, modalidade que cresceu muito por misturar transmissão de conteúdo e venda ao vivo”, complementa Tacila.
No Brasil, de acordo com o índice MasterCard SpendingPulse, as vendas pelo e-commerce cresceram 75% em maio. Isso mostra que, apesar do fechamento temporário das lojas físicas, o consumidor continuou suas jornadas de compras por meio das plataformas digitais, e quem não se adaptou perdeu negócio. Preparar a empresa para estar onde o consumidor está, além de reduzir a dependência de certos canais e diluir riscos, é, portanto, uma relevante estratégia para garantir um fluxo contínio de conversão, mesmo em situações adversas.
E-commerce: aumento de demanda
Segundo o relatório “How will Covid-19 change the consumer?”, que ouviu mais de 3 mil pessoas em 15 países, incluindo o Brasil, a demanda pelo comércio eletrônico aumentou e continuará aumentando. Esses dados reforçam os aprendizados sobre a onipresença das marcas e a transformação digital.
– 1 em cada 5 de quem ordenou sua última compra de supermercado online o fez pela primeira vez
– Para consumidores com mais de 56 anos, o número foi 1 *em cada 3*
– Proporção atual de compras feitas online 32%
– Novos usuários esperam aumentar a proporção de compras feitas online em 10%
## __03. Transformação digital__
Para muitas empresas que ainda não haviam priorizado a transformação digital em suas estratégias de negócios, a pandemia caiu como uma bomba. Segundo Claudia Muchaluat, head de desenvolvimento estratégico de negócios na IBM Consulting, o tema, que já tinha relevância no mundo pré-Covid, agora virou condição de sobrevivência. “Os desafios trazidos pelo novo coronavírus aceleraram essa transformação como elemento fundamental para que as empresas possam sobreviver, exigindo adaptação e preparo para participarem das oportunidades que surgirão no cenário pós-pandemia”, escreveu Muchaluat em um texto publicado em maio no site da HSM Management.
Segundo o IDC, US$ 7,4 trilhões serão investidos mundialmente na transformação digital até 2023. Por sua vez, dados da McKinsey apontam que 70% dos programas de transformação ainda falham. Portanto, para aproveitar esse empurrãozinho dado pela crise e saírem fortalecidas no pós-pandemia, as empresas precisam criar modelos sustentáveis de transformação. Para tal, a recomendação de Muchaluat é focar em três grandes pilares:
– __1. Experiência do cliente:__ é fundamental repensar todo o negócio com foco no cliente, para oferecer uma experiência diferenciada, que seja personalizada, intuitiva e consistente inclusive no omnichannel.
– __2. Excelência operacional:__ deve-se redesenhar as cadeias de valor usando ferramentas digitais e soluções cognitivas e, assim, garantir níveis de serviço com escalabilidade e processos autossustentáveis dentro da organização.
– __3. Expansão do ecossistema:__ para gerar inovação contínua, a dica é criar um ecossistema escalável com vantagem competitiva e monetização a partir do ganho de escala.
04 – Participação das empresas na vida pública
Já estávamos vivendo um aumento do entendimento sobre a importância do envolvimento das empresas com a sociedade, mas isso foi muito acelerado com a pandemia. Uma organização não pode atravessar um momento como este sem tomar iniciativas para beneficiar seus colaboradores e a comunidade como um todo.
Estamos passando por um período em que é necessário cuidar da saúde e da economia, e uma das marcas profundas que apareceram na sociedade é que ficou escancarada a desigualdade social. Por isso, em um primeiro momento, as famílias fizeram doações de cestas básicas. Sempre ensinamos a pescar, mas esse foi um período de fome, fazendo-se necessário acudir rapidamente as pessoas.
Também houve uma mobilização em torno das micro e pequenas empresas, as maiores geradoras de emprego no País e as mais afetadas pela pandemia. O Magazine Luiza rapidamente organizou a entrada de pequenas, micro e até empresas individuais em sua plataforma de marketplace, pois muitas delas não possuíam venda online, e possibilitou que continuassem com seu rendimento. Da mesma forma, diversas grandes empresas realizaram ações para seus fornecedores e pequenos parceiros.
Acredito em uma profunda transformação da sociedade após esta pandemia para que possamos sair dessa crise como pessoas melhores do que quando entramos. As pessoas passam, mas as empresas e sua geração de empregos permanecem. Pessoas passam, mas seu legado de contribuição para a sociedade e o Brasil permanece.
Luiza Helena Trajano – Presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza
## __05 – Liderança consciente__
“A imagem do chefe morreu”, disse Daniel Castanho, sócio-fundador e presidente do conselho da Ânima, para HSM Management, em uma pauta sobre o mundo pós-pandemia, na edição passada. Castanho trouxe o arquétipo do mestre, que remonta à Grécia Antiga, para ilustrar o tipo de liderança que o mundo pede nos dias atuais: alguém que, como um professor, ilumina o caminho e ensina seus alunos a não temerem o erro. Uma relação que, como qualquer outra, precisa de confiança para funcionar bem.
Confiança essa que parece ter faltado a muitos líderes (ou seriam chefes?) que, na marra, tiveram de aprender como gerenciar seus times remotamente. O que se viu, em muitos casos, foi uma enxurrada de práticas que já deveriam ter sido enterradas no século passado, como o microgerenciamento e o excesso de reuniões improdutivas. Travestidas de alinhamentos, essas rotinas atendem a um único objetivo: controlar o trabalho das pessoas.
“Olhar para os resultados é parte da função do líder. Mas o que o conceito de liderança consciente defende é que isso não pode ser a qualquer custo. O cuidado com as pessoas e a responsabilidade em relação aos impactos de suas decisões na sociedade é a nova tônica que deve nos guiar”, explica Augusto Júnior, diretor executivo do Instituto Anga, que tem como objetivo formar jovens lideranças conscientes para o Brasil.
Alinhado com a visão de Castanho, Júnior ainda destaca a autogestão como combustível para a construção de times confiantes e produtivos. “Líderes que microgerenciam acham que a autogestão faz a performance diminuir. É justamente o oposto. Quanto mais autonomia para realizar suas tarefas o colaborador tem, mais confiante e produtivo ele se torna. Nesse contexto, como disse Daniel Castanho, o papel do líder é guiar, é ser um mentor que aponta caminhos e cria um ambiente seguro psicologicamente para que as pessoas possam errar e aprender de forma contínua.”
06 – Compromisso social como parte do DNA
O compromisso social da Ypê com o Brasil é uma conduta que faz parte do DNA da empresa desde sua fundação, há 70 anos. Em especial neste momento, compreendemos que tínhamos uma responsabilidade muito importante, diferenciada, e que demandava ações rápidas. Foi com essa visão e numa rede de colaboração que, juntos, conseguimos mudar uma linha de produção para fabricar álcool em gel e envasar álcool líquido 70% para doação, totalizando 3 milhões de unidades. Contamos ainda com a ajuda de ONGs para distribuir gratuitamente, com total segurança, mais de 120 toneladas de sabão em barra para comunidades carentes. Esses são alguns dos aprendizados que esta crise deixa: a clareza sobre a responsabilidade social das corporações, a solidariedade e o trabalho colaborativo. Sem dúvida, é um momento de união.
Waldir Beira Júnior – Presidente Executivo da Ypê
## __07 – Anywhere office__
Uma pesquisa conduzida pelo Gensler Research Institute nos Estados Unidos constatou que apenas 12% dos norte-americanos desejam continuar trabalhando de casa 100% do tempo. Entre aqueles que preferem ir ao escritório todos os dias ou trabalhar de casa até duas vezes na semana, o percentual é expressivo: 70%. Portanto, no lugar de uma grande ruptura, o que se deve observar no mundo do trabalho pós-pandemia é apenas uma flexibilização da política de home office, certo?
Bem, segundo a apuração de HSM Management, há um aprendizado oculto nesses dados: o anywhere office (trabalho de qualquer lugar). Tendência que virou realidade na equipe do Bruno Gonzales, superintendente de marketing solutions na Boa Vista, em plena pandemia. Além de ter contratado um profissional que mora em Florianópolis, longe da sede da empresa em São Paulo, Gonzales manteve no time uma colaboradora que se mudou para Portugal. “Estamos tendo bom alinhamento e bom desempenho. Com adequações, essas mudanças devem vir para ficar”, diz Gonzales. Permitir que as pessoas trabalhem de qualquer lugar, ao mesmo tempo que ajudará a resolver gaps de contratação de posições mais críticas, deve aumentar a competição pelas vagas mais desejadas.
## __8 – Reconfiguração dos escritórios__
“Chegar na Villa XP é fácil, pois está próxima de aeroportos, e o acesso rodoviário também é possível desde São Paulo por rodovias de excelente qualidade. Também temos nosso próprio heliponto.” É com esse trecho que o e-book XP de qualquer lugar começa a descrever o que seria a futura sede da empresa de gestão de investimentos. Ainda que descrita como uma obra de ficção, sua divulgação gerou especulações sobre a debandada das empresas dos grandes centros urbanos para o interior.
Seria o anywhere office o empurrão que faltava para as empresas abandonarem as lajes mais caras da cidade? “As supersedes atraem mídia, mas são poucas as empresas que podem construir esse tipo de escritório autossustentável, que requer altos investimentos”, explica Ivo Wohnrath, CEO da empresa de arquitetura Athié Wohnrath. “Por isso, em vez de mudança radical, acreditamos em uma evolução dos espaços de trabalho”, complementa Wohnrath.
Os escritórios já vinham em um movimento de transformação desde quando os pufes coloridos invadiram os projetos corporativos, provocando uma mudança na proporção entre posições de trabalho e espaços de convivência. “Em nossos projetos, a relação já estava em 40/60, sendo a maior área destinada aos espaços coletivos”, comenta Wohnrath. Outra moda que pegou foi a das estações de trabalho compartilhadas. Segundo pesquisa conduzida pela Athié Wohnrath em maio, com 414 companhias, a média de home office era de 1,5 dia por funcionário e, no pós-pandemia, este número deve subir para 2,5. “Se antes o cálculo era de uma posição de trabalho a cada dois colaboradores, com a ampliação do home office essa proporção deverá ser de um para três. Essa reconfiguração significa que as empresas serão ainda mais desafiadas a criarem espaços coletivos que façam as pessoas se sentirem acolhidas e conectadas”, prevê Wohnrath.
## __09 – Viagens de negócios__
A cultura do olho no olho do brasileiro demanda que as negociações sejam feitas presencialmente. Pelo menos era o que se dizia no mundo pré-pandemia. E aí vieram o distanciamento social e a recomendação de viagens somente em caso de urgência, e uma das maiores verdades do mundo corporativo foi colocada em xeque. O turismo de negócios, que no primeiro semestre de 2019 teve um aumento de 14,8% em relação a 2018 segundo a Abracorp (Associação Brasileira das Agências de Viagens Corporativas), deve recuperar-se lentamente, mas não deve voltar aos patamares anteriores.
“Nossos clientes dizem que, a cada três viagens que costumavam ser feitas, somente uma deve ser realizada quando as pessoas retornarem aos escritórios”, explica Wohnrath. “Isso nos indica que uma excelente infraestrutura tecnológica para videoconferências, que já vinha sendo tendência em nossos projetos, ganhará ainda mais relevância”, completa.
Se de um lado as empresas observarão uma redução no budget de viagens, de outro a indústria do turismo, já bastante prejudicada pelo sumiço dos viajantes domésticos, deve demorar ainda mais para se recuperar. Ponto para o meio ambiente, já que o setor aéreo é responsável por 2% das emissões globais de gases de efeito estufa.
10 – Valorização da saúde mental
Garantir a continuidade do negócio é o imperativo atual. No entanto, da alta liderança à equipe operacional, as pessoas estão sofrendo com os efeitos do distanciamento – do medo do contágio ao período de incerteza, as emoções negativas se acumulam.
Diante disso tudo, após mais de cem dias nessa situação, posso dizer que estamos perto de uma epidemia de adoecimento emocional. Isso se refletirá diretamente nas empresas e em seus resultados financeiros. De maneira preventiva, algumas empresas começaram a investir em novos benefícios, entre eles a psicoterapia, palestras sobre educação emocional e outros serviços diretamente ligados à saúde e ao bem-estar.
Na Vittude vimos nossos números dispararem desde a segunda quinzena de março. Saímos de 22 clientes corporativos para mais de 70, ultrapassando a marca de 130 mil colaboradores que agora têm acesso à psicoterapia online por meio da nossa plataforma. São empresas como RaiaDrogasil, SAP, Grupo Boticário, Resultados Digitais, RSI, entre outras.
É interessante ver esse aumento, mas vale destacar que, de acordo com uma pesquisa feita pela Mercer, 79% das empresas da América Latina nunca fizeram um mapeamento ou diagnóstico a respeito da saúde mental de seus colaboradores. Como dificilmente gerenciamos aquilo que não medimos, ficam o alerta e a dica para o mundo pós-pandemia.
Tatiana Pimenta – Fundadora e CEO da Vittude