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18 anos pelo mundo, uma reflexão

Nesta entrevista, o CEO da Alpargatas, roberto funari, compartilha sua jornada de expatriado – ele dirigiu empresas em países tão diversos quanto holanda, África do Sul e Singapura

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Se fosse preciso escolher um único adjetivo para definir sua carreira internacional, seria “intensa”. A primeira expatriação do CEO da Alpargatas, Roberto Funari, já foi para ocupar um cargo no topo – tornou-se gerente-geral da Reckitt 

Benckiser (RB) na Holanda, e dali em diante houve uma sequência de posições de liderança em países que foram de Alemanha e Inglaterra até Singapura, passando pela África do Sul, local pelo qual se apaixonou, mas onde até ameaça de morte recebeu. E fez tudo isso acompanhado da esposa, dos três filhos e de seu inseparável pastor alemão Claus.

O início da trajetória profissional de Funari já anunciava um caminho diferente: entrou no curso de administração de empresas da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, em 1983, com apenas 16 anos de idade. “Precisei de autorização do governo para me matricular”, relembra. Ao longo de 18 anos, ajudou uma empresa que não inspirava os investidores de então, a Reckitt Benckiser, a dar a volta por cima – seu valuation passou de 4 bilhões de libras esterlinas a 60 bilhões. No início de 2019, voltou ao Brasil para assumir o comando da fabricante de algumas das marcas mais fortes do Brasil, como Havaianas, e sob sua batuta a empresa vem mudando rápido – por exemplo, a sede nova, onde Funari recebeu HSM Management, funciona como um coworking. Num cenário marcado pela inovação, que tem a ver com associação de ideias e experiências distintas, poucos executivos construíram repertório tão variado quanto o dele. 

> **Roberto Funari** possui 32 anos de experiência executiva liderando áreas operacionais de negócios incluindo mercados locais e regionais, e também áreas estratégicas globais como marcas globais, estratégia corporativa, pesquisa e desenvolvimento, mídia global, pesquisa de mercado, design e marketing digital. Foi membro do conselho executivo da Imperial Brands e da Reckitt Benckiser, onde ocupou posições de liderança em seis países, e quatro continentes: Europa, Ásia, África e América Latina. Atua como consultor independente da Associação Projeto Gauss, ONG que apoia crianças carentes para acessar as melhores universidades brasileiras. Em janeiro de 2019, foi nomeado CEO, após seis meses no board.

**Você sempre quis a carreira internacional?**

 Eu diria que minha carreira foi pautada por ambientes de transformação, não pelo desejo de internacionalização em si. Sempre atuei em divisões que tinham sido adquiridas ou passado por uma fusão. Tudo começou na Unilever, onde entrei como trainee mesmo antes de me formar: fiquei por oito anos, chegando à gerência, sempre na área de marketing. Então, fui para a Parmalat, que estava com um projeto grande de expansão na América Latina, e assumi. Passei dois anos muito intensos na diretoria de marketing da divisão de leites, que incluíram a famosa campanha dos mamíferos. 

Eu ainda estava no Brasil na ocasião, mas o cargo Latam foi minha primeira responsabilidade por outros países. Era 1994, e comecei a entender como funcionava o processo de globalização de marca e a flertar com o mundo, já que o Brasil vivia um momento de abertura. Foi só aí que comecei a pensar em carreira internacional.

Mas nada aconteceu imediatamente. O fato marcante do mundo na época era a bolha de tecnologia e fui na direção dela, virando o primeiro diretor de marketing da Compaq no Brasil. Ali tinha desafios novos de liderança e de cultura de negócios, e o fato de ser um setor muito dinâmico e um modelo mais focado no B2B. Foi um tempo de bastante aprendizado e relacionamento. 

Só que, depois de um determinado momento, percebi que estava infeliz. Sentia falta da interface com o consumidor. Não me agradava também o fato de a empresa se mover com inovações que não estavam prontas, em que o usuário precisava se adaptar a elas – preferia que fosse o oposto, com a indústria respondendo ao usuário. 

**Como você lidou com essa infelicidade?**

Lembro de enfrentar um grande dilema. De um lado, tinha clareza de que minha vocação não estava ali. De outro, eu estava no auge dos meus 30 anos, bem em termos de salário, cargo e status, e atuando numa área muito promissora – e ainda adorava as pessoas com que trabalhava. 

Então, me convidaram para ser diretor de marketing para o Brasil da então Reckitt & Colman, uma empresa bem estruturada e dona de marcas de produtos de limpeza, como Veja. Decidi com o coração e aceitei a proposta. Em seguida, foi anunciada a fusão da empresa com a Benckiser, formando a Reckitt Benckiser, que ficou listada na bolsa da Inglaterra. No mercado, o clima foi de descrédito e as ações caíram. Lembro que o The Times estampou no caderno de negócios a manchete “Duas empresas ruins não fazem uma empresa boa”.

Ainda por cima, a Benckiser ficou com toda a liderança e nós não a conhecíamos, porque não tinha presença no Brasil. Um fornecedor que a conhecia veio nos falar sobre sua cultura e suas marcas para nos preparar. Era uma cultura totalmente nova, com traços de meritocracia, autonomia e empreendedorismo. Só sei que, no primeiro contato com o líder global, entreguei a ele o plano para lançar no Brasil o Vanish, uma das marcas da Benckiser, e ele aprovou. Disse que, em dois meses, quando a fusão já estaria perto de ser aprovada na bolsa, eu deveria ir para o headquarter, na Holanda, e anotou para mim o nome do responsável global da marca que deveria procurar. Eu fui. Bati na porta, me apresentei e combinamos tudo. Fusão aprovada, fui conversar com o Pão de Açúcar e em duas semanas o Vanish estava nas lojas. Foi um sucesso. E minha carreira deslanchou.

**Foi a Reckitt Benckiser que o expatriou?**

Sim. Eu sonhava ir para algum país da América Latina, mas aconteceu que surgiu um cargo de gerente-geral na Holanda e me indicaram para ser entrevistado na Alemanha, onde ficava o líder. Só que, naquele momento, estávamos com três filhos pequenos e tudo era mais complexo. 

Viajei para a entrevista sem crer que aquilo teria futuro, mas, assim que voltei ao Brasil, recebi uma ligação dizendo que o cargo era meu. Era final de novembro e eu tinha de começar lá em 1º de fevereiro. Eu argumentei que precisava pensar mais, pois tinha família. E recebi a seguinte resposta: “Pegue o avião, comece e depois você resolve tudo”. 

**Como foi a negociação com sua família?**

Conversamos em casa, olhando para um mapa da Holanda. Intuitivamente, sabia que ir ou ficar tinha de ser uma decisão nossa, dos cinco. Minha mulher era professora e também fazia um trabalho voluntário de modo engajado; precisaria largar tudo. Meus filhos tinham 10 e 7 anos e minha filha, 5, e tive com os três uma conversa de adulto, algo de que se lembram até hoje. Conversamos muito, várias vezes, sobre o que faria valer a pena mudar de país. A ambição de ascender na carreira não era, nem é, meu principal driver, mas havia desafios que estimulavam. Para mim, seria um belo desafio, mas não podíamos mudar só por mim. Quais seriam os drivers deles?

A melhor conversa que tivemos, e que acabou nos guiando, foi uma em que combinamos duas coisas: (1) Nunca vamos reclamar; se aceitarmos, vamos trabalhar para dar certo, e não ir na linha “vamos ver o que acontece”; e (2) Se qualquer um da família – mesmo se for só um – estiver infeliz, nós voltamos. O fato de a opção de voltar ficar sempre na mesa criou confiança em todos.

O incrível é que, no dia seguinte a essa conversa, minha mulher encontrou uma vizinha no elevador e comentou que íamos mudar. Na hora, a vizinha falou: quero comprar seu apartamento. Coisa do destino? Sei lá. Mas vendemos o apartamento no dia seguinte à decisão.

Ao longo dos anos, entendi duas coisas importantíssimas numa carreira internacional. Ela é uma aventura em todas as dimensões da sua vida, não só a profissional. E tem de ser um projeto que faça sentido para todos da família, não só para você. 

**E como foi quando chegaram lá?**

Uma loucura. Tivemos de aprender tudo do zero, mas juntos. A primeira semana eu passei com a família para facilitar a adaptação. 

Na segunda semana, deixei meus filhos na escola e fui para o escritório. Ainda no carro a caminho do trabalho caiu a ficha que só eu falava inglês, não holandês. Não tínhamos pensado nisso! Lembro que comecei a tremer na direção. Meu chefe tinha vindo da Alemanha para me apresentar para a equipe, formada por 36 holandeses. Ele falou sobre mim por cinco minutos, despediu-se e voltou para a Alemanha porque tinha uma reunião lá. Era meu primeiro cargo como gerente-geral, num país diferente, sem falar o idioma. Mas eu me virei e a família também se virou. Mesmo sem falar inglês; só meu filho de 10 anos falava um pouquinho. 

**Qual foi a segunda parada da família Funari?**

África do Sul. A primeira reação da minha esposa foi rejeitar a ideia. A operação local da Reckitt Benckiser estava um ano e meio sem gerente-geral. O CEO global pediu que eu fosse com a minha família para ver o local antes de tomar uma decisão, garantindo que após um tempo eu voltaria para uma posição na Europa. Então, fomos passar alguns dias lá. Todos adoraram! No terceiro dia, liguei para o CEO e aceitei. 

Mudamos para Joanesburgo, a experiência foi sensacional, nos aspectos profissional, pessoal e familiar. Profissionalmente, eu diria que foi uma das melhores decisões que já tomei. 

**Por quê? O que foi tão diferente?**

Para começar, o desafio. Durante o apartheid [em 1994], foi feito um acordo com os sindicatos que tornou os salários de nossa fábrica os mais altos do mundo. Fui em 2004, a situação era inviável e, para salvar a fábrica, tínhamos de mudar isso. Havia uma possibilidade de renegociar o acordo de modo unilateral, mas, para isso, precisávamos dessindicalizá-la, algo complicadíssimo.

Como na minha cabeça fazia sentido, até pelos empregos de longo prazo, aceitei fazer isso, algo que nenhum outro quis fazer. Passei a receber ameaça de morte, falando até onde iam me enterrar. Eu e minha família tínhamos seguranças e até botão de pânico. Perto de expirar o prazo do acordo com o sindicato, eu passei a dormir cada noite num lugar diferente, decidido na hora, que nem minha esposa sabia.

O que fizemos? Montamos um sistema de inteligência no chão de fábrica e sabíamos tudo que era discutido, até no vestiário. Isso me permitiu entender a situação dos funcionários e me comunicar com todos de modo transparente. Além disso, eu já tinha me envolvido bastante com a cultura local, fazendo amigos inclusive. Tudo foi implementado em dois anos e meio, e a fábrica foi salva. Na minha despedida, os líderes da fábrica vieram me agradecer, porque eu havia cumprido o prometido, como reinvestir a diferença salarial em treinamentos, por exemplo. 

Dez anos mais tarde, voltei à África do Sul como ocupante de uma posição global para inaugurar a linha mais moderna de sabonetes da companhia. O supervisor, um cara enorme, veio na minha direção, me deu um abraço, me levantou do chão e falou: “Eu era varredor do chão dessa fábrica”. Com os treinamentos, ele evoluiu e virou supervisor. Fiquei muito feliz.

**Lidar com riscos e longe de casa não é fácil…**

Sim, mas, quando precisei, a ajuda foi imediata – a empresa colocou a melhor firma de segurança que existia para tomar conta de nós. Fizemos um trabalho grande para a Fundação do Mandela, onde conheci a pessoa que formou o equivalente local ao FBI, e ele me orientou também. 

**Após a tempestade e a bonança, o que veio?**

Fui transferido para a Alemanha, onde ocupei um cargo de diretor regional e presidente da unidade alemã. Talvez tenha sido a experiência mais contrária a tudo o que eu era. Primeiro porque o alemão é muito disciplinado e processual, e eu não sou. Meu briefing, inclusive, foi para eu sacudir a empresa do jeito brasileiro. Segundo porque, ao lado dos Estados Unidos, é um dos mercados mais competitivos do mundo, e sujeito a frequentes problemas legais. E, maduro, não crescia muito. O maior desafio talvez tenha sido mesmo lidar com pessoas com estilos muito diferentes, entendendo a natureza delas para motivá-las a mudar. Funcionou, mas foi uma fase difícil.

Um belo dia, o CEO global me chamou e, pela primeira vez, me fez ver a tal perspectiva de carreira. A pior coisa que se pode fazer com uma pessoa é tentar dar perspectiva de carreira, sabia? Isso alimenta expectativas, ilusões. Deve-se dar perspectiva de desenvolvimento pessoal, isso sim. Ele disse que eu havia sido selecionado para a sucessão de uma posição na direção executiva global, mas que tinha de dar dois passos antes, um dos quais era ocupar posição global. E lá fui eu para a Inglaterra.

Eu não queria sair da Reckitt Benckiser, mas, como essa conversa de carreira não deu certo para mim, quase um ano depois acabei aceitando ir para o board executivo da inglesa Imperial Tobacco – subestimei o segmento, que é complicado. Passados dois anos, voltei para a Reckitt Benckiser, para cuidar da região Ásia Pacífico e América Latina, ficando baseado em Singapura.

Nessa época, meus dois filhos já estavam nos Estados Unidos e minha filha decidiu ficar na Inglaterra. Fui com minha mulher e o Claus, nosso pastor alemão que nos acompanhou desde a África do Sul. Mas era humanamente impossível, pelo fuso horário, conciliar unidades de Ásia Pacífico e Latam, e ainda falar o mínimo com meus filhos. Um tempo depois, acabei voltando para a Inglaterra, de comum acordo, e três anos mais tarde saí.

**E como a Alpargatas entrou na história?**

Da Inglaterra, passei a ocupar uma cadeira no conselho de administração da Alpargatas. Após seis meses, assumi a posição de CEO. Acredito que a longa experiência internacional teve peso nisso.

**Olhando para trás, você avalia que sempre esteve preparado na hora de dar esses passos?**

Em termos de educação e valores, eu estava preparado. Já profissionalmente, tinha incompetência em muitas coisas.

**Que aprendizados-chave você destaca? O que recomenda a futuros expatriados?**

O primeiro aprendizado foi entender que você nunca está sozinho. Tem que pedir ajuda e usar os recursos à sua disposição. Por mais preparado que a gente esteja, podemos ter muito mais ajuda do que imaginamos. O segundo foi nunca deixar as pequenas coisas atrapalharem; elas se resolvem. No início, na Holanda, meu filho do meio fazia xixi na calça todos os dias na escola porque não sabia pedir para ir ao banheiro. Três meses depois, fomos chamados na escola porque nunca tinham visto um estrangeiro aprender 0 idioma tão rápido e tão bem como esse meu filho, e queriam saber o que tínhamos feito. 

O terceiro aprendizado, que levei sempre comigo nos outros projetos, é ser muito centrado nos próprios valores: nunca escondemos o que éramos, uma família de classe média brasileira, paulistana. Éramos isso e sempre o valorizamos.

Outro ponto, e isso vem mais da minha esposa, é aquela frase “Quando em Roma, faça como os romanos”. Em todos os países em que passamos, a gente se integrou à cultura local, se interessou pelas comidas, pelas pessoas. Sempre fomos com curiosidade enorme. Eu já vi muitos expatriados continuarem a viver como no Brasil, fazendo churrasco no domingo, assistindo à TV brasileira. 

Vale destacar mais uma coisa: nunca fiz nada pensando no passo seguinte e sim encarando como se fosse o último trabalho. Não alimentar expectativas me ajudou muito a focar em fazer bem-feito o que eu estava fazendo. Isso gera resiliência, acho, algo que me foi bastante testado na Alemanha, porque o ambiente era complexo e de alta visibilidade – muito próximo ao centro do poder. 

Sobre minha recomendação, é apenas uma: não siga uma carreira; siga um projeto de vida, que lhe traga desenvolvimento pessoal. 

**A expatriação fez bem à sua família?**

Vejo muitos benefícios. As experiências vividas fizeram todos nós mais conscientes, abertos e adaptáveis, e menos dogmáticos. Para meus filhos, especificamente, vejo que ganharam possibilidades globais. Mas isso teve um preço: tiveram um amadurecimento muito rápido. 

**E a relação com a família que ficou no Brasil?**

Ah, esse foi o maior preço que pagamos, sem dúvida. A falta do convívio com pessoas tão importantes é algo muito dolorido. E subestimado.

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