Entrevista
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Futuros: o que ela diz, o que ele diz

Amy Webb e Jacques Barcia têm uma certeza em comum sobre o futuro: será preciso inovar – muito. Porém ela vê as tecnologias digitais como fio condutor desse movimento, enquanto ele acredita que a necessidade de regeneração ambiental é que vai direcionar as iniciativas

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Embasamento fundamental para qualquer planejamento – estratégico, tático-operacional, de carreira ou pessoal – é uma visão do futuro. Mesmo que você só esteja se preparando para o próximo ano. Fazer algo que logo precisará ser refeito é pouco eficiente, além de frustrante.

A seguir, __HSM Management__ elenca as ideias de dois futuristas, Amy Webb e Jacques Barcia. Os dois atuam em polos de inovação – ela no Vale do Silício, EUA; ele em Recife, Brasil –, mas vivem contextos diferentes: ela tem uma visão do centro global; ele traz o olhar de periferia do planeta. Com os dois, analisamos as duas grandes forças impulsionadoras dos próximos tempos: a mudança tecnológica e a urgência ambiental e climática cada vez maior.

## O que é preciso entender
__Amy Webb__ – A realidade não é mais o que costumava ser. Todo dia surge um novo conjunto de sinais para desafiar nossos modelos mentais.
Só em 2021/22, o DeepMind resolveu um problema de 50 anos na área de biologia, abrindo caminhos para descobrir medicamentos; os sistemas de IA provaram que são capazes de gerar imagens e texto tão bem quanto um humano; Facebook (Meta) e Square (Block) começaram a se apropriar do território digital na emergente web3; e os maiores streamers, como Netflix e Disney+, descobriram que redes de comércio social como Shein podem ser grandes rivais.

Como primeiro passo para se envolver nesta nova realidade, eu diria que os líderes têm de se familiarizar com o metaverso, assim como distinguir entre os diversos formatos mediados digitalmente abarcados no espectro da “realidade-virtualidade”. Devem-se entender as definições interligadas de realidade aumentada (RA), virtual (RV), mista (RM), estendida (RE) e realidade diminuída (RD). {Veja texto no final da entrevista}

__Jacques Barcia__ – A primeira coisa a entender é que os contextos dos países centrais e periféricos são bem diferentes. Os países centrais, onde o capitalismo está mais avançado, depletaram seus recursos naturais, e isso lhes deu condições para criar infraestruturas de conservação, o que confere “certo” equilíbrio a como a questão é tratada lá. Já nos países periféricos, a pauta ambiental está em disputa com o imaginário de capitalismo que temos. No Brasil, por exemplo, alguns acreditam ser possível conciliar a ideia de ser o celeiro do mundo – falaciosa a meu ver, mas que habita nosso imaginário desde os anos 1960 ou antes e é cada vez mais forte – com a crença de ser possível conciliar o crescimento do agronegócio e a conservação ambiental. Eu não creio nisso: se de um lado há intenção de expandir a produção – com maior exploração do solo –, e do outro, há necessidade de manter o meio ambiente como está (e, mais ainda, de regenerá-lo), isso poderia ser quase uma corrida armamentista.

O que deve acontecer é que, conforme se agravarem as emergências climáticas, haverá mais e mais pressões externas e internas para o Brasil ser a reserva ambiental do mundo, com narrativas como a de a Amazônia ser o pulmão do planeta. E isso pode direcionar o que vai acontecer no País. Aí é que entrarão as novas tecnologias. Falo de tecnologias digitais, é claro, mas também de tecnologias humanas – sociais e políticas.

__Ela__ – Há o metaverso. Alguns optam por enxergá-lo como a evolução da internet: evoluiríamos de uma coleção de páginas, plataformas e aplicativos para um mundo de interfaces renderizadas em 3D que são visualizadas por meio de “óculos inteligentes”. Pode ser. Eu o vejo como um reino virtual abrangente, que incorpora vários aspectos de novas realidades em um ecossistema digital amplo e dinâmico. Tem duas características principais: (1) a rede coletiva de elementos e espaços virtuais renderizados em 3D do metaverso não pode ser ligada ou desligada; e (2) um vasto número de usuários pode acessá-lo simultaneamente e interagir lá dentro.

O metaverso não é uma única tecnologia nem controlável por uma única empresa ou entidade central. Representa a união gradual de elementos novos e em constante evolução: tecnologia, sensores, dispositivos e infraestrutura de rede sem fio de grande largura de banda, proporcionando aos usuários um novo modo de interagir entre si e com os mundos físico e digital ao redor.

__Ele__ – A disputa {entre meio ambiente e capitalismo} vai ser mais intensa nos próximos dois ou três anos, causando rupturas importantes e transições dolorosas para um sistema de produção e consumo mais adequado à emergência climática. Mas, ao menos no melhor dos quatro cenários com que trabalho, esta próxima década pode ser marcada pela regeneração. A boa notícia é que nosso déficit de infraestrutura no Brasil pode nos ajudar a dar um salto para o novo sistema com menos dificuldade, como aconteceu com os países da África Central, que, como não tinham rede de telefonia fixa, adotaram mais rapidamente a telefonia móvel.

Alguns autores acreditam que vamos precisar tornar metade do planeta Terra selvagem novamente, o que vai requerer decrescimento econômico e, portanto, que a economia passe a ser muito planejada, para uma distribuição de recursos justa. Com esse “rewilding” (volta à vida selvagem), será preciso decidir o que é para ser humano e o que é para ser selvagem. Tecnologias digitais, inteligência artificial, big data serão fundamentais nesse planejamento.

Um conceito cada vez mais discutido é o das “pessoas ambientais”. É a ideia de que rio, florestas, árvores, ambientes naturais quaisquer sejam pessoas reconhecidas pela lei, do mesmo jeito que são as pessoas físicas e jurídicas, com direitos. E a provocação que eu sempre faço é: o que acontece quando a natureza passa de recurso a stakeholder?

## Oportunidades e desafios
__Ela__ – Vale olhar para o que tem surgido em torno das tecnologias de identidade e interfaces homem-máquina, como os óculos inteligentes.
À medida que os avatares se popularizam, os usuários buscarão ter portabilidade de avatar – a capacidade de mover um avatar entre plataformas construídas em diferentes softwares ou por diferentes empresas –, assim como personas digitais mais realistas.

Quando nossos comportamentos online fizerem a transição de aplicativos e sites para experiências de RE mais imersivas no metaverso, os avatares passarão a agir como nossos emissários virtuais para tudo, de compras à socialização e trabalho. Uma empresa que está explorando essas oportunidades é a Khronos, que criou o formato VRM de avatar para transferência entre plataformas de RV compatíveis. Outra é a Unreal Engine, conhecida por seus visuais para games 3D, que lançou o app MetHuman Creator, que promete criar personas digitais de alta fidelidade.

Falando no campo das interfaces homem-máquina, os óculos inteligentes serão nossa principal porta de acesso a um metaverso. Há no mercado muitos exemplos de óculos inteligentes de primeira geração. Echo Frames (Amazon) e Stories (da RayBan), ambos feitos em colaboração com a Meta, destinam-se a familiarizar o público com esses dispositivos. Mas a perspectiva de longo prazo deve ser outra: envolverá lentes inteligentes na forma de wearables para as pessoas viverem a realidade estendida e o metaverso sem atritos. A Meta começou a desenvolver o que chama de “tecnologia de passagem reversa”, que projeta os olhos do usuário para o lado de fora, permitindo que esse usuário se conecte com quem está fora do mundo virtual imersivo sem se desconectar dele.

Há também lentes de contato inteligentes, com sensores e componentes eletrônicos embutidos, que podem exibir texto e imagens. Já há segmentações de mercado. A Mojo Vision desenvolveu uma tela HUD (heads-up display) como wearable, específica para atletas fazerem medições de desempenho, e está fazendo parcerias com empresas como Adidas, 18Birdies (golfe) e Wearable X (ioga). Corredores, por exemplo, em breve poderão ver métricas como passos e distância percorrida em seu campo de visão sem ter de olhar para um relógio; golfistas verão o ângulo de seu taco e a provável trajetória da bola.

Há uma ampla gama de aplicações da RA para organizações, que vai do chão de fábrica às salas de reuniões virtuais. O HoloLens 2, da Microsoft, foi projetado especificamente para soluções de negócios, incorporando funcionalidades de nuvem e IA, interoperabilidade com parceiros do setor e um conjunto de ferramentas para o desenvolvedor. Já foi adaptado para o Exército dos EUA, permitindo módulos de treinamento holográfico e projeção de mapas de terreno 3D dentro do campo de visão do usuário. A Nreal, fabricante de óculos inteligentes e HMDs (head-mounted displays), anunciou novas edições empresariais de seus dispositivos de realidade mista para uso industrial, de varejo, turismo, educação, logística. Os usuários podem operar seus headsets com um anel controlador wearable e controlar os movimentos no mundo virtual por meio de gestos.

__Ele__ – Tecnologias digitais, e as mecânicas apoiadas pelas digitais, podem ajudar muito no esforço de regeneração. Estão sendo testadas formas diversas de captura de carbono e de geoengenharia, por exemplo. Uma delas suga o carbono da atmosfera e o enterra no fundo da Terra. É verdade que pode requerer uma quantidade de energia tão grande que pode ser questionável, mas possivelmente não será algo dispensável. Serão bem importantes para a regeneração também as tecnologias digitais de simulação, como os digital twins e o próprio metaverso. Singapura é uma cidade que está se transpondo para o metaverso – inclusive no aspecto legal. Na frente digital, um dos desafios será fazer com que a inteligência seja descentralizada, distribuída. Como vemos no ChatGPT, essa inteligência artificial geradora de textos e conversas.

__Ela__ – A área de supply chain ilustra o impacto tecnológico por vir. O aumento da inflação e os desafios trabalhistas estão acelerando a adoção da automação para incrementar produtividade e reduzir custos. A Tyson Foods {maior rival da brasileira JBS} anunciou em 2021 que gastaria US$ 1,3 bilhão ao longo de três anos para automatizar suas linhas de produção. E espera recuperar US$ 450 milhões em economia de custos até 2024. A Nike adicionou, em seus centros de distribuição, mais de mil robôs colaborativos que classificam, embalam e movem os estoques.

Além da automação crescente, as frotas de drones começam a ganhar escala. A Domino’s, com a Skydrop, vem avançando nos testes de drones de entrega na Nova Zelândia. A 7-Eleven fez parceria com a All Nippon Airways para expandir o conceito de conveniência com entregas de drones. A Wing, serviço de frota de drones da Alphabet, atingiu um novo marco com a conclusão de mais de 100 mil entregas, operando nos EUA, na Austrália e na Finlândia. O Walmart fez acordo com a startup israelense Flytrex para drones atenderem seus consumidores nos subúrbios americanos. O mercado global de drones deve crescer de US$ 15 bilhões em 2020 para mais de US$ 90 bilhões em 2030.

Por fim, há indícios de que os navios autônomos, movidos a IA, estão virando realidade. Duas empresas diferentes concluíram viagens marítimas bem-sucedidas com tecnologias autônomas. Uma foi a companhia de navegação japonesa Mitsui O.S.K Lines. Outra, a Yara, fabricante de fertilizantes norueguesa. O navio porta-contêineres elétrico da Yara foi de Horten a Oslo sem condutor, e agora a empresa planeja colocá-lo em operação regular, estimando a redução de mil toneladas na emissão de CO2 na atmosfera.

__Ele__ – As tecnologias político-sociais podem ser ainda mais importantes que as digitais nesse futuro. Temos vários exemplos delas. Em termos de iniciativa civil, há um projeto de rewilding na Inglaterra {WildEast, em East Anglia} para a comunidade reservar 20% de seu espaço – e a natureza ocupá-lo.

Em termos de governos, Santiago, no Chile, planeja plantar 7 milhões de árvores e é uma das seis cidades do mundo que tem um chief heat officer, executivo responsável por calor. As outras são três americanas (Miami, Phoenix, Los Angeles); Atenas, na Grécia; e a capital de Serra Leoa. E uma cidadezinha {Curridabat, Costa Rica} foi além: incorporou árvores, pássaros e polinizadores em seu rol de cidadãos.

Nesse contexto, as empresas terão de mudar suas práticas ESG, indo da governança da sustentabilidade para a governança da regeneração. E isso muito rapidamente, porque as coisas vão ficar bem urgentes. Em compensação, empresas que tiverem estratégias de regeneração e de trato climático e pessoas ambientais em seus boards deverão ser as mais competitivas das próximas décadas. Já há representantes de grupos de animais sendo incorporados ao processo de planejamento de empresas.

Há muita gente preocupada com a superpopulação do planeta. Digo que a quantidade de pessoas no planeta não é o problema, e sim a superpopulação urbana. Em 2050, teremos umas 20 megacidades com 30 milhões a 40 milhões de pessoas, que farão a São Paulo atual parecer minúscula – e isso criará uma série de novos problemas. Para resolvê-los, vamos ter de testar ideias malucas e inovar, como novos tipos de arquitetura para regeneração.

A grande missão das organizações para a próxima década será inovar o sistema – não mais para o sistema.

As várias realidades

Realidade estendida é o termo guarda-chuva para o continuum realidade-virtualidade, que incorpora as realidades virtual, aumentada e mista

RA x RV. As duas são “vividas” com óculos inteligentes, mas são diferentes. A realidade aumentada faz adições ao ambiente existente, mas você permanece orientado por seu ambiente físico; a realidade virtual faz você mergulhar em um ambiente virtual. Embora possam compartilhar hardware, RA e RV têm aplicações exclusivas e, hoje, os casos de uso de RA superam os de RV.

RD. A realidade diminuída é RA, mas o contrário não acontece. A RD não é totalmente imersiva; ela deixa o usuário ancorado em seu ambiente físico, mas com certas imagens, sons ou outros elementos sensoriais suprimidos.

RM. A realidade mista ancora elementos virtuais aos elementos físicos correspondentes em seu ambiente. Dentro dela, ainda é possível interagir fisicamente com objetos e superfícies, mas a aparência e a relação deles uns com os outros podem ser virtualmente alteradas. Ou seja, as experiências de RM não ocorrem nem no mundo físico nem no mundo virtual, mas num híbrido dos dois.

Fonte: Amy Webb, Rotman Management Magazine

Artigo publicado na HSM Management nº 155

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