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Um protótipo para o modo de criar aplicativos

E se você fizesse um hackathon com pessoas realmente diferentes, incluindo chefes de família, e elas pudessem dormir?

Rana el Kaliouby

Autora, com Carol Colman, do recém-lançado Decodificada – A busca por humanizar a tecnologia antes...

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Se eu aprendi alguma coisa ao abrir e dirigir uma startup é que você precisa de foco. Você não pode ser tudo para todos; precisa descobrir quem você é, no que é bom e onde se encaixa no mercado. A Affectiva precisa de foco. Entretanto, o potencial para a nossa área, a inteligência artificial das emoções (“emotion AI”, em inglês), é tão amplo, com tantas possibilidades de aplicação, que me senti frustrada pelo fato de receber inúmeros pedidos de pessoas e organizações que queriam colaborar conosco em projetos promissores em praticamente todos os campos imagináveis.

Não tínhamos nem pessoal nem recursos para explorar todos esses potenciais usos, e a maioria das pessoas que nos procurava não dispunha de recursos para pagar nossas taxas de licenciamento. Eu achava injusto não disponibilizar a tecnologia para pessoas que poderiam fazer um ótimo uso dela. Dessa forma, fizemos o nosso primeiro hackathon, o Emotion Lab’16, no qual disponibilizamos nosso software para um grupo diversificado de participantes que poderiam usá-lo como bem lhes aprouvesse.

Um hackathon é muito semelhante a um programa de culinária com chefs celebridades, em que os competidores, podendo usar apenas poucos ingredientes, preparam uma refeição fantástica dentro de um determinado período de tempo. Da mesma forma, em um hackathon, os participantes, tendo à sua disposição apenas poucas ferramentas tecnológicas, precisam transformar suas ideias em um protótipo funcional, geralmente durante um final de semana. Os dois tipos de concurso geralmente terminam com um painel de notáveis premiando as melhores criações.
A IA das emoções tem a ver com humanizar nossa tecnologia para promover mais entendimento e melhores conexões entre as pessoas. Para fazer bem a IA das emoções, é fundamental incluir uma ampla faixa de pessoas. O Emotion Lab foi projetado para ser inclusivo e extrair informações de diversas perspectivas diferentes.

Na maioria das vezes, os hackathons atraem programadores, geralmente homens. Portanto, nós próprios fizemos alguns hacks em um hackathon típico. Não queríamos excluir ninguém – os programadores homens, sem dúvida alguma, eram muito bem-vindos –, mas também estendemos o convite para grupos de mulheres da área, separando as 20 primeiras vagas para elas. Dessa forma conseguimos ter o mesmo número de homens e mulheres, o que é uma raridade em eventos desse tipo. Também buscamos ter diversidade internacional, e tivemos representantes de todas as partes do mundo: Suécia, Inglaterra, Egito, Japão e Israel. E, no que foi realmente uma ruptura com o status quo, convidamos pessoas de todas as origens. Buscamos pessoas de outras disciplinas. Nós nos certificamos de contar com professores acadêmicos, artistas, músicos, gerentes de projeto, designers gráficos, educadores, pesquisadores em autismo, psicólogos, profissionais de saúde pública e afins. E permitimos que essas pessoas “não tecnólogas” inovassem lado a lado com profissionais de computação, algo que raramente é feito.
Convidamos até a Beyond Verbal, outra startup da nossa área. A Beyond Verbal é uma empresa com sede em Tel Aviv especializada em analítica de voz. A maioria das empresas não convida concorrentes atuais ou potenciais para seus eventos, mas nos demos conta de que disponibilizar essa tecnologia para nossos hackers permitiria o aparecimento de projetos mais sofisticados.

Bem, não bastava convidar grupos que normalmente não participam de eventos de tecnologia. Precisávamos permitir que pessoas com responsabilidade de família, que não poderiam simplesmente sumir por diversos dias, pudessem participar. Para tanto, precisávamos fazer com que eles se sentissem bem-vindos, algo que a comunidade de tecnologia como um todo não sabe fazer bem. Mas havia um problema: a natureza 24 horas dos hackathons normalmente não permite que as mães (e até mesmo os pais) consigam sumir durante um fim de semana. Além disso, a cultura de “mano” dos homens trancados em uma sala tomando Red Bull a noite inteira e comendo pizza – bem, é bastante desagradável para muitas das pessoas que queríamos atrair. Dessa forma decidimos fazer as coisas de maneira diferente. Nós não trabalhamos direto. Fechávamos à noite, para que os participantes pudessem ir para casa. Sou ferrenha defensora de que as pessoas precisam dormir. E, como muitos funcionários da nossa empresa têm filhos, durante o dia oferecemos uma programação paralela supervisionada para as crianças, onde elas poderiam construir seus próprios projetos.

Cada um dos participantes teve a oportunidade de apresentar seu projeto para o público para ver se conseguiam montar uma equipe. No final, dez projetos foram selecionados, e os 60 participantes foram divididos em times. Cada um dos times tinha acesso aos mesmos “ingredientes” para transformar sua ideia em realidade: a inteligência artificial das emoções da Affectiva; o software da Beyond Verbal; o sensor de pulso usável da Pavlok; o Google Glass da Brain Power; Jibo, o robô; o droide BB-8 de Star Wars; e Arduino, uma plataforma eletrônica de fonte aberta. A única exigência era que a inteligência artificial das emoções da Affectiva fosse integrada ao protótipo. Além desta, não havia regras.

## Vários projetos, um tabu
Como os grupos eram muito diversificados, os projetos foram os mais diversos – em todos os sentidos. Um videogame com um nome duvidoso, Lhama Assassina, usava para navegação a expressão facial (e não os controles) dos jogadores. O aplicativo Blind Emotion Aid haqueou o Google Glass para permitir que pessoas com deficiência visual “vissem” o estado emocional das pessoas com quem estavam interagindo. O “Super TA” transformou o droide BB-8 em uma ferramenta que oferecia feedback em tempo real para que os professores pudessem avaliar a compreensão e a atenção dos alunos. Todos eram usos novos e interessantes para a inteligência artificial das emoções e surgiram por causa da diversidade ímpar dos participantes.

Um dos projetos abordava um problema social que pouquíssimas pessoas querem encarar – o suicídio. Quando Steven Vannoy, PhD, professor adjunto de psicologia e aconselhamento escolar da faculdade de educação e desenvolvimento humano da University of Massachusetts, em Boston, apresentou sua proposta para construir um aplicativo de prevenção ao suicídio, foi recebido com entusiasmo pelo grupo. Dois experts em computação se candidataram para trabalhar com ele.

Nos anos 1980, Vannoy era programador de computação, mas dez anos depois resolveu que queria dar uma guinada em sua vida profissional e dedicar-se a uma profissão mais focada em pessoas. Dessa forma, foi estudar psicologia, fez seu mestrado em saúde pública e depois conseguiu uma bolsa de pós-doutorado em serviços de saúde mental para idosos, com especialização em prevenção ao suicídio.

O suicídio estava aumentando, tanto nos Estados Unidos como no resto do mundo. Em 2017, o último ano para o qual havia dados disponíveis, 47.173 pessoas se mataram nos Estados Unidos e houve aproximadamente 1,4 milhão de tentativas de suicídio. Segundo o Centro Americano para Controle e Prevenção de Doenças, pelo menos outros 5 milhões de pessoas cogitaram se suicidar. Nem mesmo os médicos mais preparados conseguem prever quais de seus pacientes vão concretizar seus pensamentos suicidas.

Um dos principais problemas é que, enquanto área, a saúde mental não abraçou o uso de tecnologia na avaliação e no acompanhamento dos pacientes. Apesar de a medicina ter se automatizado, e de a inteligência artificial estar sendo adotada tanto no diagnóstico como no tratamento de doenças graves, os profissionais da área de saúde mental sempre mantiveram distância da tecnologia. A avaliação de pacientes é feita principalmente com base nas respostas dadas por eles, que podem ser distorcidas. Por exemplo, um médico pode perguntar “Você tem ímpetos suicidas?” ou “Você está deprimido?”, e o paciente pode responder dizendo a verdade ou não, por conta do estigma associado a problemas mentais, ou pode ser extremamente ambíguo, pendendo em prol da vida em um determinado momento, mas horas depois pendendo para a morte.

Lógico, existem muitas pessoas que estão deprimidas ou ansiosas e em risco de se suicidar que não procuram ajuda. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, dois terços das pessoas em todo o mundo com problemas de saúde mental não buscam ajuda de um profissional. Mas, mesmo se um paciente com alto risco de suicídio estiver se consultando com um profissional, na melhor das hipóteses as sessões ocorrem durante 50 minutos uma vez por semana. Tais pacientes ficam à mercê de si próprios o resto do tempo.

Dada sua experiência anterior com tecnologia, Vannoy começou a se perguntar por que a saúde mental estava ficando para trás se comparada a outras especialidades médicas, mas ele não sabia como resolver aquele problema. Fazia quase duas décadas que estava fora da área de programação de computadores, e muita coisa havia mudado. Quando leu um artigo no The New York Times sobre inteligência artificial das emoções que mencionava a Affectiva, viu a possibilidade de construir a ponte entre as duas disciplinas. Imaginou se um aplicativo de Emotion AI poderia ser usado para rastrear os pacientes em tempo real, no mundo real, permitindo ao especialista intervir se parecesse que um paciente estava seriamente deprimido ou à beira de infligir algum tipo de dano a si mesmo. Vannoy nos contatou para apresentar sua ideia, e nós o convidamos a participar do hackathon, onde ela se tornou realidade.

Vannoy e sua equipe chamaram o protótipo do aplicativo de prevenção ao suicídio para smartphones de “Feel4Life”. O aplicativo usa a inteligência artificial das emoções da Affectiva e o software de reconhecimento de voz da Beyond Verbal para identificar sinais de inquietação ou qualquer alteração de humor do usuário. Diferentemente dos testes de avaliação padrão, o aplicativo não pergunta se o paciente está se sentindo deprimido ou pensando em suicídio. Ao contrário, tenta fazer com que fale o que está acontecendo em sua vida, fazendo perguntas do tipo “Como está o seu dia até agora?”, “No que você está pensando?”, “Quais são os seus planos para a próxima semana?”.

Em cada novo check-in, as respostas do usuário são comparadas às respostas anteriores, para verificar se são mais positivas ou negativas do que o padrão dos check-ins mais recentes. O aplicativo foi projetado para fazer três check-ins por dia, e o terapeuta do usuário tem acesso a todos os contatos. Se o usuário não fizer o check-in ou se ele desligar o app, o terapeuta recebe uma notificação e intervirá e/ou alertará algum membro da família. O Feel4Life é apenas um protótipo e ainda levará tempo para ser desenvolvido, mas, se chegar a ser lançado no mercado, Vannoy ressalta que nunca será um substituto da sessão de terapia semanal. Ao contrário, servirá para aumentar e ampliar o alcance do terapeuta.

Além de fazer perguntas e rastrear online o comportamento das pessoas com forte tendência ao suicídio, o Feel4Life pode fornecer importantes informações que até agora passaram despercebidas, ressalta Vannoy. Por exemplo, consegue detectar se as pessoas com fortes tendências suicidas são atraídas por notícias e informações online diferentes das pessoas que não têm essas mesmas tendências; ou se prestam mais atenção a histórias sobre suicídio e morte.

“É possível que estejam eliminando do seu mundo as informações sobre o futuro e a esperança”, observou Vannoy. “Pode ser que constatemos que as pessoas com um histórico de comportamento suicida que considerem efetivamente o suicídio passem muito mais tempo observando imagens relacionadas a morte e danos físicos do que imagens relacionadas a futuro e conexões humanas. Não sabemos a resposta para isso. É o que estamos tentando descobrir.” Certamente, automatizar esse tipo de pesquisa poderia ajudar a levantar mais dados e, em última instância, salvar mais vidas.

Se não fosse o hackathon, é pouco provável que o Feel4Life tivesse chegado à fase de protótipo ou, para ser franca, que qualquer um dos projetos que foram executados naquele fim de semana tivesse visto a luz do dia.

## Diversificar funciona
Quando decidimos organizar o Emotion Lab’16, tudo o que queríamos era ver o que um grupo de pessoas criativas e apaixonadas poderia fazer com a inteligência artificial das emoções. Ao final daquele fim de semana, tivemos um lampejo de como seria um mundo de IA das emoções. O mundo que vislumbramos é cheio de compaixão, divertido, útil, consciente e sem medo de lidar com assuntos delicados. Será empático, consciente dos sentimentos dos outros e sensível a suas necessidades.

Em última análise, o Emotion Lab acabou se transformando em um protótipo, um novo modo de “criar” tecnologia, tornando-a mais responsiva às necessidades tanto dos criadores quanto dos usuários, abrindo o campo para pessoas que acreditavam não ter espaço próprio neste mundo.

A diva da computação afetiva

O livro Decodificada conta a trajetória de uma empreendedora egípcia nos EUA

Rana el Kaliouby era uma garotinha de seis anos no Cairo quando ela e as irmãs ganharam dos pais um videogame Atari. “Fiquei menos interessada no aparelho e mais na dinâmica social da tecnologia: como ela aproximava nossa família”, disse em uma entrevista.

O interesse pelo impacto da tecnologia nas pessoas a levou, muitos anos depois, a estudar ciência da computação no Cairo, fazer um PhD no Reino Unido e a trabalhar como pesquisadora no renomado MIT Media Lab, nos Estados Unidos. Foi no Media Lab que ela e a colega Rosalind Picard criaram o que viria a ser a Affectiva, empresa pioneira em “emotion AI”, ramo da ciência da computação dedicado a levar a inteligência emocional para o mundo digital.

Rana e Rosalind não tinham experiência empresarial quando, em 2009, rodaram o Vale do Silício apresentando um algoritmo de reconhecimento facial e das emoções a companhias de venture capital. “Nosso pedigree MIT nos garantia certo respeito (…), mas, para o mundo conservador dos investidores, parecia estar estampado em nossa testa ‘alto risco’, ‘diferente’ e até mesmo ‘perigoso’”, escreve Rana em Decodificada. Mesmo assim, deu certo.

Hoje a Affectiva trabalha para mais de um quarto das empresas presentes no ranking Fortune Global 500. Seu sistema de inteligência artificial tem aplicação em áreas como autismo, distúrbios de sono, aprendizagem a distância e comportamento do consumidor. Reconhecida como cocriadora da computação afetiva, Rana foi considerada uma das 50 mulheres mais importantes no setor de tecnologia nos Estados Unidos, pela revista Forbes, e uma das 40 pessoas mais inovadoras com menos de 40 anos, pela Fortune. (Redação HSM Management)

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