Marketing e vendas

O varejo pós-covid

Como o Brasil pode se inspirar na China para acelerar seu crescimento?

Ticiana Werneck

É colaboradora de HSM Management e especialista no setor varejista; já cobriu o NRF seis...

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Um país com 1,4 bilhão de habitantes, em que as políticas públicas incorporam a mentalidade de experimentação, buscando escalar rápido o que dá certo. É o oposto dos governos ocidentais, nos quais o objetivo é minimizar riscos e enfrentar as mudanças com cautela. O encontro de mentes entre os setores público e privado é estimulado, assim como a busca pelo novo (o mote “o futuro é melhor” molda o pensamento dos chineses). Lá, a inovação e a competição são estimuladas tal qual uma gigantesca startup.

Nas últimas décadas, o país foi responsável por 30% do crescimento mundial. Em 2020, com a Covid-19, deverá ser a única grande economia a crescer (algo entre 1% e 5%). “Na base desse crescimento intenso está uma visão de longo prazo e o investimento em tecnologia”, afirma Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil em Pequim e consultor.

Esse modelo torna o país líder em segmentos como smart cities e, em breve, em inteligência artificial, tecnologia em que está investindo pesadamente. “O país tem seu plano nacional de desenvolvimento, com orçamento de quase US$ 15 bilhões, para fazer isso acontecer”, comenta Caramuru, que mora na China há 12 anos, para quem “viver aqui é experimentar o futuro sem envelhecer”.

O consultor foi um dos painelistas do seminário digital “China pós-Covid-19: o papel da inovação e ecossistemas”, realizado pela BTR-Varese, que apresentou o panorama chinês e as inovações do país para uma plateia online composta de grandes nomes do varejo brasileiro.

É na esteira da cultura digital chinesa que o new retail se formou. Nele, há uma obsessão por dados, que permite às empresas ultrapassarem fronteiras de canais e negócios. E as oportunidades de crescimento são exponenciais, em especial em cinco fatores, que são destacados a seguir.

## 1. Reinvenção da loja
No novo varejo, a loja é mais do que um lugar para comercialização de produtos. “Ela é um lugar de experiência e relacionamento, uma plataforma de serviços e de logística, que funciona para captura e ativação de clientes, com coleta de seus dados”, diz Alberto Serrentino, sócio da BTR-Varese.

Não existe solução única. “O encantamento do cliente não acontece só online. No Brasil, as lojas físicas ainda exercem enorme importância no relacionamento das marcas com os clientes, na socialização. Nisso, estamos mais avançados que os chineses”, compara José Galló, presidente do Conselho da Renner.

## 2. Ecossistemas
Nessa nova forma de conexão, cria-se uma dinâmica diferente de desenvolvimento de negócios. Nos ecossistemas, as empresas passam a se organizar em plataformas que integram varejo, mídia, serviços financeiros, pagamentos digitais e logística, em prol de serviços diversificados que não se limitam a categorias.

Muito além de marketplaces, os ecossistemas colocam os consumidores no centro da estratégia para desenvolver soluções para suas necessidades, cumprindo um papel estratégico muito maior do que o do ponto de venda tradicional.

A estrutura dos ecossistemas digitais se assemelha a uma cebola: no centro está o núcleo, a marca-mãe, na camada interna estão as empresas-gerentes, e nas externas, as parceiras. No caso da gigante chinesa Alibaba, as empresas-gerentes, como Alipay, de soluções de pagamento; Alimama, de marketing digital; Alibaba Cloud, de armazenamento de dados, e Cainiao, de logística, entre outras, suportam as empresas-parceiras (sellers) que orbitam complementando o mix.

Outro forte exemplo de ecossistema digital veio do mundo tradicional dos seguros. A Ping An, que em 2019 somou uma receita de US$ 21 bilhões, começou sua transformação digital há alguns anos. Hoje é uma potência digital. Em seu ecossistema, ela oferta uma gama diversificada de serviços, com 33 empresas complementares, que vão de fintechs a provedores de soluções digitais e locadoras e concessionárias de veículos. A Ping An emprega inteligência artificial em seus processos de recrutamento e treinamento de agentes de seguro, assim como no atendimento ao cliente. A interferência humana, ou atrito, é quase zero. No caso de um sinistro, o segurado abre o app e filma o carro em 360 graus. Por meio de IA, o app analisa o vídeo e calcula, na hora, os danos, assim como custo e tempo de reparo, e indica a oficina mais próxima.

O braço de saúde digital da seguradora inclui a prestação de serviços online de consultas, compra de medicamentos e uma rede de diagnósticos e clínicas-quiosque nas ruas (um modelo parecido com os caixas eletrônicos). Devido à extensão do país, a escassez de médicos é uma realidade em certas cidades. Mas o app Ping An Good Doctor reúne mais de mil médicos remotamente. Centralizados na mesma plataforma, eles fortalecem o sistema de IA condensando informações e diagnósticos.

Essa diversidade de tentáculos possibilitou que a Ping An não sentisse a crise da pandemia tão fortemente quanto outras seguradoras, já que seus serviços digitais de soluções remotas registraram aumento de demanda.
Wei Wei, especialista em ecossistemas de inovação e CEO da consultoria GSL Innovation, trouxe insights sobre o desenvolvimento dos ecossistemas chineses:

__Visão a partir do cliente.__ O superapp WeChat, com 1 bilhão de clientes, é um exemplo. Ele nasceu como um aplicativo de mensagens, mas hoje conta com 2 milhões de prestadores de serviços integrados. O cliente resolve toda a sua vida no aplicativo sem precisar baixar mais nada para seu celular. Wei Wei entra cerca de 30 vezes por dia no concorrente Alipay, do Alibaba. Lá, a consultora paga contas de casa, pede táxi ou comida, compra ingressos de cinema, reserva viagens, entre outras mil possibilidades de serviços e produtos, e vai acumulando pontos que revertem em benefícios. Para atender às demandas específicas da pandemia, o Alipay disponibilizou, de um dia para o outro, uma cesta de conveniências com notícias resumidas e atualizadas, um portal de produtos relevantes ao período (de higiene a utilidades) e várias funcionalidades de saúde digital (testes e consultas online). Para eles, velocidade é ouro.

__Uso intensivo de dados.__ A visão focada no cliente só é viabilizada em larga escala pelo uso intensivo de dados. Por estarem presentes em todos os momentos da vida dos consumidores, esses ecossistemas conseguem entender melhor o público, identificam oportunidades de negócios e aceleram a entrega de soluções.

__Aquisições e parcerias.__ Os ecossistemas acontecem normalmente em duas fases. Um primeiro momento é a aquisição de empresas com serviços complementares. “O Alibaba comprou mais de 400 empresas, entre startups e companhias de outros segmentos, incluindo o varejo, enquanto o WeChat adquiriu 600 companhias nos últimos anos”, diz Wei Wei. “Isso dá uma capacidade imensa de entregar soluções para os clientes e aumentar a recorrência”, diz. Ao mesmo tempo, as parcerias são parte importante dos ecossistemas. “Nenhum ecossistema funciona sem parceiros, pois nenhuma empresa tem a agilidade e a capacidade de investimento para aproveitar sozinha as oportunidades que surgem. A colaboração com outros players é o que faz a força dos ecossistemas chineses”, diz ela.

__Explorar oportunidades.__ Nessa lógica, as empresas não buscam sinergias de negócios ou oportunidades de acordo com seu DNA. O que elas buscam é entender o consumidor, seus desejos e necessidades para, a partir daí, estruturar seus negócios para atender essas demandas. “Isso cria modelos de negócio como o do WeChat e torna os ecossistemas presentes em todos os aspectos do dia a dia. É um incrível potencial de relacionamento e fidelização de clientes”, completa Wei Wei.

É fato que desenvolver ecossistemas como esses exige uma imensa transformação cultural. “Para ser um ecossistema é preciso ter uma visão ampla e sistêmica de toda a cadeia do varejo. Só empresas com muita escala conseguem fazer isso”, analisa Frederico Trajano, CEO do Magazine Luiza. “Em um ecossistema, estamos falando em conexões entre milhões de consumidores e milhares de sellers e parceiros de negócios”, explica.

O Magazine Luiza é um dos grandes cases brasileiros em transformação digital e tem se posicionado como um ecossistema de negócios. Para isso, adquiriu nos últimos anos uma série de empresas para trazer competências complementares e transações mais recorrentes. “Um ecossistema precisa de escala e dados, e em setores de baixa frequência de compra você tem menos vantagem. Por isso aquisições como Netshoes, Estante Virtual e Época Cosméticos”, diz Trajano.

A partir daí, é preciso colocar camadas de serviços de pagamento, financeiros, marketing, logísticos, de mídia, entre outros. “Tudo o que fizemos para digitalizar o Magalu temos que disponibilizar também para o seller. Só assim conseguimos ter os elementos necessários para uma visão integral dos consumidores”, conta.

## 3. Cross border
Você, varejista brasileiro, está preocupado se o Alibaba virá para o Brasil? Pois ele já está aqui. Por ano, os brasileiros gastam R$ 10 milhões nos sites de e-commerce internacionais – uma grande parcela é gasta justamente no gigante chinês.

Então a questão é: quando as empresas brasileiras conseguirão adquirir essa mesma relevância lá fora? Em vez de fazer o caminho da internacionalização pelas vias tradicionais, ou seja, criando marcas, abrindo lojas e cuidando de toda operação logística no novo país – e investindo altas somas –, que tal antes testar o mercado por meio do e-commerce cross border (ou “transfronteiriço”)? Foi essa a provocação do evento.

Na China, o cross border é uma parte importante do varejo, permitindo que os consumidores locais acessem marcas de todo o mundo. “As marcas brasileiras ainda usam pouco essa oportunidade”, afirma Serrentino.

O comércio eletrônico chinês é três vezes maior do que o americano. O país movimentou em 2010 US$ 1,93 trilhão em vendas, com 900 milhões de clientes (equivalente a cerca de 4,5 vezes a população brasileira). “Atualmente, 40% das vendas online no mercado chinês são de produtos internacionais. O consumidor busca ativamente novidades e já tem a cultura digital”, afirma Victoria Stive, especialista em cross border para a China. Somente o Tmall, portal do Alibaba para compras de produtos internacionais, tem 280 milhões de clientes ativos, número maior do que a população economicamente ativa dos Estados Unidos.

Para ela, existe espaço para produtos brasileiros no mercado chinês. “Há poucas marcas brasileiras, como Havaianas, Ipanema e Melissa. E os produtos do País são vistos de forma positiva pelos consumidores”, diz.
A consultora fez recomendações para quem deseja testar o mercado chinês:

__Foque o cliente e diversifique os canais de comunicação__
Os consumidores digitais trafegam em diversos canais de comunicação. Para alcançá-los, é preciso conhecer seus hábitos. “É importante construir presença digital em várias plataformas, como o Redbook (mistura de rede social e compras), ou TikTok (vídeos curtos) para que o cliente seja impactado com mais frequência”, afirma.

__Invista no live streaming__
Mais do que em qualquer lugar do mundo, o live streaming é a ferramenta de engajamento do momento no mercado chinês. As medidas de distanciamento social provocaram a aceleração de um fenômeno iniciado pelo Alibaba há dois anos: eventos online, como festas, desfiles de moda e apresentação de produtos, misturando entretenimento e consumo. “Na China, as cinco principais plataformas de live streaming somam 2,6 bilhões de usuários. Só o WeChat conta com mais de 1 bilhão de usuários”, explica.

## 4. Mobilidade exponencial
Com uma velocidade 100 vezes maior e uma latência (tempo de resposta) 10 vezes menor que a da 4G, a 5G – que deve chegar ao Brasil em 2021 – permitirá o desenvolvimento de novos modelos de negócios baseados em dados e na conectividade.

__O potencial transformador da comunicação 5G no varejo será enorme.__
Atualmente, 42 países já contam com serviços de quinta geração e um total de 125 nações estão investindo na tecnologia, que viabiliza aplicações de Internet das Coisas (IoT), smart cities e carros autônomos, entre outros. Com mais dados, aumenta a capacidade de engajar consumidores, empoderar colaboradores, otimizar as operações e transformar produtos e serviços.

## 5. Pagamentos digitais
A explosão dos meios de pagamento digitais é uma das grandes marcas da transformação do mercado chinês. Simplificando a tecnologia com o uso de QR codes e contando com características próprias, como o salto direto das transações em dinheiro ou débito para o digital, a China mergulhou em uma nova maneira de relacionamento financeiro dos clientes com as empresas. E a concentração do mercado nas mãos do Alipay (do Alibaba) e WeChat Pay (da Tencent) fez dos meios de pagamento digitais a alavanca do desenvolvimento de ecossistemas.

A criação de carteiras digitais viabilizou a formação de ecossistemas. “É o que deu ao Alibaba e à Tencent a capacidade de conhecer a fundo os clientes e trazer conveniência, aumentando a relevância do uso de seus apps e estimulando outras empresas a fazerem parte de suas plataformas. Em uma espiral positiva, isso estimulou ainda mais o crescimento das transações
digitais”, explicou Zhaokai He, vice-diretor da Wallyt Marketing.
Com a pandemia, surgiram novos desafios; por conta do distanciamento social, “As pessoas passaram a comprar mais online e avançaram para muitos outros segmentos de mercado”, diz He. “Em Hong Kong, por exemplo, as transações online subiram mais de 50%, tanto no e-commerce quanto no uso de transações físicas contactless. As carteiras digitais já eram fortes entre os chineses quando viajavam para o exterior. Com a Covid-19, seu uso se acelerou no varejo local”, completa.

No Brasil, o mercado de meios de pagamento passará por uma grande transformação, a fim de tornar as experiências mais simples, rápidas e práticas, conectadas a dados. “Para o cliente, o pagamento é um momento de atrito e, por isso, diminuir o tempo das transações é a chave”, analisa Carlos Formigari, presidente da Itaucard.
“Vamos enfrentar um processo de ‘destruição criativa’, focado em experiências que sejam relevantes para os clientes”, diz Fábio Coelho, presidente do Google Brasil.

Segundo ele, o Pix, sistema de pagamentos instantâneos do Banco Central, será muito importante nesse novo cenário competitivo. “Com o Pix, teremos mais 40 ou 50 milhões de pessoas conectadas ao sistema bancário, com redução de custos, e as empresas do setor bancário precisarão se reinventar para esse novo ambiente de negócios”, acredita Coelho.

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