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Recomeço em casa, no trabalho e na cidade

Já é possível saber muito do que muda depois da pandemia nos ambientes doméstico, profissional e urbano. Graças à tecnologia, algumas novidades chegam mais rápido

Peter Cabral

É cientista político com especialização em economia, gestão e programação. Especialista em mobilidade urbana, cidades...

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Os planos mudam. Mas, em 2020, mudaram para valer. A pandemia do novo coronavírus é um evento black swan, o cisne negro de Nassim Taleb, que de tempos em tempos surge para desorganizar e reorganizar tudo.

Por todo o planeta, as pessoas foram forçadas a alterar suas rotinas. O espaço entre acordar e produzir demorava demais e gerava um enorme estresse logo no início da manhã. Com o home office, a realidade é outra. O café passa a ser com a família e, para chegar ao trabalho, basta se conectar à internet.

Surgiram novos hábitos. Tanto as empresas quanto os funcionários descobriram que, apesar do enorme desafio de adaptação, a produtividade não caiu, as reuniões continuaram acontecendo, projetos foram desenvolvidos com sucesso e até ofertas públicas de ações, ou IPOs, na sigla em inglês, ocorreram durante a quarentena.
Nos três primeiros trimestres de 2020, o volume captado em ofertas de ações é 20,5% maior que no ano passado. De acordo com a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), R$ 60 bilhões foram captados até setembro, sendo quase R$ 14 bilhões em IPOs. A B3 ganhou 900 mil novos investidores durante a pandemia.

## Repactuando acordos
Os bons resultados fizeram as organizações repensarem o que deve ou não ser mantido. A Peugeot, por exemplo, comunicou que todos os colaboradores que não fazem parte da produção devem ficar em trabalho remoto permanentemente.
Microsoft, Twitter, Bradesco e tantas outras tomaram a mesma decisão.
Segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), 15,9% das negociações coletivas deste ano incluem o tema trabalho remoto. No ano passado, essa questão aparecia em apenas 2,4%. Há pelo menos seis projetos de lei em tramitação no Congresso para regulamentar o teletrabalho, que já é previsto pela CLT desde 2017.

Para as organizações, a medida traz benefícios como redução de custos com escritórios amplos, preocupação com estacionamento, acesso de transporte público, refeições (restaurantes e refeitórios), entre outros. Para os colaboradores, também há vantagens, como eliminar o deslocamento, mais qualidade de vida, menor custo com transportes, mais tempo para atividades físicas, estudos, possibilidade de estar com a família, e ter uma alimentação mais saudável.

É importante destacar que o trabalho remoto não é para todo mundo, nem para qualquer função. Algumas atividades exigem a presença do profissional. Há também quem gosta de encontrar pessoas e não tem estrutura em casa para se adequar às necessidades. Isso vai desde um ambiente apropriado, com privacidade, até wifi e equipamentos. A Tim, por exemplo, fechou acordo em setembro que fornecerá mobiliário, computador, além de ajuda de custo de 80 reais para energia e internet. O auxílio-refeição é mantido, mas o vale-transporte não.

A legislação trabalhista é justa, mas foi lavrada para um mundo analógico. O que se configura a partir de agora é uma situação completamente diferente, que traz diversas inconsistências que precisam ser sanadas. Por exemplo: o que diferencia um profissional que trabalha remotamente de um terceirizado? Quais são os direitos e os deveres de cada um? A repactuação deve criar um ambiente virtual seguro, estabelecer divisões entre trabalho e vida privada e garantir a infraestrutura mínima para a realização das atividades.

Quais serão os critérios para avaliação profissional? As horas dedicadas ao trabalho são secundárias diante da importância da entrega e do cumprimento de prazos. Mais do que nunca, performance individual, autonomia e proatividade são colocadas à prova. Nessa ressignificação de valores, o sentimento de dono e a confiança entre empresa e colaborador ficam mais fortes.

## Mudança nas cidades
Os impactos das novas formas de trabalho vão além das organizações e dos profissionais. Se as pessoas mudam suas rotinas, as cidades sentem as consequências. Bairros empresariais vivem do movimento gerado pelos escritórios. Sobram vagas em estacionamentos; restaurantes que ficavam com filas nas portas têm menos rotatividade de mesas no horário do almoço; bares perdem o
happy hour; escolas de idiomas têm menos alunos; academias de ginástica express perdem clientes.

Os informais são fortemente afetados. Eles geram grande impacto na economia, porque representam 40% dos trabalhadores ocupados no País – cerca de 38 milhões de brasileiros, segundo o IBGE. O mercado imobiliário também sofre. Torres imensas que hoje são sedes de empresas talvez não façam mais sentido.

Com parte das pessoas trabalhando de casa, o trânsito diminui, há redução no estresse da rua e o impacto é sentido no transporte público. Eventualmente, linhas de ônibus podem ser remanejadas segundo a nova demanda e a digitalização permite controle de disponibilidade e ocupação em tempo real. A sensação de segurança também muda, com menos gente pelas calçadas.

É hora, então, de tornar a vida mais prática. Imagine uma cidade onde se possa viver de forma local, com tudo ao alcance a pé ou numa breve viagem de bicicleta. O conceito “15 minutes city” surgiu com a ideia de que se a pessoa trabalha onde vive, todas as demais atividades devem estar a no máximo 15 minutos de distância. Para isso, os bairros se tornam mistos, com restaurantes, padarias, escolas, áreas de lazer, parques etc. Uma forma eficiente de adequar o ritmo das cidades aos novos tempos.

Prefeituras como as de Barcelona, Melbourne e de alguns municípios dos países nórdicos perceberam, durante a pandemia, a necessidade urgente de repaginação da geografia urbana. Isso não significa construir uma cidade nova, e sim readequar, reorganizar. Mudar o tecido urbano. A prefeita da capital francesa, Anne Hidalgo, criou o projeto “Paris Respira”, que transformou ruas em pistas pop-up para bicicletas.

A estratégia de placemaking propõe o urbanismo tático, revigorando o bairro por meio de nudges, com pequenas intervenções que preservam as características originais. São soluções leves, rápidas e baratas que transformam o ambiente.
Em todo o mundo surgiram exemplos de como fazer adaptações sem investimentos tão altos. Milão anunciou 35 quilômetros de vias para bicicletas e pedestres.

Bruxelas criou 40 quilômetros para bicicletas. Montreal, 320 quilômetros de vias para pedestres e bicicletas. Berlim readequou áreas residenciais e inovou com os lugares e as ruas felizes – ruas que ficam fechadas em alguns dias e horários para programações culturais.

## A vez do meio ambiente
Amsterdã elaborou o conceito de city donut, mirando a redução de poluentes. Nessa mesma direção, quatro cidades brasileiras se comprometeram a zerar as emissões de carbono até 2050. Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador integram o C40 (que defende os objetivos de desenvolvimento sustentáveis propostos pela ONU) e precisam criar políticas públicas para atingir essa meta.

O incentivo coletivo e global fortalece a causa. No entanto, a pandemia exige sensibilidade com reações hiperlocalizadas. Isso significa que as soluções enlatadas não funcionam. É necessário preservar as características do bairro, da cidade, da realidade de cada região.

Diante da pressão da sociedade por questões ambientais e da disposição para experimentar novos hábitos, esta é uma grande oportunidade para um recomeço. É preciso buscar o equilíbrio, encontrar uma vivência mais doce. Está nas mãos de quem desenvolve políticas públicas criar um legado. Governantes e sociedade civil precisam repaginar o ambiente urbano, e este é o momento.

## Tecnologia, presente!
A tecnologia já existe. A maturidade legal, técnica e financeira das PPPs – Parcerias Público-Privadas – permite que os investimentos aconteçam onde é benéfico para a sociedade. Os estímulos econômicos podem ser criados para favorecer a baixa emissão de carbono, assim como bônus ambientais com subsídios para compra de veículos elétricos.

Nessa reformulação, veículos autônomos, conectados, elétricos e compartilhados – ACES, na sigla em inglês – continuam sendo uma opção interessante para as cidades. A pandemia traz mudanças de comportamento e consumo – acesso versus aquisição. Questões sanitárias, segurança, tempo e confiabilidade pesam nas decisões dos usuários, tanto que pessoas trocam ônibus e metrô por micromobilidade e carro.

O futuro da mobilidade é digital. Os setores público e privado vão se aproximar cada vez mais na aplicação de tecnologias exponenciais visando democratização, demonetização e dematerialização do acesso a produtos e serviços.

A concentração humana em cidades é irreversível. As oportunidades de trabalho, a mobilidade social e a construção de riqueza estão em ambientes urbanos. Os processos de migração tendem a aumentar. De acordo com a ONU, 70% da população mundial vai morar em cidades até 2050. Por isso, este é o “século urbano”. Nos próximos dez anos, surgirão seis megacidades (com mais de 10 milhões de habitantes) – Bogotá, Chennai, Luanda, Chicago, Dar es Salaam e Bagdá.

As cidades do futuro devem ser planejadas de forma sustentável, para que se tornem verdes e não cinza. Historicamente edificadas e estruturadas com os veículos motorizados no centro das decisões, surge a oportunidade de torná-las mais amigáveis, justas, ambientalmente corretas, saudáveis, e tendo a convivência como foco. A verdadeira cidade inteligente é aquela que se apropria da tecnologia para beneficiar a vida humana.

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