Tecnologia e inovação

Lawtechs prometem mudar o setor jurídico do país

Ágeis e inovadoras, startups voltadas ao mercado jurídico ganham visibilidade e já estão no radar das grandes bancas de advocacia do brasil

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Empreendedor em série, Thomas Eckschmidt acompanhou de perto o avanço do uso da tecnologia nas mais diversas áreas, do agronegócio às finanças. Há cinco anos, porém, percebeu que, embora as barreiras fossem grandes, a adoção de ferramentas tecnológicas ajudaria a agilizar o tão moroso sistema jurídico brasileiro, assim como já vinha acontecendo em outros países, entre eles os Estados Unidos. “Como consultor, eu havia ajudado a resolver 12 conflitos empresariais de grande porte quando trabalhava nos EUA”, diz Eckschmidt. “Aprimorei a metodologia e desenvolvi um software para solução de conflitos entre empresas e clientes, agilizando o pagamento e desafogando a Justiça”. A plataforma de mediação de conflitos ResolvJá foi lançada em 2015, permitindo que os clientes resolvessem os problemas diretamente com as companhias, quando o mercado ainda desconhecia o conceito e não tinha maturidade para compreender o produto. “Aos poucos, porém, as empresas foram percebendo as vantagens de firmar acordos extrajudiciais, de maneira 100% virtual, com índices próximos de 80% na redução dos custos e um percentual ainda maior de economia de tempo”, diz o empresário, que se juntou a outros sócios no comando do negócio. “O resultado sai em média entre 30 e 60 dias, contra cinco anos nos trâmites tradicionais.”

De lá para cá o cenário mudou bastante. As chamadas lawtechs (do inglês law, que significa lei/legislação e tech, abreviação de tecnologia) ou legaltechs, startups voltadas ao segmento jurídico, ganharam fôlego nos últimos dois anos. De acordo com a Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L), de 2017 a 2019 o número de startups jurídicas aumentou em ritmo exponencial, apresentando um crescimento de 300%. Já são mais de 150 associadas à entidade, e há uma estimativa que no mercado como um todo cheguem a 400, oferecendo soluções tecnológicas para aprimorar serviços jurídicos.

Embora tenham atuação nacional, ainda estão muito concentradas no Sul e no Sudeste. São Paulo abriga 25%, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul 10% cada um, os demais estados apresentam índices bastante fragmentados. Nos quadros da AB2L estão divididas em 13 categorias: analytics e jurimetria; automação e gestão de documentos; compliance; conteúdo jurídico; educação e consultoria; extração e monitoramento de dados públicos; gestão de escritórios e departamentos jurídicos; inteligência artificial (setor público); redes de profissionais; regtech; resolução de conflitos online; taxtech; civiltech e real estate tech [Veja quadro na pág. 12]. 

“A junção de tecnologia e mundo jurídico é um fenômeno global”, afirma Amure Pinho, presidente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups). Nos Estados Unidos, onde o mercado está um pouco mais maduro, as operações de compra, venda e investimento em lawtechs movimentaram US$ 1,2 bilhão em 2018. Pesquisa realizada pela Zion Market, com sede na Índia, revela que o segmento de inteligência artificial aplicada ao campo de advocacia movimentou US$ 3,2 bilhões em 2018 e chegará a US$ 37,8 bilhões em 2026.  

“No Brasil, as startups nascem para modernizar um ambiente que ainda é muito analógico, moroso e amarrado”, ressalta Pinho. Ele tem razão. De acordo com o Relatório Justiça em Números 2019 (ano-base 2018), o volume de processos em andamento no País chegava a 78,7 milhões. Sem contar que o advogado gasta apenas 30% do seu tempo para focar aquilo em que é formado, os 70% restantes são desperdiçados em tarefas possíveis de serem automatizadas.

Ciente de que estava no caminho certo, Eckschmidt e os sócios investiram em 2016 numa spin-off da ResolvJá, a Melhor Acordo, solução para automatização de acordos judiciais, extrajudiciais e administrativos tanto para casos de consumo quanto trabalhistas. “Enquanto a ResolvJá trabalha com processos extrajudiciais, a Melhor Acordo trata de processos judiciais, com o objetivo de atingir 500 mil acordos em 2020”, afirma o empreendedor.

Com 25 anos de atuação e 150 profissionais na banca, o escritório Viseu Advogados é um dos usuários da plataforma Melhor Acordo. “Nosso foco são as empresas de relação de consumo, temos 40 mil processos em andamento, com uma média de 3 mil novos casos por mês”, diz o fundador Gustavo Viseu. “Sempre investimos muito em tecnologia e há dois anos temos acompanhado de perto o movimento das lawtechs”. Segundo Viseu, um terço dos novos casos são trabalhados na plataforma e desses 40% resultam em acordo. “Ao antecipar a solução para o consumidor, ele fica menos insatisfeito e a marca menos arranhada, sem contar a economia de tempo”, ressalta.

A mediação, arbitragem e solução de conflitos é uma das áreas que mais cresce no segmento de lawtechs, embora o desafio ainda seja grande. “O brasileiro não tem a cultura de fazer acordo antes de entrar com uma ação na Justiça e ainda é preciso mudar o mindset dos atores do meio jurídico”, diz Melissa Gava, fundadora e CEO da MOL, startup de mediação online, que oferece serviços de conciliação por meio de chat ou videoconferência entre as partes envolvidas num processo, com participação de um mediador. Segundo ela, no Brasil tem-se um monopólio de atuação grande por parte do Judiciário, com poucos players transitando na Justiça. “As legaltechs estão abrindo espaço, atuando de forma disruptiva na modernização de processos”, afirma. “A ideia é que fique na mão do Judiciário o que é realmente mais importante e necessário.”

Com uma carteira de clientes formada por grandes corporações como bancos, empresas de telefonia, varejo e saúde, a MOL já atendeu 54 mil processos e transacionou R$ 102 milhões em acordos. “O grande diferencial está na agilidade, 30 vezes mais rápido que o processo offline e 50% mais barato”, afirma Melissa. 

**A BUSCA POR EFICIÊNCIA**

À frente do JBM&Mandaliti, um dos maiores escritórios de advocacia do País, os irmãos Renato, Reinaldo e Rodrigo Mandaliti há mais de uma década veem a tecnologia como aliada do meio jurídico. Em 2012, lançaram o primeiro aplicativo para smartphone, que permite tratar fotos e transmiti-las diretamente para a pasta do processo. Também foram pioneiros na criação do primeiro robô de automação jurídica. Foi nesse ambiente que nasceu, em 2013, a Finch Soluções, lawtech que investe no desenvolvimento tecnológico de sistemas de automação e inteligência artificial para trazer mais eficiência e rapidez ao mundo jurídico. 

Especializada em processos de contencioso de massa, isto é, em grandes volumes de pequenas causas das quais as grandes empresas são alvo, a Finch tem na jurimetria um de seus pilares. Usa IA para aplicar análises indutivas qualitativas e quantitativas no contexto jurídico e oferece base para uma tomada de decisão estratégica. Dessa forma, é possível levantar sentenças e acórdãos em todo o território nacional sobre determinado caso para aferição de tendência jurisprudencial. “O sistema consegue ler decisões judiciais e criar previsões fundamentadas nas tendências evidenciadas”, afirma Renato Mandaliti, observando que, quando a startup foi criada, o escritório realizava em média 15 mil audiências por mês, e hoje entre 9 mil e 10 mil ficam por conta da Finch. 

“Depois de muita insistência, começamos a ver agora uma mudança de comportamento do setor jurídico, que aos poucos começa a trabalhar de forma colaborativa, dando ao advogado a chance de se ocupar com o que realmente deveria ser seu principal foco: traçar estratégias de defesa para seus clientes”, diz Mandaliti.

A opinião é compartilhada pela advogada pernambucana Karla Morais, que encontrou na própria dificuldade em lidar com a tecnologia uma oportunidade para agilizar e facilitar a vida dos advogados. Em 2017, ela colocou em operação a KOY Inteligência Jurídica, uma plataforma que oferece gerenciamento de contratos, agendamento automático e interpretação de elementos jurídicos. Na prática, usa inteligência artificial e machine learning para acelerar e automatizar processos em escritórios e departamentos jurídicos de empresas. “Nós concentramos, com o uso do Watson da IBM, 150 sistemas da Justiça brasileira, entregando dados e jurimetria com mapeamentos e classificações”, declara. Os resultados, segundo ela, são surpreendentes. “Em dois meses encontramos quase R$ 400 milhões em recursos que estavam perdidos nos processos, um trabalho que no modelo tradicional levaria pelo menos dois anos”, diz. “Desde o fim de 2017 já movimentamos 20 mil processos, em alguns deles, o escritório de advocacia teve um ganho de receita de 56% e de aproveitamento de recursos de 32%.”

Quem também enxergou uma nova oportunidade dentro da rotina do próprio escritório de advocacia foi o catarinense Alan Marcos da Silva. Em 2017, ele abriu a Consolide, lawtech especializada em registro de marcas online. “O objetivo é desburocratizar esse processo que não é necessariamente uma atividade privativa de escritórios de advocacia, mas que, pela detenção do conhecimento, acaba sendo realizado por eles”, afirma. Com a oferta de serviços 100% online, a startup garante pagamento e assinatura de contrato digital. No total, já somaram mais de 6,2 mil registros de marca, com uma média de 4 mil atendimentos ao mês para solucionar dúvidas e explicar processos.

**BONS VENTOS**

Para Pedro Pereira Roso, cofundador da Docket, as oportunidades de novos negócios nesse segmento se multiplicam no Brasil, considerado um dos países com maior número de processos em andamento em todas as áreas do Judiciário. “Mas ainda estamos no início da curva de migração dos departamentos jurídicos das empresas do offline para o online e ainda apenas uma pequena parcela dos escritórios de advocacia estão automatizados.” Ciente de que estava diante de um mercado nascente, Roso e mais dois sócios, entre eles um advogado, em nove meses colocaram a startup Docket no ar. Trata-se de uma plataforma SaaS (Software as a Service) que permite resolver questões que envolvem a obstrução de documentos diversos.

“Toda a papelada relativa à Junta Comercial, ambiental, de prefeitura, matrículas, certidões, análise de crédito ou de operações de due diligence em todo o País pode ser tratada na plataforma”, diz Roso. “Em média, em cada 100 documentos entregues, nós reduzimos cerca de 1 mil horas de trabalho de times de backoffice.”

E não precisa ser da área jurídica para constatar que a demanda existe e as oportunidades batem à porta. Depois de ver a mãe ser despejada por conta da perda de prazo pelo advogado da família, Vinícius Marques, que já tinha uma desenvolvedora de softwares, decidiu criar uma ferramenta para agilizar o monitoramento de processos. A EasyJur entrou em operação em 2016 como uma plataforma que acompanha de forma automática os processos relacionados ao nome do advogado e ao seu número de OAB, enviando notificações sempre que o status é alterado. 

“Nós desenvolvemos algoritmos proprietários que, combinados à inteligência artificial, permitem a análise preditiva de precedentes e jurisprudência integrada em uma única plataforma, aumentando o nível de assertividade na produção de teses para petições iniciais e contestações”, destaca Marques. Quase quatro anos depois, já são quase 50 mil advogados usando a plataforma.

> PARA FACILITAR A VIDA
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> _Organizando dados ou mediando conflitos online, as lawtechs atuam em 13 categorias, entre elas:_
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> **Analytics e jurimetria –** Desenvolvem ferramentas para antecipar resultados de decisões judiciais, a partir de dados. Usam a inteligência artificial para potencializar análises complexas e cruzamento de informações em processos de naturezas diversas.
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> **Automação e gestão de documentos –** São responsáveis pelo desenvolvimento de softwares para automatizar documentos jurídicos, além de atividades de gestão de todo o ciclo de vida dos contratos. Entre outros serviços, oferecem assinatura digital e alerta de vencimento de contratos. 
>
> **Compliance –** São empresas que se dedicam a promover ações voltadas ao cumprimento das normas legais (nacionais e internacionais) que regulam determinado mercado. Na prática, há o desenvolvimento de ferramentas que trabalhem pela conformidade de processos de trabalho, não só pelo ponto de vista legal, mas também pela perspectiva de eficiência, disseminando a cultura de integridade nas organizações.
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> **Extração e monitoramento de dados públicos –** Empresas cuja missão é monitorar e promover a gestão das informações públicas que estão disponibilizadas para consultas online. 
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> **Gestão jurídica –** As lawtechs com esse perfil abraçam a tarefa desafiadora de otimizar rotinas jurídicas, facilitando a gestão de escritórios de advocacia e dos departamentos jurídicos como um todo. Desenvolvem ferramentas não só para acompanhamento de processos, mas também para gestão financeira, captação e manutenção de clientes.
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> **Redes de profissionais ­–** São sites e redes de conexão que estabelecem contatos entre profissionais de Direito. 
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> **Regtech –** São startups que oferecem soluções tecnológicas para resolver problemas gerados pelas exigências de regulamentação. Algumas companhias desse nicho fazem o trabalho de analisar dados de diversas fontes para facilitar o monitoramento dos trabalhos legislativos, por exemplo.
>
> **Resolução de conflitos online –** Desenvolvem soluções online para resolver conflitos entre as pessoas sem a necessidade de recorrer à Justiça. São soluções tecnológicas que envolvem o trabalho de mediação, arbitragem e negociação de acordos alternativos ao processo judicial, a fim de desafogar a Justiça.

**QUANTO MAIS, MELHOR**

Multinacional de tecnologia, especializada no desenvolvimento de softwares para gestão jurídica, fiscal, tributária, contábil e de comércio exterior, a Thomson Reuters (TR) criou o FLIC – Future Law Innovation, um centro de inovação dedicado ao Direito, com sede na cidade de São Paulo, que desde 2018 funciona, também, como aceleradora de startups voltadas à área jurídica. No total, nove empresas foram selecionadas para um período de aceleração que pode variar de 90 a 120 dias, e, destas, duas já têm suas soluções prontas para rodar no mercado, uma voltada a contract analytics e outra, a indicadores. A primeira é plugada na plataforma jurídica da TR, que usa machine learning para identificar padrões, analisar e aprimorar contratos e gerar escalas para departamentos jurídicos ou escritórios. A solução compara os modelos de contrato padrão e aponta as cláusulas e termos dos novos contratos que não estão adequados, chamando a atenção para a interface humana para os pontos destacados. Segundo Neto, garante compliance, economiza tempo e aumenta a produtividade. Já a Juristec cria painéis de indicadores (dashboards) dos departamentos jurídicos, entre eles valor das causas e das negociações, apontando se estão acima ou abaixo das médias de mercado e do próprio escritório, além de acompanhar a performance de cada advogado.

“Nós acreditamos no conceito da inovação aberta e colocamos isso em prática nos conectando com startups dispostas a adicionar seus serviços aos nossos”, afirma Menotti Franceschini Neto, líder de value proposition para corporates da TR. “As lawtechs têm um papel importante de evitar que processos se percam ou levem anos para serem solucionados. É a tecnologia trazendo mais eficiência e agilidade ao sistema jurídico como um todo.” 

Na visão de Pinho, presidente da Abstartups, assim como aconteceu em um passado recente com as fintechs – startups da área financeira –, as lawtechs atravessam um momento de maturação. “Há quem já tenha percebido que se trata de um movimento sem volta e que a adoção da tecnologia pode trazer muitos benefícios, enquanto outros que ainda jogam contra para que esse tipo de negócio não vingue”, afirma. “O próximo passo será a adoção de forma colaborativa, com benefícios para as startups que precisam ganhar musculatura, para o sistema jurídico do País que se tornará mais ágil e para o consumidor que verá seus processos resolvidos de forma mais rápida.”

Para Henrique Parada, sócio-fundador da Intelligenti, lawtech do Grupo Stefanini – que oferece soluções que permitem gerir e conduzir os casos internamente por meio de um escritório parceiro –, o segmento em breve passará por uma depuração. “Sobreviverão as que trouxerem resultados factíveis para o mercado, as que oferecerem soluções efetivas para o dia a dia dos escritórios e dos departamentos jurídicos das empresas”, afirma. 

Considerado uma das mais tradicionais bancas do País, com 75 anos de operação e 500 advogados, o escritório Pinheiro Neto Advogados há tempos vem lançando mão da tecnologia no seu cotidiano. “Nós acreditamos muito na tecnologia aplicada ao setor jurídico, principalmente no que diz respeito à análise de dados, que proporciona resultados de maneira muito eficiente”, afirma Larissa Galimberti, sócia da área de tecnologia do Pinheiro Neto. “Tanto acreditamos que em 2018 patrocinamos o primeiro Startup Weekend Legal Tech da América Latina.” Na visão da advogada, um dos pontos fortes das lawtechs é o seu caráter multidisciplinar, somando conhecimento de várias áreas como engenharia de dados, tecnologia, desenvolvimento de softwares e dos próprios advogados, na criação de novas ferramentas. 

Na visão de Galimberti, a expansão das lawtechs não está ligada ao custo de seus serviços, já que há muitas ferramentas a preços acessíveis, inclusive para escritórios e empresas de pequeno porte. “A barreira ainda é cultural”, finaliza.

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