“Eu sei o número de sutiã de todas as mulheres da China, e as que vivem em Zhejiang são as que usam o menor tamanho.” Quem fez a afirmação inusitada foi Jack Ma, fundador da gigante varejista Alibaba.
Dados. Ma tem uma verdadeira obsessão por eles. É um dos grandes segredos dessa empresa chinesa, cujo valor de mercado é estimado em mais de US$ 420 bilhões. Jack Ma é um dos pioneiros na adoção do conceito “New Retail”, cujo processo de decisão é baseado no uso intensivo de informações e dados. “Muito além da integração do online com o offline, o New Retail prega uma logística eficiente entre todos os canais, uma nova visão sobre meios de pagamento e uso de blockchain – ou seja, tecnologia para transação de dados de mercadorias, clientes e pagamentos com alto nível de segurança e custos menores”, explica Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC). “E no New Retail há o que Jack Ma chama de ‘policy’, uma política de negócios diferente do que o mercado já conhece, que inclui cultura digital, novos modelos de gestão e novos modelos de negócio.”
A bandeira Hema, de supermercados pertencentes ao Alibaba, já executa tais preceitos em suas cem lojas na China. A operação física é apoiada por uma plataforma online que utiliza a loja para realizar entregas em um raio de até três quilômetros em até 30 minutos, cobrando taxas de entrega baixa. A loja em si também merece destaque. “Ela funciona com muitas decisões baseada em dados – sortimento, preço, promoção –, com bastante tecnologia embarcada, com muitas ofertas de experiências para o cliente e com pouco atrito, principalmente na hora de realizar o pagamento”, comenta Terra.
Esse é apenas um exemplo de como o ambiente competitivo do varejo vem mudando no mundo governado pelo redemoinho digital. É um cenário com novas oportunidades para todos e um único caminho para alcançá-las – o dos dados. Isso explica a quantidade de novos entrantes, em especial, companhias industriais que buscam um contato direto com o consumidor por meio de canais digitais. “Essas empresas vêm se movimentando para captar dados e, assim, melhorar sua performance no varejo”, confirma Alexandre van Beeck, especialista em varejo que é sócio-diretor da
GS&Consult. Se antes as empresas industriais se concentravam na gestão de produtos, hoje sabem que precisam focar toda a jornada do cliente, que muito provavelmente começou na internet, em algum site de busca. Isso vale para comprar uma bateria para o automóvel ou até mesmo pó de café.
Inspiração não falta. Há desde a Apple, fabricante famosa por suas lojas, as Apple Stores, até a Nike, que recentemente lançou a House of Innovation, em Nova York, com ambiente de “ultraconveniência”. Tem um andar exclusivo para o sortimento que fala direto ao coração do consumidor local e recursos zero atrito – como pagamento por app, lockers para retirada de compras online e facilidades de automação e customização.
Ser uma indústria e passar a vender diretamente ao consumidor online exige planejamento para lidar com desafios, como o eventual atrito com distribuidores tradicionais, mas tem vantagens.
A primeira, já mencionada, é o acesso direto aos dados dos clientes e, a partir deles, a geração de valor estratégico para o negócio. Com esse conhecimento, pode-se ter produto, preço e sortimento melhores, para canais digitais e físicos, próprios ou não.
A segunda vantagem, como ressalta Terra, “é a de estar com o consumidor durante sua jornada de compra, que começa online”.
Também há o santo graal da “receita recorrente”. Vai na direção do que Scott Galloway, professor da NYU Stern School of Business, famoso por suas projeções (como a de que a Amazon compraria a Whole Foods quando ninguém pensava nisso), falou durante sua palestra nesta última edição do Big Show da NRF, maior evento de varejo da atualidade que aconteceu em Nova York em janeiro: recorrência. O professor usa o neologismo “rundle” (de “recurring bundles”), como são conhecidos os pacotes de compras recorrentes nos EUA. Empresas como Netflix, Spotify, Amazon e Playstation Plus crescem acima de 30% ao ano com sua oferta de recorrência.
Por fim, existe o uso do varejo como um gatilho para a transformação digital do negócio todo.
**CAFÉ DIGITAL**
A Melitta, famosa marca de pós de café, filtros de papel e produtos afins, lançou seu e-commerce, a princípio, para ficar mais perto de seu público. “Além de maior proximidade, queremos trazer novos consumidores para a marca, buscando pessoas que estejam inseridas no universo gourmet e online”, diz Marcelo Barbieri, presidente da Melitta para a América do Sul.
Como forma de diferenciar o que é vendido nas gôndolas do varejo físico, o e-commerce
Mellitta comercializa opções diferenciadas, acessórios exclusivos e a possibilidade de personalizar a compra escolhendo entre tipos de intensidade de acidez, doçura e mineralidade. Uma vez criado esse café personalizado, é possível assinar o serviço de entregas, passando a receber a quantidade desejada todos os meses em casa. Surge a vantagem da receita recorrente.
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**LÂMINA DE BARBEAR DIGITAL**
O caminho da assinatura, e da receita recorrente, foi o adotado pela Gillette ao ingressar no mundo online. Em 2018, a empresa expandiu sua plataforma de e-commerce Gillette Club em todo o Brasil. Com frete grátis, oferece o serviço de assinatura – e também a venda única de lâminas. É um novo modelo de negócio para a empresa. “O consumidor está mudando seus hábitos de compra e temos de ser protagonistas na hora de disponibilizar conveniência para ele”, diz Juliana Moretti, diretora de marketing de Gillette no Brasil.
A empresa não abre dados sobre a operação, mas, com um clube de assinaturas parecido, a startup norte-americana Dollar Shave conseguiu tanta adesão em seu país que, entre 2012 e 2017, reduziu a participação da Procter & Gamble, controladora da Gillette, no mercado de lâminas masculinas em mais de 13 pontos percentuais, de acordo com a Euromonitor International. A startup chamou tanto a atenção que, em 2016, foi adquirida pela Unilever por US$ 1 bilhão.
De lá para cá, a Dollar Shave passou de um serviço que vendia lâminas para algo maior; são hoje mais de 30 produtos de higiene e beleza masculina, uma revista física e digital e um posicionamento voltado a se distanciar da “hipermasculinização” que esse mercado normalmente imprime em suas campanhas. Segundo seu CEO, Michael Dubin, “o clube é uma vibe”, em alusão ao estilo de ser da marca, que prega inclusão e diversidade “para celebrar os diferentes tipos de homens”, como diz em sua última campanha publicitária.
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**BATERIA DIGITAL**
Ter dados e estar junto do consumidor incentivou a Baterias Moura a dar seu passo em direção a um e-commerce próprio, o Moura Fácil. Nele, o consumidor pode pesquisar o modelo
ideal de bateria para seu carro e solicitar a entrega, com instalação em até 50 minutos, ou agendá-la.
O ponto fundamental é que o modelo de negócio cumpre dois objetivos ao mesmo tempo: atende a uma demanda do consumidor por maior comodidade e preserva os elos da cadeia de distribuição, já que as entregas são feitas pelas mais de 30 mil revendas já existentes. “Queríamos aproveitar a força que já temos, que é a rede de revendedores, para entregar um novo serviço, colaborando inclusive para fazer muitos desses parceiros ingressarem no ambiente digital”, comenta Andréa Lyra, diretora de marketing do Grupo Moura. Assim, não houve atrito com a rede de distribuição.
A maneira como o projeto ficou em pé foi similar ao modo de operar das startups, o que envolveu muitos testes e aprendizados em alta velocidade. A cada 30 dias o projeto era revisto, adaptado às descobertas e alargado, englobando mais cidades. “Foi um choque, para nós, desplugarmos do modo tradicional de a indústria trabalhar, de achar que nossas verdades estavam cristalizadas”, revela Lyra.
Para ajudar na tarefa, a empresa contou com a agência de transformação digital MuchMore, um parceiro considerado peça importantíssima. “Mudamos nossa forma de pensar e nos surpreendemos com o tanto que aprendemos, olhando o projeto pela ótica do consumidor e o que ele valorizava”, acrescenta.
O Moura Fácil completou dois anos e, com os dados que conseguiu coletar até agora, Lyra comenta que já está sendo traçado um programa de relacionamento – recorrência, lembra? “Passamos a ter acesso a dados como marca do carro, perfil do consumidor, modelo da bateria e data de possíveis trocas ou manutenção, informações que usaremos para oferecer outros serviços de conveniência e melhorar o relacionamento com a Moura, marcando presença nessa jornada de compra”, pontua a diretora.
Mas o e-commerce foi só a primeira iniciativa digital. A empresa, fundada em 1957, na cidade de Belo Jardim, em Pernambuco, está empenhada em uma transição digital mais ampla. Essa busca envolve comitês multidisciplinares para acelerar a disseminação da nossa cultura digital e aproximar as pessoas de soluções e de processos de vendas digitalizados, além de aculturar toda a alta administração. “A plataforma Moura Fácil marcou o nosso despertar como empresa”, diz Lyra.
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**O QUE ESTÁ (MESMO) EM JOGO**
A pesquisa Digital Vortex, realizada pela Cisco, mostra que a transformação digital é capaz de gerar
US$ 2,8 trilhões de valor para o varejo mundial – US$ 1 trilhão advindo apenas de iniciativas ligadas ao aumento da eficiência operacional. É justamente aí, no aumento da eficiência
operacional nas vendas, que Van Beeck, da
GS&Consult, enxerga ouro puro. “A partir da boa análise de dados, é possível atingir a eficiência operacional nos pontos de contato e encontrar novas oportunidades de venda, algumas que nem estavam no radar”, argumenta.
Só que, para identificar ameaças e oportunidades no mundo digital, é preciso estar de fato inserido nele, e isso explica a avalanche de fabricantes montando e-commerces, ou aprofundando sua experiência com eles. Não à toa, Elon Musk, a mente por trás da montadora de carros elétricos Tesla, anunciou o fechamento da maior parte de suas concessionárias físicas, com exceção de algumas de alto fluxo de pessoas que servirão como showroom e centro de informações. A partir de agora, venderá carros apenas pela internet. Como diz o informativo da marca distribuído à imprensa, “será possível o consumidor comprar um carro da marca pelo celular em apenas um minuto, usá-lo por uma semana e devolver caso não esteja satisfeito”.
Em uma teleconferência com a imprensa, Musk argumentou que a mudança se deu para poder oferecer o menor preço para o novo
Modelo 3 (US$ 35 mil), e estabilizar financeiramente a empresa. “A mudança para o e-commerce ajudará a Tesla a cortar despesas operacionais. É uma decisão difícil mas acredito que é a decisão certa para o futuro”, disse o empresário.
**E O VELHO VAREJO?**
Será que o varejo tradicional acompanhará a transformação acelerada dos chineses e dos novos entrantes industriais? Vai depender. “Um grande erro cometido por alguns varejistas é acreditar que se faz transformação digital com algumas iniciativas digitais e alguns investimentos em tecnologia. Contratar uma agência de marketing digital, estar presente nas redes sociais ou desenvolver uma operação de e-commerce são passos necessários, mas eles fracassam caso não exista uma cultura digital sobre a qual essas iniciativas possam ser estruturadas”, argumenta Terra, da SBVC. Se pensarmos no varejo físico, é relativamente fácil cair na armadilha de aparelhar as lojas com vários penduricalhos tecnológicos para mostrar a todos que se está por dentro das tendências.
Então, o que o varejo tradicional deve fazer para não ser engolido? Grasiela Tesser, diretora executiva da NL Informática, dispara: “O segredo são menos telas coloridas e mais análise de dados”. “Muitos clientes ainda chegam até nós atrás de iniciativas que apareçam para o consumidor final. Mas o sucesso da empreitada está nos bastidores; ele só acontece quando várias iniciativas se combinam e se complementam, e muitas delas não piscam e não são robôs bonitinhos de exposição”, comenta.
Eduardo Terra é contundente: as varejistas precisam fazer com que seus colaboradores, sobretudo os executivos, adotem pensamentos, crenças e hábitos de fato digitais. Para ele, só assim seu New Retail tem chance de sair do papel e do discurso .