Em 2014, o CEO da Microsoft, Satya Nadella, afirmou que as mulheres não deveriam pedir aumento de salário, mas confiar na lei do carma. A repercussão dessa fala refletiu a tensão que existe nas comunidades corporativas e de investimentos: muitas vezes acreditamos que trabalhamos dentro dos limites da meritocracia, mas as evidências sugerem, cada vez mais, que esse não é o caso.
Está comprovado que nosso modo de avaliar pessoas e investimentos é afetado por distorções que atuam contra as mulheres e as minorias em geral. Por exemplo, as startups lideradas por mulheres têm mais dificuldade de obter financiamento do que as conduzidas por homens; as mulheres, não raro, não são contratadas ou promovidas em proporção igual aos homens, e a sanção da lei norte-americana Lilly Ledbetter Fair Pay pelo presidente Barack Obama em 2009, restaurando proteções contra a discriminação, só foi necessária porque as mulheres não são remuneradas nos mesmos patamares masculinos.
Sharon Vosmek, CEO da Astia, organização não governamental que ajuda mulheres a participar de empreendimentos de alta tecnologia, chegou a descrever o mundo da alta tecnologia como sendo “tão refém do mito da meritocracia que acabou deixando de lado o importante debate sobre gêneros”. (Não se considera a possibilidade de alguém nem sequer ter conseguido mostrar seu valor a ponto de merecer reconhecimento.)
**Evidências das distorções**
As distorções que desvalorizam as mulheres não são intencionais. Ao contrário, passam por processos supostamente objetivos e neutros. O problema é que a maneira como vemos o mundo é moldada por nossos esquemas de referência e, como Cecilia Ridgeway, cientista social da Stanford University, dos Estados Unidos, assinala, o gênero é o primeiro esquema que enquadra nosso modo de avaliar a contribuição das pessoas, sem que percebamos.
É por isso que esses estereótipos são chamados “distorções ou vieses implícitos”. A psicóloga norte-americana Rhea Steinpreis e colegas descobriram em suas pesquisas que, quando avaliam fichas de emprego idênticas, mulheres e homens preferem contratar um candidato que se chame Brian a uma pessoa de nome Karen – em uma proporção de dois para um. A relação se repete com outras minorias. É a mesma para candidatos com nomes afro-americanos e hispânicos, comparados a outros nomes, e para homossexuais, comparados aos que não se identificam dessa maneira, segundo revelam András Tilcsik, professor da Rotman School of Management, do Canadá, e outros pesquisadores.
Além disso, mesmo quando os atributos dos candidatos são equivalentes, variam as cartas de recomendação: os textos sobre candidatas tendem a ser mais curtos do que aqueles sobre homens e concentram-se em traços pessoais em vez de realizações. Resultado? Homens são contratados com mais frequência do que mulheres. Uma vez no cargo, continuam as diferenças – na remuneração e nas promoções. Por exemplo, mesmo quando, em avaliações de desempenho, pontuam tanto quanto homens brancos, mulheres e minorias recebem salários e aumentos menores do que eles, segundo uma pesquisa. Por quê?
No mundo do capital de risco do Vale do Silício, aparentemente ultraobjetivo, já se começa a perguntar por que apenas de 6% a 8% dos investimentos são destinados a negócios liderados por mulheres. Seria um problema de oferta? Afinal, há menos mulheres do que homens em startups de tecnologia.
Estudo recente realizado por Alison Woods Brooks e colegas, publicado na revista Proceedings of the National Academies of Science, viu problema no lado da demanda. Analisando cerca de cem startups, identificou que as lideradas por homens tinham 60% mais probabilidade de receberem aportes de capital externo do que as lideradas por mulheres.
Talvez as mulheres gerenciem empresas de qualidade pior, é claro, e isso com justiça deve refletir nos investimentos, mas outro experimento fez uma revelação chocante: pesquisadores apresentaram a investidores slides de PowerPoint, ora narrados por uma voz feminina, ora masculina, exatamente com o mesmo script. O que aconteceu? Os investidores tendiam a recomendar os negócios acompanhados por voz de homem em uma proporção duas vezes maior.
> **O paradoxo da meritocracia**
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> Será que a própria ideia de uma cultura de meritocracia exacerba as desigualdades? Sim, a julgar pela série de experimentos conduzidos por Emilio Castilla, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), e por Stephen Benard, da Indiana University, dos Estados Unidos. Segundo seus achados, os ambientes organizacionais que promovem a meritocracia tendem mais a produzir resultados que não reflitam o mérito das pessoas.
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> Os pesquisadores dizem que isso ocorre porque a ideia de meritocracia dá aos avaliadores de desempenho credenciais morais que os convencem de que são sujeitos a distorções, o que os faz reduzir a autovigilância. Assim, o paradoxo da meritocracia é que a crença nela pode levar a mais desigualdade – em vez de menos.
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> Por esse motivo, um profissional do Vale do Silício afirmou, em pesquisa realizada por Sarah Kaplan: “Os que mais atentam contra a meritocracia são aqueles que fazem questão de anunciar que ela existe”. É simples de entender: quando somos bem-sucedidos, queremos crer que o sistema nos permitiu isso em virtude só de nosso merecimento.
**Rumo à mudança**
Apesar dos desafios, muito pode ser feito para as empresas chegarem mais perto da meritocracia real, sem distorções.
1 – **É preciso eliminar dados que identifiquem o gênero das pessoas onde for possível.** Por exemplo, na triagem de currículos ou em processos de seleção em fases anteriores às entrevistas, removem-se nomes e outros dados que permitam a identificação de gênero.
**2 – Devem-se incluir dados quantitativos onde possível, como índices de desempenho financeiro ou pontuações.** Isso ajuda a eliminar as ambiguidades em relação às qualificações, que costumam beneficiar o grupo dominante.
**3 – Pode-se exigir diversidade em recrutamento de candidatos.** Quando instituíram a regra de que os times de futebol americano seriam penalizados se não entrevistassem candidatos pertencentes às minorias, a proporção de treinadores afro-americanos aumentou de 6% para 22% em apenas quatro anos. Veja bem: os times não eram obrigados a contratar minorias, apenas a incluir seus representantes nos processos seletivos. Pode-se fazer o mesmo no meio empresarial, solicitando diversidade em concorrências de projetos, competições de startups etc.
**4 – Pessoas que avaliam outras devem ser treinadas a compreender o que é um viés.** Se todos, homens e mulheres, aceitarem que são sujeitos a distorções, podem refletir melhor sobre como o viés influencia nossas decisões. Caso alguém diga que a CEO de um novo empreendimento “não tem as qualidades necessárias para ser líder”, questiona-se: “Essa não é uma afirmação enviesada?”.
**5 – Devem ser feitos ajustes em recomendações e para prever (e evitar) o viés.** Como modo de compensar o viés implícito no sistema, a Good Capital, que investe em empreendimentos sociais, dá pontos extras às startups lideradas por mulheres. Em sua visão, isso apenas nivela as startups em patamares justos.
**6 – Devem-se examinar sistemas e procedimentos com foco em identificar distorções não intencionais.** Mesmo os sistemas que aparentam ser neutros em relação a gêneros, como aqueles em que o critério de promoção é só o tempo de casa, podem reforçar o status quo do privilégio masculino. O próprio sistema de recrutamento baseado em indicação de funcionários recai às vezes nesse problema, pois a tendência é que se continue a contratar pessoas parecidas com as que já estão na casa, com prejuízo da diversidade.
**7 – É preciso criar mais transparência e mais formas de monitoramento.** Quando os critérios são claros e o processo de avaliação, sistemático, o viés pode ser reduzido. Essas abordagens limitam a decisão baseada em crenças ou preferências pessoais, contribuindo para diminuir a desigualdade. Evidentemente, tal transparência costuma ser difícil de engolir. O Google publicou seus dados internos sobre quão longe ele ainda tem de caminhar nessa área, e isso lhe gerou repercussão negativa, além de uma imensa pressão para fazer progressos.
**8 – Responsabilizar as pessoas por resultados é necessário.** As evidências sugerem que treinamento e conscientização não são suficientes para provocar mudanças. A desigualdade apenas decresce quando esses programas têm sistemas de incentivo que exijam das pessoas responsabilização por seus atos.
**HONRA AO MÉRITO**
Temos de enfrentar o mito da meritocracia combatendo os vieses implícitos em nossas analises
O chamado é coletivo É fácil conformar-se de que o sistema é falho mesmo e que as mulheres têm de agir por si para mudá-lo, negociando melhor, sendo mais autoconfiantes, vestindo-se para o sucesso etc. Este artigo não segue tal premissa, porém: o sistema atual é realmente falho em relação a gêneros e a minorias, e é preciso atuar para consertá-lo intencionalmente.
Não se advoga aqui que grupos sub-representados recebam tratamento preferencial. Todos os candidatos a emprego, funcionários e empreendedores devem estar em um mesmo nível justo quando se trata de contratação, promoção e investimento. Isso significa levar em consideração os privilégios que beneficiam muitos em detrimento de outros e as distorções implícitas que todos possuem – que desvalorizam a contribuição de uns e reforçam os privilégios de outros. A esperança é que cada vez mais líderes adotem essas sugestões para se direcionarem a uma verdadeira meritocracia.