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O BRASIL E A MERITOCRACIA

É possível implantar a meritocracia em empresas brasileiras, começando pela cultura

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“Em uma sociedade cheia de desigualdades, politicagens e apadrinhamentos como a nossa, deveria ser proibido alguém se manifestar sobre meritocracia.” 

Será isso verdade? Esse foi um dos questionamentos que recebi ao publicar recentemente o livro _Meritocracia: influência da cultura brasileira no desempenho e no mérito._ Afinal, a meritocracia usa justamente critérios preestabelecidos para avaliar as pessoas por seus méritos, considerando unicamente seu desempenho e não o tempo de casa, vínculos, parentescos e amizades.

 De fato, desde as primeiras iniciativas da meritocracia no Brasil, há relatos de que nossa cultura apresenta indícios desfavoráveis a sua implementação. No entanto, discordo de quem prefere deixar as coisas como estão sob a alegação de que a meritocracia não combina com nossa cultura. Como estaríamos hoje se nos limitássemos a fazer apenas o que fosse compatível com nossa cultura? Se fizermos isso com a meritocracia, estaremos subestimando nossos aprendizados e a capacidade de intervir positivamente. 

Há alguns anos, quando eu era gerente em uma grande estatal e trabalhava com uma equipe maravilhosa, criei uma espécie de blindagem. Quando ouvíamos frases como “Isso aqui não é uma empresa privada”, “Eles não vão aprovar, não adianta, não vai passar”, jogávamos esses argumentos na caixa dos “álibis paralisantes” e seguíamos em frente. 

Conhecemos várias organizações que venceram as barreiras contra a meritocracia e obtiveram resultados excelentes, como motivação para bater metas, contratação e retenção de pessoas mais adequadas ao negócio, eliminação de indicações e melhoria do clima. 

Essas empresas que conseguiram ter uma gestão mais justa e transparente foram além do discurso, sintonizando todas as suas práticas na frequência do mérito. À medida que o esforço foi sendo percebido como algo real e aplicado a todo mundo, sem exceção, a mensagem de que mérito é para valer se propagou e a cultura se viu gradativamente modificada. 

**COMEÇANDO PELA CULTURA**

Gerenciar a contenção da cultura é o primeiro passo para implantar a meritocracia em uma empresa brasileira. Fazendo analogia com uma árvore, nossa cultura tem em sua raiz a ambiguidade, o personalismo e a concentração de poder. Os líderes têm de evitar que essas forças subam pelo tronco da flexibilidade, outro traço marcante. Vejamos cada caso: 

**1 Ambiguidade e antagonismo**

Um exemplo de ambiguidade ocorre quando os gestores fingem que estão apoiando determinada iniciativa, chegam a discursar sobre as ações, mas não a aceitam de fato. São favoráveis à meritocracia apenas na presença de seus líderes ou de outras pessoas que defendem a iniciativa, mas depois se comportam de maneira ambígua. Isso enfraquece a gestão, gera dúvidas e promove decisões confusas. 

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Essa incoerência remonta a décadas, como se pode ver em dois artigos da primeira Constituição, de 25 de março de 1824: “A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um” e “Todo cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos ou militares, sem outra diferença, que não seja a dos seus talentos e virtudes”. Os artigos formalizavam o texto de um Estado meritocrático, mas o que ocorria na prática? No primeiro artigo, embora se referisse à igualdade de todo cidadão brasileiro, o direito ao voto não era extensivo às mulheres, religiosos, criados e pessoas de menor poder aquisitivo. No segundo, não havia uma descrição dos critérios para identificar tais talentos e virtudes, cabendo essa atribuição aos órgãos do governo. 

Embora o antagonismo tenha sido mencionado por quase todos os autores e pesquisadores sobre a cultura brasileira, vou abordar uma analogia do antropólogo Roberto DaMatta. Ele coloca o brasileiro em duas perspectivas: pessoa e indivíduo. Enquanto pessoa, tem como ambiente sua casa, é protegido por suas relações, pela complacência, pelo reconhecimento superior de suas qualidades e conta com um colo para acolhê-lo, mesmo quando falha. Enquanto indivíduo, seu ambiente é a rua, expõe-se a riscos, é chamado a demonstrar suas capacidades e a se sujeitar a normas e regras e às autoridades, que o tratam sem considerar relações ou laços sanguíneos. 

Embora o brasileiro transite entre a casa e a rua, a característica natural e predominante de nossa cultura se situa na perspectiva da pessoa. Daí o foco nas relações pessoais, que se sobrepõem aos critérios do mérito e são responsáveis por conseguir uma vaga para o filho de um conhecido ou alterar uma avaliação de desempenho para favorecer um amigo, por exemplo. Em culturas que focam o indivíduo, o ambiente é mais natural à meritocracia, fazendo com que os profissionais rejeitem relações familiares no trabalho, indicações e interesses pessoais. 

Essas culturas estimulam o indivíduo a ter ambição e a se esforçar, pois seu status e remuneração dependem de sua performance e não de parentesco, sobrenome ou amizades influentes. Nessas culturas, o feedback é assertivo e a diferenciação pelo mérito é mais aceita. No entanto, como o ser humano tem suas semelhanças em qualquer país, ainda ali a meritocracia apresenta distorções. 

**2 Personalismo**

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Quem não conhece líderes que têm dificuldade de ser imparciais ao avaliar ou reconhecer pessoas de sua equipe? Há os que ficam receosos de magoar, os que usam o poder para prejudicar e os que não estão preparados para praticar a meritocracia. Isso ocorre devido ao personalismo, outro traço da cultura brasileira que dificulta a prática da meritocracia, porque considera a pessoa, seus vínculos, parentesco e laços de amizade, em vez de aplicar os critérios ao indivíduo.

Embora muitas organizações já tenham reduzido a força desse traço, basta se descuidar um pouco para que ele reemerja, pois é uma força natural. O melhor indicador de que o personalismo está sob controle é quando um líder reconhece um profissional e toda a equipe concorda com sua decisão.

**3 Concentração de poder**

“Quem manda aqui sou eu, não admito by-pass”, “Me copia em todos os e-mails”, “Não faça nada sem falar comigo”. Essas são frases que andam sumindo do vocabulário dos líderes, mas, às vezes, ainda é possível ouvi-las. Elas expressam outro traço da cultura brasileira: a concentração de poder. Esse traço inibe fortemente a meritocracia por distanciar o líder da equipe, não permitir iniciativas ou autonomia e, assim, atrofiar o potencial das pessoas.

Recentemente ouvi o depoimento de um CEO que, ao admitir a concentração de poder em sua empresa, conseguiu reforçar a meritocracia e motivar os funcionários a realizar os objetivos do negócio. Ele começou encorajando e capacitando os gestores a delegar e a reconhecer as iniciativas do pessoal da linha de frente, eliminando a gestão mando/obediência e apontando o mérito publicamente, com incentivos financeiros e outros. Ao comunicar a todos que a empresa estava valorizando as pessoas que o mereciam, o CEO deu visibilidade à meritocracia.

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Por sua vez, os demais líderes entenderam que, ao concentrar o poder, viviam sobrecarregados e com dificuldades para bater metas, uma vez que suas equipes se retraíam por medo, desmotivação e falta de autonomia para demonstrar sua performance.

**CULTURA E AVALIAÇÃO**

A avaliação de desempenho é o principal instrumento para atribuir o mérito e tem de ser um dos alvos prioritários de qualquer empresa que queira implantar a meritocracia. No Brasil, porém, é comum ouvirmos histórias de avaliações tendenciosas, realizadas por líderes que priorizam os sentimentos e traços da personalidade, em detrimento das ações e resultados.

Uma falha comum nas empresas é tentar melhorar a avaliação de desempenho mexendo no instrumento. Não é aí que está o ganho, e sim em como a avaliação é realizada. A pior opção é ignorar a forte subjetividade de nossa cultura, acreditando que um instrumento vai torná-la mais objetiva. É necessário que os líderes sejam capacitados em aspectos comportamentais para aprender a lidar melhor com as equipes e ajudá-las a melhorar a performance. O conhecimento e entendimento dos funcionários sobre as expectativas de seu desempenho, bem como os critérios pelos quais serão avaliados, reduzem o nível de desconfiança sobre a maneira como os líderes interpretam os critérios e aplicam as métricas.

Além disso, a meritocracia requer que as consequências sejam estruturadas para estimular o alcance dos objetivos e o feedback regular sobre o desempenho, a fim de que o funcionário tenha tempo oportuno para redirecionar sua atuação.

**ANTES QUE SEJA TARDE**

Não há como negar que as desigualdades, injustiças e outros vícios de nossa cultura limitam a meritocracia. Entretanto, é possível implantá-la, embora o caminho seja mais difícil. Os primeiros passos devem ser dados na direção dos traços da cultura, identificando-os e contendo-os, antes que gerem a perda de pessoas necessárias.

**UM BREVE ESTUDO DE CASO**

Muitas vezes, a resistência à meritocracia ocorre por desconhecimento ou por informações equivocadas. O importante é sempre levar as pessoas a compreender seu significado.
O dono de uma empresa havia lido Empresas feitas para vencer, de Jim Collins, segundo o qual o maior diferencial das empresas vencedoras é sua capacidade de diferenciar as pessoas e atribuir-lhes o mérito. O executivo nos procurou para implantar a meritocracia em sua organização, que estava com sérios problemas, como o turnover de profissionais importantes para o negócio, insatisfação de pessoal nas áreas-chave e outros indicadores ruins relevantes.
Observando o ambiente, percebemos que havia resistência interna. Diretores e gerentes influentes estavam cansados de ouvir aquele discurso do dono. Então, em vez de falarmos sobre meritocracia, apresentamos os resultados de organizações que foram bem-sucedidas ao adotar práticas que desafiam as pessoas com metas e recompensam aquelas que as alcançam seguindo os valores da companhia. Aos poucos, os profissionais foram compreendendo a necessidade de mudar a forma de gestão, atrelando mérito a resultados e tirando a força das relações pessoais, algo que, naquela empresa específica, chegava a criar constrangimentos e conflitos.
Assim nasceu um modelo meritocrático ali, adequado àquela organização, mas robusto o suficiente para motivar os profissionais certos. **(N.C.)**

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