Dossiê 4: Coragem

A “assustadora” estrada para a criatividade

Qualquer que seja o problema em questão, uma solução criativa significa fazer diferente e, por isso, correr risco de perder algo. Ou seja, a coragem deve estar embarcada. Mas coragem de se autodenominar uma pessoa criativa é a ignição da capacidade de criar

Jean Rosier

Jean Philippe Rosier é professor, palestrante e consultor. Sócio da Perestroika e cofundador da Sputnik,...

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O ano era 2010. O mundo estava vivendo o início da segunda década do tão especulado século 21. Não estávamos nos locomovendo com carros elétricos ainda nem tínhamos experimentado o fenômeno da inteligência artificial generativa. O Instagram nascia e o Facebook se firmava como a maior rede social do mundo. Tínhamos só um ano de WhatsApp e cinco anos de YouTube – que, em 2010, lançava o botão de curtidas nos vídeo e ensaiava o streaming.

Já meu momento era o de calouro de publicidade e propaganda. Naquela manhã fria de março de 2010, eu estava sentado em uma sala de uma renomada universidade de comunicação brasileira. Era a primeira aula, e o professor perguntou:
– __Por acaso, alguém aqui não se considera criativo?__

Fui a única pessoa a levantar a mão. Meio tímido, mas internamente seguro de não ser criativo.

Passaram-se 13 anos e essa autopercepção mudou. Pode soar um tanto óbvio – afinal, este artigo é sobre criatividade e dou palestras sobre o tema para profissionais e empresas. Também pode soar soberbo – quem grita aos ventos “eu sou criativo” tem grandes chances de ser visto como prepotente. Mas é justamente sobre isso que quero falar aqui: __Ter a coragem de se considerar uma pessoa criativa é justamente a ignição do despertar criativo.__

A coragem de se autodenominar uma pessoa criativa deve ser o primeiro passo para despertar a capacidade criativa que todos nós possuímos. Não é questão de privilégio ou dom divino; criatividade é uma característica intrínseca ao ser humano. A coragem aqui atua como um catalisador, permitindo-nos superar barreiras sociais, culturais e psicológicas que muitas vezes nos impedem de liberar nossa criatividade. (Preciso mencionar o aspecto do privilégio social e econômico de ser um homem branco cis no mundo atual – que, sim, conta. Mas não sou um ser “privilegiado” pelo “dom divino” da criatividade.)

O que quero dizer é que a ativação criativa está no DNA humano. Todos somos criativos. Ou melhor: já fomos e, se não “estamos criativos” neste momento, podemos voltar a estar. A evolução da humanidade está calcada na busca constante por novas formas, insumos, linguagens, processos etc., em todas as áreas e aspectos da vida. Faz total sentido. Por isso, acredito fortemente que é possível despertar em si esse recurso infinito.

Para ajudar a esclarecer esse meu ponto, trago aqui um ensinamento do renomado físico norte-americano Richard Feynman (1918-1988), um dos expoentes da eletrodinâmica quântica, que encaminha muito bem esse autorreconhecimento: “honestidade intelectual”.

Para Feynman, essa é a principal qualidade de alguém que busca se destacar pelos seus saberes.

A honestidade intelectual depende de nos libertarmos do condicionamento cultural histórico de sempre nos provarmos certos. Experimentar exige arriscar passos em falso. Precisamos abrir espaço para a dúvida e o erro. O caminho do sucesso não é tranquilo. É inquieto, se frustra e, em alguns trechos, fica tortuoso. E justamente por essas questões, a estrada da experimentação parece assustadora. Mas acredite: o medo bate apenas no começo. A coragem pode ser ativada, para que você consiga comprar riscos e tentar coisas novas. Isso é o que nos leva ao crescimento.

Então, por que não mudar essa lógica obsoleta e abraçar a honestidade intelectual, para o bem da criatividade? Aceitarmos a insegurança para experimentar, sem medo de errar, potencializa a riqueza de conhecimentos, esta que é essencial para a roda do pensamento criativo girar cada vez melhor.

À la Navy Seals

Jean Rosier conta que participou de um treinamento com seis integrantes dos Navy SEALs, uma das forças de operações especiais mais respeitadas por sua coragem no mundo. O treinamento para se tornar um SEAL é rigoroso, com taxa de desistência muito alta. “A ideia era combinar aprendizados de uma tarde de treinamento com liderança e criatividade. Tivemos de entrar no mar de roupa e tênis, empurrar pneus de trator, montar, carregar troncos de madeira ultrapesados e, claro, fomos desafiados a trabalhar em grupo de maneira criativa e estratégica”, conta Rosier. Seu time venceu, entre vários. Segundo ele, isso se deve a saber ouvir atentamente o que era pedido e à coragem. “A coragem para acreditar que conseguiríamos criar soluções foi muito importante, isso ficou marcado.”

## Pragmatismo contra bloqueios
A história que contei no início deste artigo – sobre meu primeiro dia de aula na graduação – mostra justamente o medo de me colocar nesse lugar. Eu estava entre pessoas que, por terem decidido cursar publicidade e propaganda, já se consideravam criativas em alguma medida. Mas eu não tive a coragem de me “aceitar” criativo. O que passava pela minha cabeça era: “Imagina se, daqui a algumas aulas, eu dou uma ‘ideia’ e ela é péssima? E se ninguém gostar das minhas contribuições? Não quero passar por isso. Não quero parecer algo que não sou. Conclusão, não sou criativo”.

Esse era o mindset.

Conseguem perceber a profundidade do bloqueio que eu carregava? Eu só fui vencer essa barreira no momento em que entendi que a única forma de evoluir era aceitando minhas próprias limitações, aceitando que para evoluir eu precisava partir de algum lugar.

O que me ajudou a vencer isso foi buscar visões pragmáticas sobre criatividade. Optei por ir à procura de elementos que facilitassem minha forma de ver e de me relacionar com ela. Não estou dizendo que é a única forma nem que é a melhor forma, é apenas a forma que me trouxe resultados.

Quando eu descobri que Harvard estava falando sobre criatividade, fui lá bisbilhotar e pesquisar o que estavam dizendo e me deparei com o trabalho da Teresa Amabile. Amabile é professora de Harvard, autora, acadêmica, escreveu mais de cem artigos sobre criatividade.

A partir do olhar de Teresa Amabile, a criatividade não é um acidente, não é algo que acontece por acaso, algo geneticamente determinado.
Para a criatividade acontecer, precisamos combinar três elementos: motivação, expertise e pensamento crítico.

### Elemento #1: motivação
Sem motivação, nada acontece. Isso porque, para ser uma pessoa mais criativa, você vai precisar se esforçar. E para se esforçar, precisa estar motivada. Não tem outra forma. Não tem mágica. Tudo começa por aí.
Repito: PRIMEIRO VOCÊ PRECISA QUERER SER UMA PESSOA MAIS CRIATIVA para então tornar-se uma.

Quer uma orientação prática? Entenda o seu porquê. Sei que pode parecer trivial esse papo de propósito, mas a verdade é esta: identifique o que realmente te motiva a ser mais criativo. Isso pode ser um projeto pessoal, um desafio profissional ou simplesmente o desejo de se tornar uma versão melhor de si mesmo. Sem isso, dificilmente você vai conseguir superar as dificuldades e dores que o universo criativo vai trazer. Afinal, nem tudo são flores, e, sim, você vai errar.

Criativo e destrutivo na Jamaica

Jean Rosier e sua equipe foram chamados pela Red Bull para ir à Jamaica conduzir a parte criativa de um modelo de negócio logo depois que Felix Baumgartner entrou para a história ao saltar de uma altitude de 39 mil metros com um balão estratosférico pela empresa. “Uma das atividades que propusemos foi separar os líderes em dois grupos. Um deles tinha a missão de ‘criar a empresa que iria destruir a Red Bull’.”

### Elemento #2: expertise
Teresa Amabile fala da importância da “expertise”. O que ela quer dizer com isso? Explico.

Quando dou aulas ou palestras sobre o tema, eu pergunto às pessoas: “Qual foi o último livro que você leu sobre criatividade?”. Geralmente poucas pessoas respondem, aí pergunto: “Levanta a mão quem já viu mais de três TED Talks ou ouviu algum podcast sobre o tema?”. Raramente alguém levanta a mão. Aí eu continuo: “Quem aí poderia me mostrar sua agenda e apontar o tempo que estava dedicado para ter ideias e desenvolver sua criatividade?”. Nunca ninguém me mostrou.

O que isso prova? Que todo mundo quer mudança, mas ninguém quer mudar. Todo mundo quer desenvolver essa habilidade, mas ninguém faz nada para isso. E espera que as ideias caiam do céu.

Você vai precisar acumular horas e horas aprendendo e aprimorando seus conceitos e métodos. Aqui estou falando de acumular conhecimento técnico e intelectual sobre o tema. Para, depois disso, conseguir criar seus próprios métodos.

Aí vem outra orientação prática muito valiosa: você tem de investir em educação continuada. No Brasil, temos acesso a uma variedade de cursos online e workshops (muitos gratuitos) que podem ajudar a aprimorar sua expertise em áreas específicas. Aproveite essas oportunidades para expandir seu conhecimento.

### Elemento #3: pensamento crítico
O último, porém não menos importante elemento da criatividade é… o pensamento crítico. E aqui não estou falando de negacionismo. A forma mais simples que eu utilizo para expressar o pensamento crítico se dá com duas palavras: E SE….

“E se” fizéssemos de outra forma.

“E se” invertermos a ordem dos pedidos.

“E se” combinarmos elementos.

Pensar de forma crítica é não aceitar as coisas como elas são, e não se contentar em repetir tudo, todas as vezes. É questionar, é experimentar. Isso é a base para você conseguir desenvolver o pensamento criativo.

Eis, então, mais uma orientação prática: exercite o questionamento. Faça uma lista de perguntas que desafiam as normas e convenções em sua área de atuação. Use essas perguntas como ponto de partida para brainstormings individuais ou em grupo.

Sim, é na intersecção dessas três forças – motivação, expertise e pensamento crítico – que nasce a criatividade. Ela acontece, ela se manifesta. Perceba como isso é simples de entender. Note que não tem a ver com esperar horas e horas para ter boas ideias ou comdeixar o acaso vir resolver os desafios. Trata-se de abordar a criatividade de maneira pragmática, com esse tripé de forças e as respectivas orientações práticas.

Também se trata de abordar a criatividade com coragem – uma valentia para ter o esforço e a dedicação necessários. A criatividade não é um dom reservado a poucos escolhidos; é uma habilidade que pode ser desenvolvida por qualquer um que tenha a coragem de perseguir esse objetivo.

A coragem é o que nos permite superar as barreiras que nos impedem de sermos verdadeiramente criativos. Ela nos dá a força para buscar a motivação, adquirir a expertise e exercitar o pensamento crítico necessários para liberar nosso potencial criativo.

Foi assim que eu me desenvolvi pessoal e profissionalmente, e foi assim que me senti apto a escrever este artigo. A vida é um processo de aprendizado constante, e, para navegar por ele, precisamos ser humildes com confiança. (Sim, sei que isso pode parecer paradoxal.)

Ah, e se você sentir medo, frio na barriga ou desconforto para ser criativo propondo uma mudança? Bem, isso faz parte. E vai ajudar se você não esquecer a seguinte lição: nós não temos medo de mudar; nós temos medo é de perder.

Você não se importa em criativamente mudar de caminho para o trabalho; você se importa que, ao fazer isso, você se atrase para a reunião. Você não vê problema em mudar de fornecedor; você se preocupa em perder a qualidade do serviço. Você não vai ter medo de usar uma ferramenta aprendida em um curso; vai temer que o resultado frustre suas expectativas. A ciência da psicologia comportamental chama isso de “aversão a perda”.

Na hora de tentar desenvolver seu pensamento criativo, não se esqueça do que leu aqui e tenha coragem! Lembre-se: você não tem medo de mudar.

__Leia também: [Controle seus microestressores e melhore seu dia a dia](https://www.revistahsm.com.br/post/controle-seus-microestressores-e-melhore-seu-dia-a-dia)__

Artigo publicado na HSM Management nº 160.

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