Não estamos vivos por acaso: temos um propósito. A realização desse propósito, no entanto, depende do cuidado de si mesmo. Afinal, se não nos conhecemos bem e não nos cuidamos, fica difícil reconhecer nossas necessidades e nos preparar para essa realização.
Cuidar de si mesmo é um dos grandes desafios existenciais para os seres humanos. Essa afirmativa se torna cada vez mais verdadeira no mundo atual, em que os aspectos mais valorizados pela sociedade são dinheiro, status e beleza, e onde não há lugar para demostrarmos dúvidas, fraquezas e medos.
Esse processo fomenta uma fragilidade ou uma ruptura do conviver, gerando relações superficiais e vínculos efêmeros. De maneira geral, cada um vive para si e por si. O outro não tem lugar na minha vida senão para favorecer os meus planos e projetos, em uma relação totalmente utilitarista. Observamos, então, que o homem se esquece de ser e de conviver. E assim vive continuamente insatisfeito. Por isso, sofre e adoece, o que pode ser comprovado pelos aumentos das doenças de ordem mental e psíquica e das dores da alma.
O pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott, um estudioso da natureza humana, debruçou-se sobre o assunto. Sua atenção se voltou para a história real das relações do indivíduo com seu ambiente, desde o início da vida, por atender sistematicamente bebês e suas mães, no campo da pediatria, e adultos psicóticos, em especial os que puderam regredir à dependência, com a psicanálise.
Ele estabeleceu uma conexão entre os transtornos emocionais que os bebês apresentavam e os distúrbios de tipo esquizofrênico, num estudo minucioso dos estágios iniciais do amadurecimento. Seu objetivo era descobrir quais são as condições ambientais que favorecem (ou falham em favorecer) os processos pelos quais um bebê, imaturo e altamente dependente de início, chega a tornar-se uma pessoa viável, capaz de estabelecer relações com a realidade externa, de achar algum sentido no fato de estar vivo e de ser capaz, razoavelmente, de tomar conta de si mesmo.
Antes de dividir a descoberta, vale trazer uma questão ética sobre o valor da vida. Não nos basta estar fisiologicamente vivos; é preciso que nos sintamos vivos e razoavelmente à vontade com isso, que, em algum nível, nossas vidas valham a pena ser vividas. E sentir-se vivo corresponde a sentir-se atendido em sua dependência, sentir que alguém se importa e se dedica a cuidar de suas necessidades, suprindo sua limitação de cuidar de si mesmo. Esse foi o achado de Winnicott.
## Dois tipos de cuidado
Numa palestra para médicos e enfermeiros, proferida em outubro de 1970, Winnicott formula uma nova ética ao relembrar à audiência que a palavra “cura”, em sua raiz etimológica, significa “cuidado”. Foi só por volta de 1700 que “cura” passou a designar tratamento médico, dando início a um processo de objetificação da cura; o cuidado foi substituído pela aplicação de elementos curativos.
Winnicott prossegue dizendo que a cura (a bem-sucedida erradicação da doença e de sua causa pelo medicamento) tende a se sobrepor ao cuidado. Mas é preciso impedir, assinala, que os dois significados – tratamento e cuidado – percam contato um com o outro. Embora tratamentos sejam imprescindíveis, é claro, não se pode perder de vista o cuidado.
Para resgatar o verdadeiro sentido do cuidado, faz-se necessário que a pessoa tenha a consciência do que ela é; de suas capacidades e fragilidades,
e do que efetivamente quer. Ou seja, a pessoa precisa fazer exercícios de autoconsciência, autoanálise e autocrítica, dando significado a seu viver. Precisa cuidar-se. Mas o que entender por cuidado?
O termo tem, normalmente, duas significações básicas intimamente ligadas. A primeira é a atitude de desvelo, solicitude e atenção com o outro. A segunda, de preocupação, de inquietação e de responsabilidade, porque a pessoa que tem cuidado sente-se envolvida e ligada ao outro.
As definições que ainda hoje utilizamos para cuidar e cuidado vêm da Antiguidade, dos gregos, dos romanos, passando por santo Agostinho e culminando em Martin Heidegger, pensadores que veem no cuidado a própria essência do ser humano no mundo, com os outros, e voltado ao futuro.
A partir dessas fontes, identificamos quatro grandes sentidos, todos mutuamente implicados.
1. O cuidado é uma atitude de relação amorosa, suave, amigável, harmoniosa e protetora com a realidade pessoal, social e ambiental. Metaforicamente, podemos dizer que é a mão aberta que se estende para a carícia essencial, para o aperto das mãos, com os dedos que se entrelaçam com outros dedos para formar uma aliança de cooperação e a união de forças, em oposição à mão fechada e ao punho cerrado para submeter e dominar o outro.
2. O cuidado é todo tipo de preocupação, inquietação, desassossego, incômodo diante de pessoas e realidades com as quais estamos afetivamente envolvidos e por isso nos são preciosas. Esse tipo de cuidado acompanha-nos em cada momento e em cada fase de nossa vida. É o envolvimento com pessoas que nos são queridas ou com situações que nos são caras.
3. O cuidado é a vivência da relação entre a necessidade de ser cuidado e a vontade e a predisposição de cuidar, criando um conjunto de apoios e proteções que torna possível essa relação indissociável, em nível pessoal, social e com todos os seres viventes. O cuidado-amoroso, o cuidado-preocupação e o cuidado-proteção-apoio são existenciais e, portanto, prévios a qualquer outro ato e a tudo o que empreendermos. Por isso pertencem à essência do humano.
4. O cuidado-precaução e o cuidado-prevenção constituem as atitudes e os comportamentos que devem ser evitados por suas consequências danosas previsíveis e imprevisíveis diante da insegurança dos dados científicos e da imprecisão dos efeitos que podem causar ao sistema-vida e ao sistema-Terra. O cuidado-prevenção e o cuidado-precaução nascem de nossa missão de cuidadores de todos os seres e do planeta. Somos seres éticos e responsáveis, quer dizer, nos damos conta das consequências benéficas ou maléficas de nossos atos, atitudes e comportamentos.
Somos filhos e filhas do cuidado. É a condição prévia que permite a um ser vir à existência.