Dossiê HSM

A hora da colaboração disruptiva

A solução dos problemas complexos da atualidade não virá de um único setor da sociedade. Entenda por que empresas, governos e sociedade civil precisarão trabalhar cada vez mais – e melhor – juntos

Roberta Paduan

Jornalista, autora de Petrobras: Uma história de orgulho e vergonha e vencedora do Prêmio Jabuti...

Compartilhar:

Apesar da tragédia humanitária e do desmantelamento econômico que vem provocando há mais de um ano, a pandemia do coronavírus vai deixar aprendizados importantes. Um dos mais valiosos talvez seja o lembrete de que há uma categoria de problemas cuja solução não depende de uma pessoa, de uma família, de uma empresa ou mesmo de um país. Diante de problemas complexos, sistêmicos, como o provocado pelo Sars-coV-2, não há muro ou fronteira que forneça proteção, assim como não há um único setor da sociedade que consiga, sozinho, oferecer soluções. É algo que estamos aprendendo, a duríssimas penas, com a pandemia. A interdependência entre as pessoas é evidenciada pela própria lógica da vacinação: só será possível frear o surto de infecção quando a maior parte da população mundial estiver imunizada. O distanciamento físico, necessário para evitar a propagação da covid-19, também depende da atitude de todos e de cada um. O esforço tem de ser coletivo. A responsabilidade, compartilhada.

A pandemia tem sido uma espécie de campo de provas de iniciativas baseadas na colaboração entre os diversos setores da sociedade – governos, empresas, organizações sem fins lucrativos, universidades. Um termômetro desse fenômeno foi o recorde de doações feitas por companhias brasileiras ou instaladas no País. Entre março e dezembro de 2020, o setor corporativo doou R$ 5,5 bilhões para iniciativas voltadas para a atenuar a crise na saúde. O valor é 11 vezes maior que todas as doações feitas por empresas em 2019. “Foi um número histórico. Só a doação do Itaú Unibanco, de R$ 1 bilhão, foi o dobro do que todas as empresas juntas doaram em 2019”, afirma João Paulo Vergueiro, diretor-executivo da Associação Brasileira dos Captadores de Recursos (ABCR), que criou o Monitor das Doações Covid-19 há um ano. A soma desse dinheiro se transformou em respiradores, leitos de UTI, medicamentos, pesquisas científicas, salários e equipamentos de proteção para profissionais da saúde e até em fábricas de oxigênio. Também serviu para comprar alimentos e produtos de limpeza para abastecer hospitais e acudir a população mais vulnerável, que ficou ainda mais carente com o choque econômico.

Em março deste ano, quando a pandemia completava um ano e o mundo começava a se imunizar, o Brasil se descobriu desguarnecido de imu­nizantes, ao mesmo tempo em que registrava o pico histórico de infecções e mortes. O empresariado se mobilizou para tentar acelerar a campanha de vacinação. A iniciativa Unidos Pela Vacina, liderada pela empresária Luiza Trajano, presidente do conselho do Magazine Luiza, não visa comprar imunizantes para funcionários das companhias envolvidas, mas, sim, ajudar o Ministério da Saúde a destravar o programa nacional de imunização. Parte do grupo, incluindo presidentes de empresas, está monitorando os fabricantes com intuito de adiantar as remessas de vacinas para o Brasil, ou, pelo menos, garantir que elas cheguem no prazo. Outra parte do grupo foi incumbida de identificar os possíveis gargalos do processo de vacinação nos 5.572 municípios, enviando questionários para todas as secretarias municipais do País. No fim de abril, o Unidos Pela Vacina já havia recebido quase 100% das respostas e preparava o envio de geladeiras, caixas térmicas, agulhas e outros suprimentos para as Unidades Básicas de Saúde que apresentam carências. A ideia é que, conforme o imunizante for chegando, a vacinação ocorra o mais rapidamente possível.

Seja por responsabilidade social genuína ou mesmo por instinto de sobrevivência – já que a economia depende da solução da crise sanitária –, parte do setor privado se uniu a governos e organizações da sociedade civil nos mais diversos formatos de colaboração. “É mais que doar recursos, é compartilhar o desafio e a governança do projeto”, afirma Regina Esteves, CEO da Comunitas, ONG especializada em qualificar a gestão pública por meio de recursos privados.

A nova fábrica de vacinas do Instituto Butantan, que deve ser inaugurada em 30 de setembro, é um dos mais sofisticados exemplos de colaboração intersetorial no País. A construção da fábrica está sendo feita a muitas mãos. A Comunitas e a InvestSP (agência de desenvolvimento do governo paulista) levantaram R$ 188 milhões para execução da obra e instalação de equipamentos. O dinheiro foi doado por 41 empresas, fora as que entraram prestando serviços jurídicos, de gestão de projetos e gestão da obra. A nova fábrica vai permitir que o Butantan produza o Insumo Farmacêutico Ativo, que é a principal matéria-prima da vacina Coronavac, desenvolvida em parceria entre o instituto paulista e a farmacêutica chinesa Sinovac. Até agora, o Butantan depende das remessas do insumo da China para fabricar o imunizante. Isso porque a manipulação do vírus que provoca a covid-19 requer um nível de biossegurança mais elevado do que os das fábricas atuais do instituto. Na nova instalação, o Butantan também poderá fabricar outros tipos de insumo farmacêutico ativo.

A coordenação geral do trabalho é da Comunitas, que entregará a chave da fábrica prontinha ao Butantan em dez meses, se tudo der certo, como deu até agora. Trata-se de um prazo recorde, que não seria alcançado sem a aliança do setor público com o privado. Só a licitação para contratar a obra e adquirir os equipamentos consumiria mais de dez meses. O trabalho necessário para remover os obstáculos da construção de uma fábrica de vacinas, sob a pressão da pandemia, com recursos de tantas fontes diferentes, requer uma tecnologia de governança complexa. É preciso dar transparência de tudo aos vários atores envolvidos, para garantir que o processo deslanche com eficiência. Nesse caso específico, foi criado um comitê geral com 12 representantes do setor público (Fundação Butantan, InvestSP, governo do estado), das empresas doadoras e da Comunitas. Além dele, há quatro comitês menores, também com representantes dos três setores, que acompanham o recebimento de recursos, os aspectos jurídico e de compliance, a execução da obra e montagem de equipamentos e a comunicação.

## Breakthrough collaboration
A aliança para colocar de pé a nova fábrica do Butantan é um exemplo brasileiro do que um grupo de lideranças ligadas ao Fórum Econômico Mundial batizou de “breakthrough collaboration” – expressão que traduzimos como colaboração disruptiva. “Com a pandemia ficou impossível ignorar o fato de que sistemas complexos são intrinsecamente feitos de interconexões e que, nesses casos, tentar resolver um problema isoladamente, com base em uma ‘teoria de mudança’ apenas, pode fazer mais mal do que bem”, afirmaram num artigo recente François Bonnici, líder de inovação social do Fórum Econômico Mundial e diretor da Fundação Schwab; Carolien de Bruin, diretora da Aliança de Resposta à Covid para Empreendedores Sociais; e Melanie van Haegen, CEO da fundação Porticus. Segundo os autores, o esforço coletivo necessário para solucionar problemas complexos vai muito além da noção tradicional de colaboração. “A colaboração disruptiva requer um salto no desconhecido, envolve estar pronto para abandonar algo em prol de atingir um objetivo comum maior – [nela] o coletivo supera o individual.”
Uma experiência global de colaboração disruptiva é a Aliança de Resposta à Covid para Empreendedores Sociais. Formada em abril de 2020 pelo Fórum Econômico Mundial em parceria com algumas fundações privadas, ela contava, em janeiro de 2021, com 84 entidades representando 90 mil empreendedores sociais. Seus membros elaboraram o Roadmap 2021: 21 projetos em dez áreas de ação desenvolvidos com base em modelos inovadores de cooperação. O objetivo é identificar e fortalecer rapidamente iniciativas com potencial para provocar mudanças sistêmicas em escala regional ou global – como, por exemplo, o European Social Enterprise Monitor, que vai mapear o ecossistema europeu de empreendimentos sociais para gerar dados que possam embasar a elaboração de leis, políticas e estratégias que beneficiem esses atores em nível regional.

## Capitalismo de stakeholder
Se por um lado o novo coronavírus evidenciou a necessidade de se buscar formas inovadoras de cooperação entre os diferentes setores, por outro revelou a própria interconexão que existe entre as crises que enfrentamos neste momento da história. Assim como acontece com as crises sanitária e de saúde, as crises econômica, ambiental e social só poderão ser enfrentadas com esforços de colaboração disruptiva. A mudança climática é um exemplo clássico: seus efeitos devastadores alcançarão todos os países, e ela só poderá ser enfrentada com o envolvimento de governos, empresas e cidadãos do mundo todo. Não por acaso, representantes de diversos setores da sociedade, inclusive o empresarial, vêm alertando para a urgência de “atualizar” o modelo capitalista.

Em janeiro de 2020, pouco antes de a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia, CEOs de algumas das maiores corporações do planeta afirmaram durante o Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, que o atual modelo capitalista está ultrapassado. “A economia de shareholder nos trouxe desigualdade e uma crise climática”, disse na ocasião Marc Benioff, fundador e CEO da gigante americana de software Salesforce. O chamado capitalismo de shareholder é aquele em que o único objetivo das empresas é alcançar o lucro máximo para seus acionistas. O modelo, alertaram as lideranças presentes no Fórum, deve evoluir para o capitalismo de stakeholder, que visa ir além do retorno ao acionista. Seu objetivo é a perenidade da empresa no longo prazo e, com isso, a responsabilidade com todos os que se relacionam com ela, o que inclui funcionários, consumidores, fornecedores, comunidades do entorno e o meio ambiente.

No Brasil, o executivo Walter Schalka, CEO da Suzano, maior fabricante de celulose de eucalipto do mundo, é defensor da colaboração intersetorial e um dos participantes da iniciativa Unidos pela Vacina. Schalka é também uma espécie de evangelista da adoção da estratégia ESG (sigla em inglês para ambiental, social e de governança) pelas empresas. “Temos dois grandes problemas globais que precisam ser revertidos rapidamente: a mudança climática e a desigualdade social. A solução requer uma convergência global”, afirma ele. A Suzano é uma das poucas empresas do mundo que já se tornaram carbono negativo, ou seja, que capturam mais do que emitem gases do efeito estufa (uma vantagem, é verdade, de quem opera no setor de florestas plantadas). As estratégias de operação e de desenvolvimento de produtos também seguem o crivo ESG. Recentemente, a companhia fechou uma parceria com uma startup finlandesa para produzir tecidos à base de celulose. O objetivo é que eles substituam produtos como o poliéster, feito com derivados de petróleo (não renovável, diferente da celulose).

O avanço da agenda ESG nas empresas deve impulsionar cada vez mais parcerias público-privadas – não as PPPs clássicas, de infraestrutura, mas projetos de impacto social em áreas como saúde e educação, por exemplo. Isso porque as empresas vêm direcionando mais investimentos sociais para potencializar políticas públicas. “Não tenho a ilusão de que uma solução para a educação vá sair do nosso escritório no 10º andar da Berrini [a avenida Luiz Carlos Berrini, em São Paulo]”, afirma Américo Mattar, presidente da Fundação Telefônica Vivo, braço de investimento social da Vivo no País, com foco em educação. “Para atacar um problema nacional, como a transformação da educação, os projetos precisam ter escala. E, para ter escala, é preciso agir em rede e por meio de políticas públicas.”

As iniciativas da Fundação Telefônica Vivo são desenhadas com o objetivo de chegar ao maior número de alunos das redes públicas do País. A Escola Digital é exemplo dessa busca de escala. É uma plataforma de formação de professores que disponibiliza mais de 30 mil conteúdos de todas as disciplinas do ensino fundamental. Durante a pandemia, a Fundação adaptou parte do conteúdo usado pelos professores para que os pais pudessem auxiliar os filhos nas aulas online. As “aulas para os pais” foram disponibilizadas em dois meses, graças à parceria com a Unesco, a Nova Escola e a Fundação Lemann.

Outra iniciativa, a Escolas Conectadas, disponibiliza cursos online, também para educadores, mas com o objetivo de ajudá-los a usar tecnologias digitais durante as aulas, tornando-as mais atraentes aos alunos, em geral fanáticos por celulares e computadores. Nesse caso, são mais de mil horas de conteúdos formativos, certificados pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul em parceria com a Unesco. Os cursos servem para a progressão de carreira dos professores da rede pública. Em 2020, foram 80 mil certificações de professores de todo o País, o dobro de 2019, consequência do fechamento das escolas por causa da pandemia. Exemplos como esse mostram que é possível encontrar oportunidades em meio a situações complexas, e que é mais fácil superá-las com a união de esforços.

![Imagens Prancheta 1 cópia 9](//images.ctfassets.net/ucp6tw9r5u7d/6WjkmNZWYJkhQfcQgTIAwt/bdeed0cb96a485dee5cbceb4294ce417/Imagens_Prancheta_1_c__pia_9.png)

Boa intenção não basta

Experiências de colaboração exigem acordos e formas de trabalho que agreguem atores diferentes, com culturas diferentes. Alguns passos que facilitam as parcerias:

Esclarecer as expectativas e as prioridades de cada parte envolvida na iniciativa desde o início do trabalho.

Definir e documentar os resultados desejados, as métricas de sucesso, os prazos, as responsabilidades e as habilidades de cada parceiro.

Avaliar se as expectativas e as prioridades são aceitáveis para todos, se são compatíveis com os objetivos e esses são realmente alcançáveis.

Dar e receber feedbacks regularmente.

Definir um líder da iniciativa. Ele deve garantir que todas as vozes sejam ouvidas e compartilhar as decisões com todos os participantes.

Estabelecer como as decisões serão tomadas. Os parceiros sempre buscarão um consenso? Cada parte tem direito a um voto? O líder do projeto tem autoridade para tomar certos tipos de decisões? Quais?

Manter a escuta ativa – aqui vale a máxima “compreender primeiro para depois ser compreendido”.

Compartilhar:

Artigos relacionados

O novo sucesso que os RHs não estão percebendo

As novas gerações estão redefinindo o conceito de sucesso no trabalho, priorizando propósito, bem-estar e flexibilidade, enquanto muitas empresas ainda lutam para se adaptar a essa mudança cultural profunda.

Quem pode mais: o que as eleições têm a nos dizer? 

Exercer a democracia cada vez mais se trata também de se impor na limitação de ideias que não façam sentido para um estado democrático por direito. Precisamos ser mais críticos e tomar cuidado com aquilo que buscamos para nos representar.