Em um cenário macroeconômico desafiador, marcado por altas taxas de juros, dólar valorizado, dependência de matérias-primas importadas e incertezas tributárias, as indústrias farmacêuticas brasileiras enfrentam uma pressão crescente para operar de forma lucrativa. A pressão por manter a produção em ritmo acelerado e o desejo de aumentar os lucros podem ser conflitantes em um cenário com queda de demanda.
Modelos de negócios tradicionais, amplamente utilizados não só neste setor, geralmente carecem de uma abordagem sistêmica. Cada área da empresa opera com seus próprios planejamentos e indicadores, muitas vezes contrastantes. Isso resulta em metas atingidas de forma isolada, que nem sempre geram a lucratividade efetiva e sustentável do negócio.
Alinhar a estratégia de operações à estratégia de negócios, com novas abordagens de contabilidade financeira e de gestão das operações com foco na demanda, é fundamental para superar esses desafios. Essa transformação passa, inevitavelmente, pela mudança da cultura organizacional. Apresento a seguir os principais desafios enfrentados pelas indústrias farmacêuticas e como a cultura organizacional pode impulsionar a transição para um modelo de gestão de alta performance.
Desafios Estruturais e Soluções Culturais
1. Giro de estoque e capital de giro
A gestão do giro de estoque e do capital de giro continua sendo um grande obstáculo no setor farmacêutico e um dos principais problemas é o desalinhamento entre produção, venda e demanda. A busca por altos volumes de produção para reduzir o custo unitário muitas vezes ignora as reais necessidades do mercado, resultando em altos níveis de estoques desbalanceados que imobilizam recursos financeiros essenciais. Produtos parados representam dinheiro parado, comprometendo a saúde financeira da empresa.
Essa assincronia também leva a um volume excessivo de determinados produtos e, ao mesmo tempo, à falta de outros. Isso se deve ao uso inadequado da capacidade para reduzir custo unitário, ao invés de utilizá-la para o atendimento da demanda efetiva do mix. Como consequência, ocorre o perigo de rupturas de estoque nas farmácias, prejudicando a experiência do cliente e a reputação da marca.
2. Pressão sobre a cadeia para empurrar produtos em estoque
A produção orientada para grandes volumes gera outro problema significativo: a pressão sobre os distribuidores para adquirir altos estoques. Os distribuidores, mesmo beneficiados com prazos de pagamento cada vez maiores nas negociações para compras acima da demanda, acabam, no longo prazo, comprometendo seu próprio capital de giro, gerando riscos de prejuízos ou até mesmo falência.
Essa dinâmica também afeta as equipes de vendas, que trabalham sob pressão para atingir metas, empurrando produtos sem considerar a demanda real. Esse ciclo cria ineficiências e coloca em risco toda a cadeia de distribuição.
3. Nível de serviço como indicador estratégico
O nível de serviço é um indicador essencial para o desempenho das fábricas e deveria substituir o foco predominante no “custo unitário”. Empresas lucram não pela redução de “custos contábeis”, mas pela otimização do atendimento ao cliente com estoques ajustados à demanda real. Para isso, é imprescindível que a área de vendas esteja alinhada às necessidades dos clientes finais para a construção, junto à área de operações, de políticas de atendimento com níveis de estoques balanceados e ajustadas à capacidade de resposta do sistema operacional.
A integração entre as áreas de marketing, vendas, produção, compras, logística e finanças é um desafio constante. Respostas eficazes ao aumento de demanda, tanto por oportunidades de mercado ou pela criação de campanhas promocionais, só são possíveis quando há sintonia entre essas áreas. Por exemplo, uma campanha para um novo medicamento necessita de um planejamento adequado de todas as áreas, desde o marketing até a área de planejamento de insumos necessários para a produção.
4. Modelos de gestão com integração de processos e o papel do S&OP
O Planejamento de Vendas e Operações (S&OP) é fundamental para integrar as áreas administrativa, comercial e operacional, pois facilita a criação de estratégias compartilhadas e a otimização de recursos ao conectar vendas, finanças, marketing, produção, compras e gestão de estoques. Essa comunicação integrada é essencial para evitar desperdícios e maximizar a eficiência.
Vale ressaltar que o envolvimento da alta direção é indispensável em todo esse processo. Presidentes, diretores e gestores devem estar diretamente envolvidos com as operações, visitando clientes e fábricas para compreender os desafios do dia a dia. Essa proximidade fortalece a comunicação entre as áreas e aprimora a tomada de decisões.
Um exemplo de transformação cultural na programação da produção e na condução das reuniões de S&OP ocorreu na EMS, segundo Cândido Ouro Preto, vice-presidente de Operações. De acordo com ele, a adoção de um modelo de produção baseado na reposição de estoques (sistema puxado), sem um plano mestre, e a orientação do S&OP para atender à demanda final com uma visão de médio prazo, integrando a gestão da capacidade à visão financeira, representaram uma mudança significativa. Essa transformação colocou a necessidade do cliente no centro das decisões de planejamento e programação.
Cultura organizacional e liderança transformadora
O estabelecimento de indicadores eficazes e alinhados a modelos de gestão com foco na demanda é um dos pilares da transformação para uma cultura organizacional voltada para Alta Performance. A tradição de modelos de gestão engessados, concentrados em custos contábeis e formação de estoques desnecessários, frequentemente impede a transição para um modelo de gestão de alta performance, como a metodologia Lean Demand Driven.
Em conversa com Carlos Alex, vice-presidente de Operações da Farmoquímica, ficou evidente que, apesar do crescimento acelerado nos últimos anos impulsionado por uma estratégia de expansão do modelo de negócio, os princípios Lean permaneceram como a base da cultura de operação de alta performance. Esses fundamentos continuam guiando a organização nos novos processos necessários para a evolução da empresa.
Portanto, é essencial cultivar uma cultura que valorize lideranças com humildade para reconhecer problemas e curiosidade intelectual para incorporar novos saberes e construir novas soluções, permitindo a adoção de novas formas de pensar e agir. A evolução para um modelo de gestão integrado depende do desenvolvimento de uma cultura organizacional que fomente reflexão, colaboração e liderança, com foco na demanda e no futuro.
Alinhando produção e demanda real a uma visão sistêmica do negócio, as indústrias farmacêuticas brasileiras terão condições de superar os desafios econômicos e garantir um crescimento sustentável.