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A lógica do comércio justo

Conheça três empresas que levam produtos de qualidade e de alto valor agregado ao consumidor, valorizando o produtor rural e respeitando o meio ambiente. É o movimento do fair trade.

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Viver um dia no sul da Bahia. Foi com esse sonho para o futuro que Guilherme Leal, um dos fundadores da Natura, convidou Estevan Sartoreli para traçar um diagnóstico e entender como seria possível impactar e melhorar a região. Sartoreli descobriu que era necessário criar um elo alternativo entre produtor e consumidor, que promovesse o desenvolvimento sustentável e uma relação mais justa entre os participantes da cadeia. Sartoreli não inventou o comércio justo, mas sua constatação o tornou CEO e cofundador da Dengo, que comercializa chocolates e cafés sofisticados em lojas físicas e online.

Com lindas lojas em shopping centers, que mais parecem mercearias de alto padrão, a Dengo expõe bombons e barras de chocolate com frutas brasileiras, amêndoas de cacau torradas e drageadas chamadas de “pepitas”, quebra-quebras (placas de chocolate com recheios variados) e café.

Fundada em 2017, a empresa estabeleceu uma política de pagar por produtos de qualidade um valor mínimo de 70% acima do praticado pelo mercado, além de valorizar o cultivo sustentável, disseminar as boas práticas para os produtores de cacau e resgatar o orgulho de “viver da terra”. Em 2018, a média do valor pago ao produtor pela Dengo foi de 82% acima do preço cotado na Bolsa de Nova York.

“Colocamos o produtor como protagonista”, conta Sartoreli. Dos oito produtores iniciais, hoje são 136 que fornecem cacau baiano e café (do interior de São Paulo e de Minas Gerais) para a empresa, sem vínculos de exclusividade. Antes da Dengo, o produtor ganhava, em média, R$ 880 por mês. O valor saltou para R$ 2.200 quando a empresa passou a comprar a matéria-prima para produzir seus chocolates. “O resgate do orgulho é fundamental para uma cadeia sustentável”, diz o CEO da Dengo, que ainda compartilha parte dos lucros com os produtores e suas famílias.

A colheita, a fermentação e a secagem no campo são acompanhadas por uma equipe de agrônomos e técnicos de processamento, de forma que a floresta seja respeitada. Dali, o produto segue para a fábrica da Dengo, no interior de São Paulo, para a torra, o refino e a conchagem, além da produção para as atuais lojas próprias – em 2019 devem ser inauguradas entre três e cinco novas unidades.

“Não acreditamos em propósito como medida compensatória”, destaca e completa Sartoreli: “tem que estar no cerne do negócio, que, por sua vez, precisa gerar lucro.” Além da valorização do produtor, a Dengo tem outro grande diferencial no mercado: a qualidade do cacau de alta fermentação, que é utilizado para a produção de chocolates contendo sua própria manteiga de cacau, o que dispensa a inclusão de gorduras hidrogenadas, assim como de aromatizantes e de conservantes.

Nas lojas Dengo e no e-commerce, os produtos não são baratos, o que é justificado por todos os seus atributos, incluindo o uso de mais cacau e menos açúcar, assim como de embalagens oriundas da celulose, quando possível. 

“Temos paixão pelo impacto, mas o consumidor não pode comprar algo só porque é ‘do bem’, tem que ser muito bom também. O que oferecemos é prazer com propósito”, completa Sartoreli.

**AGRORIGEM E SEU MODELO B2B, QUE VALORIZA O PRODUTOR**

Conectar produtores de café especial da Serra da Mantiqueira, no Sul de Minas Gerais, a cafeterias do Brasil e do exterior – como Canadá e Austrália – e torrefações é o negócio da Agrorigem – The Coffee ID, marketplace B2B fundado no início de 2019. Mais do que ser um novo canal de vendas pela internet, a startup, incubada no Inatel, em Santa Rita do Sapucaí, inova por seu modelo, principalmente na relação com o produtor rural.

“Meus tataravós iniciaram em 1892 a cultura de café da montanha, e o negócio passou de pai para filho”, conta Daniele Alkmin Carvalho Mohallem. Depois de se formar em Administração em Campinas e de trabalhar por um tempo na área, a paixão pela produção levou-a de volta para casa.

Sabendo das “dores”, como ela diz, fundou a Agrorigem com seu pai e um sócio especialista em tecnologia. Numa ponta estão os produtores, que precisam ser valorizados; na outra, compradores ávidos por saber a origem, os detalhes da produção e também dispostos a reconhecer o trabalhador rural.

“O produtor tem muitas responsabilidades e riscos na fazenda, mas poucos sabem negociar. Alguns chegam a vender para atravessadores uma saca de 60 kg de café especial por R$ 330,00. Numa cooperativa, o preço máximo (em 20 de maio de 2019) é R$ 400,00. Nós pagamos R$ 800,00”, revela Mohallem.

“Além de não conseguirem vender bem, muitos ficam à mercê da percepção do comprador quanto à qualidade da safra. Nós explicamos o que o produtor tem nas mãos. Há casos em que o café é de 90 pontos, e o produtor nem imagina”, conta Mohallem, que tem certificação Q-Grader, pelo Coffee Quality Institute (CQI).

Na plataforma, o comprador visualiza o perfil sensorial dos grãos e, por meio de filtros, consegue ver fotos, informações sobre a origem, variedade, assim como a pontuação, que deve chegar a pelo menos 80 pontos, de cada produto à venda. E também pode selecionar e adquirir grãos diversificados, demanda hoje em expansão. Mohallem conta que uma rede de cafeterias canadenses, por exemplo, montou um contêiner com microlotes de diferentes cafés.

A especialista em café garante que toda a operação é transparente. A plataforma não direciona para um ou outro produtor; a nota fiscal da venda é emitida pela Agrorigem em nome do produtor pelo modelo direct trade; e o recolhimento de ICMS e toda a logística de entrega dos grãos, que ficam armazenados principalmente em cooperativas selecionadas, são de responsabilidade do marketplace.

A Agrorigem recebe comissão sobre a venda – o percentual não foi divulgado –, uma margem fixa igual para todos e que consta em contrato.

Neste momento, a startup quer ampliar o volume de vendas, para tornar o negócio escalável. E para isso já tem projetos, como desenvolver o selo de rastreabilidade e ajudar na organização das fazendas. Para o segundo semestre, deverá ser adotada uma inovação desenvolvida pela startup: uma caneta sensorial, que analisa o grão cru. “Isso é disruptivo, porque o produtor não será mais enganado em relação à qualidade de seu produto”. Outro projeto é expandir o negócio para a Colômbia e Etiópia.

**DE-LÁ RESGATA O “SABER FAZER”, MAS NÃO BASTA SER SÓ ARTESANAL**

Também de Minas Gerais, outra iniciativa, com mais tempo de estrada, é a De-Lá, que vende em lojas físicas produtos artesanais, como queijos, compotas, doces, geleias e outros quitutes, produzidos por famílias em cidades de interior. O objetivo é resgatar os sabores da fazenda.

A ideia nasceu na tese de mestrado em engenharia de produção da designer Laura de Souza Cota Carvalho, e que foi reforçada no curso de Gestão para Negócios Sociais na Fundação Dom Cabral (FDC).

“Nunca fiquei preocupada ou me prendi à teoria de comércio justo. Também nunca negociei preço. Depois de selecionar produtos e produtores, ouço a história e pergunto: Quanto fica bom ‘procê’? Aí vejo se consigo pagar e ainda sobrar uma beiradinha para a De-Lá”, explica ela.

Como Carvalho conta, a De-Lá começou em 2012 com uma loja física escondida dentro de uma galeria em Belo Horizonte e desconexa das demais operações do local. A ideia era servir mais como um escritório e um depósito para o e-commerce, mas com visual ao estilo das vendinhas de antigamente. Havia poucos clientes na loja, até que foi veiculada uma matéria sobre a De-Lá, como um empório gourmet. “Não gosto muito desse termo, mas foi assim que ganhamos visibilidade”, diz ela.

Em 2014, migrou para uma loja de rua na capital mineira, além de ter inaugurado uma loja dentro da FDC. “Crescemos muito com a nova loja, que atende ao mineiro, que tradicionalmente gosta de ver com as mãos. E abandonamos o e-commerce”.

Quando começou, o modelo de valorizar o produtor era novo e o cenário era outro. Na época, os produtores de queijo estavam quebrados, diferente do valor que têm hoje. Enquanto o quilo do queijo fresco custava R$ 12 no mercado central, a fundadora da De-Lá pagava R$ 15 para o produtor. “E sempre deixo claro para o consumidor que ele pode estar pagando mais caro dependendo do produto, mas estará também valorizando uma família que vive desse ofício, desse ‘saber fazer’”, afirma.

A escolha de fornecedor é criteriosa. “Não basta ser artesanal, a venda daquele produto tem que ser o meio de vida da família. Assim, conseguimos causar maior impacto”, alega Carvalho. De cinco produtores iniciais, agora são cerca de 90, incluindo os que fazem produtos sazonais.

O sonho de Carvalho era ter na loja as riquezas gastronômicas de Norte a Sul do País, mas a dificuldadede logística resulta em 90% dos produtos sendo de Minas. “Chegamos a ter, por exemplo, um arroz vermelho do Nordeste, mas o frete era mais caro do que o próprio arroz”, relembra.

Para ela, o que está muito claro é que a De-Lá tem que continuar sendo uma conexão justa entre o pequeno produtor rural e o consumidor. O êxodo rural, em busca de melhores oportunidades, não é um bom caminho, e se os pequenos produtores tiverem parcerias sustentáveis, capazes de prover qualidade de vida para sua família, os filhos ficarão ali e o “saber fazer” não vai morrer.

Na opinião de Fernando Filardi, professor do Ibmec RJ, empresas que seguem as boas práticas de comércio justo são o caminho, mas por enquanto têm somente um nicho à sua frente, já que estão limitadas aos consumidores conscientes. Entretanto, elas têm novas oportunidades para criar uma cultura pelo produto artesanal, para tentar aproximar o cliente do produtor rural.

Uma boa alternativa, sugere o professor, é oferecer visitas ao campo, às plantações, com degustação, a exemplo do que já fazem as vinícolas no Sul do País. Assim, aproximaria ainda mais as duas pontas da cadeia e promoveria uma experiência diferenciada ao consumidor. Algo que está no radar da Agrorigem: “Os produtores estão de portas abertas para receber os compradores”, destaca Mohallem.

Segundo dados do Sebrae, a expectativa é que o mercado de comércio justo continue apresentando grande potencial de crescimento, com taxas de 20% a 25%. Ao que tudo indica, empreendedores e produtores seguirão colhendo bons frutos dessa relação. 

**OS 10 PRINCÍPIOS DO MOVIMENTO DE FAIR TRADE***

1. Oportunidades para produtores desfavorecidos

2. Transparência e responsabilidade

3. Práticas comerciais justas

4. Pagamento justo

5. Sem trabalho infantil, nem escravo

6. Sem discriminação, com equidade de gênero, liberdade de associação (sindical)

7. Boas condições de trabalho

8. Desenvolvimento das capacidades (individuais)

9. Promoção do comércio justo

10. Respeito ao meio ambiente

*Fonte: World Fair Trade Organization (WFTO)

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