A internet das coisas (IoT, na sigla em inglês) será “a mudança mais substancial na produção de bens desde a Segunda Revolução Industrial”. A afirmação é do especialista em estratégia da Harvard Business School Michael Porter, que destaca a IoT em meio ao conjunto de dez tecnologias usualmente associado à indústria 4.0 – capaz de transformar a economia e o dia a dia da população de maneira tão ou mais impactante do que robótica avançada, tecnologias cloud ou mesmo a internet móvel. O Brasil conseguirá acompanhar essa onda tecnológica?
Já existe uma série de iniciativas isoladas de IoT. No início de 2017, o CESAR Instituto de Inovação lançou uma plataforma capaz de interconectar plataformas de IoT já existentes, fazendo com que, por exemplo, um sistema de iluminação doméstico inteligente possa conversar com um carro conectado e acender as luzes ao perceber que o veículo está se aproximando de casa. “Ao fazer protocolos específicos conversarem entre si, o KNoT fornece uma infraestrutura adequada à realidade do ecossistema de empresas brasileiro, tanto no que se refere às suas necessidades como à disponibilidade de recursos para investir”, diz Tiago Barros, líder de pesquisas em IoT do CESAR. Essa infraestrutura já é utilizada, por exemplo, pela Avantia Tecnologia e Engenharia. Outro caso é o da startup paulista DEVTecnologia, que criou um dispositivo para conectar os equipamentos que antes só funcionavam offline _[veja quadro na próxima página]._
A primeira iniciativa coletiva partiu do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), que, em outubro de 2017, lançaram o Plano Nacional de Internet das Coisas, baseado em consultas a mais de 200 especialistas e mais de 190 organizações, e com benchmarking mundo afora com 76 iniciativas a serem colocadas em prática entre 2018 e 2022, incluindo a criação de redes de inovação, um observatório de IoT e o uso de IoT em serviços públicos municipais.
O plano de IoT foca quatro segmentos de negócios: cidades, saúde, zona rural e indústria – de base (petróleo & gás e mineração) e manufatureira (têxtil e automobilístico), escolhidos pela agenda de inovação já em curso e por seu impacto projetado na economia brasileira. Na perspectiva mais pessimista em relação à quantidade de medidas implementadas, o uso dessa tecnologia nas cidades deve ter acrescentado US$ 13 bilhões a nosso PIB já em 2025, além de potencialmente diminuir em 15% o tempo gasto com trânsito e em 20% os índices de criminalidade. Na área da saúde, o impacto mínimo será de US$ 5 bilhões no mesmo período, e a previsão é a redução de até 30% na incidência de crises graves geradas por doenças crônicas e de 40% nos custos de manutenção de equipamentos médicos, além de uma melhor prevenção de epidemias. Na área rural, o impacto esperado é de pelo menos US$ 5 bilhões também, com redução de até 20% no uso de insumos agrícolas como agrotóxicos e fertilizantes, e aumento de até 25% na produção das fazendas. Nas fábricas, por sua vez, é que a mudança tende a ser maior, agregando mais US$ 11 bilhões ao PIB e revertendo a tradicionalmente baixa produtividade, com melhoria de 40% no desempenho.
Para Carlos Azen, gerente setorial do departamento de tecnologia de informação e comunicação do BNDES, o segmento com maior capacidade de desenvolvimento no momento é o rural, por seu protagonismo no mundo. “Nessa área, podemos alcançar ótimos resultados em um prazo de tempo mais curto”, afirma Azen. Por exemplo, a iniciativa “Fazenda Tropical 4.0”, proposta no plano para ajudar a monitorar com precisão os ativos biológicos, aumenta a produtividade e a qualidade da produção rural brasileira com o uso de dados.
**CONHEÇA A DEV TECNOLOGIA**
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Do zero a fornecedora de soluções e serviços para mais de 50 empresas em apenas quatro anos. Essa é a história da DEV Tecnologia, startup paulista que apostou no segmento de internet das coisas e começa a colher os frutos: em breve, deve produzir em larga escala um dispositivo que conecta máquinas e equipamentos que antes funcionavam apenas offline, o DEV FieldConnect. Com o dispositivo, a máquina ganha sensores conectados à internet e é monitorada on-line quanto a seus parâmetros operacionais, como número de horas trabalhadas e eventuais falhas de operação. Essa forma de controle, mais precisa, possibilita ao fabricante adotar um modelo de negócio baseado não mais na venda da máquina, mas no serviço prestado.
Um segundo produto de IoT da DEV é o Beacon, dispositivo que se comunica com aplicativo de celular ou plataforma de internet, por meio de um transmissor bluetooth, informando a identidade e a proximidade de pessoas – é um dos primeiros do gênero desenvolvido 100% no Brasil e já tem 20 mil unidades vendidas.
A engenheira Sílvia Mayumi Takey, sócia da DEV Tecnologia, trabalha para gerar escala para as soluções desenvolvidas. “Estamos tentando mostrar às empresas, com comparações, quanto se ganha em eficiência com as máquinas conectadas e não conectadas. As possibilidades de uso são virtualmente infinitas e os mecanismos tradicionais já não conseguem competir com esse nível de eficiência”, afirma.
Para a sócia da DEV, o Plano Nacional de Internet das Coisas deve funcionar principalmente para abrir a mente do mercado quanto à importância da IoT. “Precisamos de um incentivo maior para hardware, porque o foco está muito concentrado em software. Creio que há muito espaço para evoluir e sermos competitivos”, acredita.
Sentindo diretamente o pulso do mercado, Takey afirma que as empresas do agronegócio e a indústria em geral começam a se articular para apostar em IoT. A expectativa da DEV é crescer significativamente nos próximos cinco anos, apostando, sobretudo, no avanço da comunicação por bluetooth e da rede de celular e no menor custo de infraestrutura para soluções de alto impacto que devem surgir. Como o parque industrial brasileiro ainda está, em boa parte, em fase de pré-automatização, a IoT pode significar uma verdadeira virada tecnológica, na visão de Takey. **(Maurício Angelo)**
Porém o plano ainda não tem orçamento dedicado e não indica como serão vencidos os desafios que reconhece, tais como (1) aumentar a quantidade e a qualidade de cursos técnicos, profissionalizantes e de extensão voltados a competências básicas de internet das coisas; (2) incentivar a adoção da IoT financiando estudos e projetos piloto que comprovem seus benefícios; (3) criar um marco regulatório para lidar com os crescentes riscos à segurança da informação e (4) desenvolver redes de inovação temáticas para que grandes empresas, startups e centros de pesquisa possam gerar projetos exequíveis com a combinação de funding público e privado.
Azen acredita que o principal impacto da IoT será em países emergentes e que, apesar dos desafios, o Brasil, dessa vez, acompanhará o que acontece no mundo. “A publicação do plano de governo tem um papel importante para destravar o potencial e gerar engajamento”, diz. Vale dizer que o BNDES, com um grupo de trabalho dedicado, está gerando um guia de IoT para as cidades e deve ajudar a captar investidores para inovações no setor.
**QUADRO MAIS AMPLO**
“A internet das coisas é, de fato, mudança na veia”, diz Glauco Arbix, coordenador do Observatório da Inovação do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Para o sociólogo, que presidiu a agência de fomento à inovação Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) entre 2011 e 2014, o foco em tecnologias emergentes em geral passou a ser obrigatório e faz parte das escolhas difíceis que os países têm de fazer.
Preferindo não comentar o plano do governo especificamente, Arbix aponta o quadro maior para a tecnologia florescer e dar frutos, que requer ambiente adequado, infraestrutura e pessoas qualificadas. No que diz respeito ao ambiente, ele sugere “a real discussão sobre o aumento do nível de competição e redução dos mecanismos de proteção que dificultam a oxigenação da economia brasileira”.
A infraestrutura requer, a seu ver, além de novas estratégias, instrumentos e programas públicos e privados de inovação e apoio à P&D e a manutenção e o aperfeiçoamento de programas existentes que deram resultado. “Conhecimento novo exige estabilidade de recursos e infraestrutura, e perspectiva de longa duração”, diz. A prática de descontinuar ações, porém, é comum no Brasil. “Em décadas, 2010 foi o único ano em que os recursos para inovação deixaram de ser contingenciados em ciência, tecnologia e inovação (CT&I).”
O professor da USP comenta, por fim, que inovação exige pessoas qualificadas, que sejam “capacitadas a transformar ideias, dispostas a perguntar mais do que responder e a ouvir mais do que falar”. Ele destaca três medidas: a melhoria da qualidade da engenharia brasileira especificamente, o critério meritocrático e o foco na produção de conhecimento novo – “é o que alimentará empresas e universidades”.
A boa notícia é que o Brasil não está partindo do zero. Apesar de não termos uma verdadeira coalizão de empresas, universidades e agências públicas, nos últimos 30 anos o País construiu, como diz Arbix, um conjunto empresarial dinâmico – as empresas inovadoras brasileiras investem praticamente o mesmo que a média dos países da OCDE –, uma forte comunidade científica, um marco legal na área e instituições de apoio ao desenvolvimento tecnológico – mesmo que haja alguma instabilidade nelas. Essa é uma base respeitável.
**PARA POUCOS**
Entre as iniciativas isoladas em curso, o plano do BNDES/MCTIC e o quadro mais amplo, só há uma conclusão: o caminho para a IoT tão valorizada por Michael Porter não é fácil. Mas isso não vale só para o Brasil, com seus desafios particulares; o mundo todo está sendo desafiado. Como Arbix observa, “não há caminhos fáceis para a modernização das economias e sociedades”. Até porque a redução dos empregos por conta da automação é uma possibilidade real, conforme diversas pesquisas (não conclusivas).
Estudos de Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), preveem o surgimento de muitas oportunidades de trabalho novas, mas essas serão para poucos; os trabalhadores com baixa qualificação devem ficar de fora. Patricia Ellen da Silva, sócia da consultoria McKinsey que participou da elaboração do plano do BNDES/MCTIC, enfatiza: para que o potencial da internet das coisas possa ser capturado, a força de trabalho do Brasil terá de ser realmente preparada. Ela será?