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A revolução slow

A filosofia que prega usar o tempo sabiamente e fazer tudo no ritmo certo ganha milhares de adeptos em diferentes áreas atingindo até o frenético mundo dos negócios

por Alice Salvo Sosnowski | ilustrações Tiago Gouvea e design inspirado na revista Vida Simples

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> Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
> Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
> A vida não para
> Enquanto o tempo acelera e pede pressa
> Eu me recuso faço hora vou na valsa
> A vida tão rara
> (…)
> O mundo vai girando cada vez mais veloz
> A gente espera do mundo e o mundo espera de nós
> Um pouco mais de paciência
> Será que é tempo que lhe falta pra perceber
> Será que temos esse tempo pra perder
> E quem quer saber
> A vida é tão rara (tão rara)
>
> *“Paciência”, de Lenine e Dudu Falcão*

[Ouça a música enquanto lê](https://www.youtube.com/watch?v=ibLf9P_xfyM&feature=youtu.be)

Vou começar essa reportagem inspirada pela letra da música “Paciência”, cantada por Lenine. Depois de entrevistar especialistas, empresários, consultores, ler textos, livros, assistir a documentários, respiro fundo para conseguir traduzir em palavras tudo o que aprendi. A qualidade do texto e a criatividade desses traços, caro leitor, precisa de tempo para maturar. É como a comida que, para ser saborosa, precisa de calma e vigília no fogão.

Não é à toa que o movimento slow (devagar, em inglês) começou justamente na alimentação. Criada em 1986 pelo italiano Carlo Petrini, o slow food é uma iniciativa que prega a consciência e o prazer no ato de comer. A causa ganhou milhares de adeptos, espalhou-se por mais de 150 países e atingiu outras áreas preocupadas com o bem-estar das pessoas e do planeta, como a medicina, o design, a moda, o turismo, a educação e até os negócios.

Mas, diferente do nome, o movimento slow não tem nada de lento e combina muito mais com o termo equilíbrio. O slow é a busca de uma relação mais harmoniosa do ser humano com a natureza, o resgate das relações mais afetivas e a criação de vínculos com o que realmente importa.

E quem não quer saborear com calma um prato de comida bem-feita? Vivenciar cada minuto do prazer de uma viagem? Vestir uma roupa de qualidade e que dura mais de uma estação? Ser atendido sem pressa por um médico que escuta a individualidade de cada um? Foi buscando esse estilo de vida que muitas pessoas optaram pelo slow, um contraponto ao modelo fast em que a velocidade cobra um preço alto do indivíduo, do meio ambiente e também da sociedade.

## __NEGÓCIOS BONS, LIMPOS E JUSTOS__
Nos negócios, a filosofia slow já era vista em pequenas produções agrícolas, no trabalho de artistas, estilistas e designers que faziam e vendiam produtos pautados nos princípios do “bom, limpo e justo”. Uma das empresas pioneiras no Brasil foi a Refazenda, uma marca de moda com origem em Recife que cria roupas a partir de tecidos naturais e reaproveita 100% dos resíduos. Fundada em 1989 pela estilista Magna Coeli, a empresa nasceu com um modelo de produção sustentável e parcerias com produtores locais, agregando qualidade, design e atemporalidade.
O que hoje é conhecido e cultuado como upcycling (técnica que converte materiais antigos ou descartados em produtos de melhor qualidade) já era feito na Refazenda desde a década de 1990. Para disputar com as outras marcas o desejo dos consumidores, a empresa nunca deixou de inovar e trazer produtos com maior valor agregado e afetividade.

“Isso sem nunca contar com incentivo fiscal ou capital de giro mais barato por ser uma empresa sustentável”, conta Marcos Queiroz, sócio e CEO da empresa. Ele explica que a indústria têxtil é a segunda mais poluente do mundo devido ao desperdício de matéria-prima e ao intenso gasto de água.

Desde o início, a Refazenda se diferenciou pelos atributos do slow antes mesmo dessa denominação ganhar o mundo. “A gente sempre fugiu dos rótulos e procuramos nos identificar e conversar com o público por áreas de interesse: roupas de qualidade, duráveis, atemporais e minimalistas”, afirma Queiroz.

Diferente das fast fashions, as coleções da Refazenda não são feitas por estação, mas por temáticas como, por exemplo, o universo do café ou do frevo. Em 2012, a empresa pernambucana conquistou o prêmio de lixo zero da Federação das Indústrias do Estado de Pernambuco (Fiepe) e também chamou a atenção da Organização das Nações Unidas (ONU) como um exemplo de que é possível aliar os pilares da sustentabilidade a um negócio economicamente viável. Em 2019, a Refazenda foi convidada a contar sua história no Fórum de Recursos Mundiais – o maior sobre sustentabilidade e recursos naturais do mundo.

Segundo Queiroz, essa união entre sustentabilidade e negócios é viável desde que isso esteja dentro do core business da empresa. “Quando você opta por esse caminho, as margens de lucratividade podem ser até menores, mas em compensação ganhamos em engajamento e propósito”, explica o empresário, que faz coro com outras empresas que acreditam que o valor compartilhado com os stakeholders é o novo caminho do capitalismo. Muitas dessas empresas se engajam a movimentos como o Capitalismo Consciente ou o Sistema B, o qual certifica as empresas privadas que se comprometem a também gerar bens públicos. Na prática, esses movimentos são uma contraposição filosófica ao lucro acima de tudo.

## __REFÚGIO DE UMA VIDA SIMPLES__
Foi para escapar da alta velocidade do mundo contemporâneo que a jornalista Michelle Prazeres e o educador Eduardo Cordeiro iniciaram em fevereiro de 2016 o projeto Desacelera SP. A ideia nasceu em um café agradável na capital paulista. O lugar, que mais parecia um refúgio em meio ao caos da cidade, inspirou o casal a começar um guia de espaços onde é possível desacelerar, mesmo morando em São Paulo. “A gente precisa descobrir o nosso próprio ritmo. O que vem de fora é sempre urgente. O que vem de dentro são as prioridades que a gente escolhe”, explica Prazeres.

O projeto cresceu e formou uma rede de indivíduos, empreendedores e empresários que se reuniram em torno dos princípios da convivência afetiva, da atenção plena, da consciência temporal e do consumo consciente. “São escolhas do dia a dia, como saber a origem do que você compra, e qual a nossa responsabilidade com o planeta”, destaca a jornalista.

Em 2018, o Desacelera SP lançou o Dia sem Pressa, um festival da cultura slow para integrar vários projetos de inspiração nesse âmbito. O casal criou também a Escola do Tempo, o braço formativo da iniciativa que ajuda empresas e instituições a pensarem práticas internas de cuidado com as pessoas e com a qualidade de vida corporativa. “Num tempo em que existem tantas aceleradoras de startups, temos orgulho de dizer que somos a primeira desaceleradora de negócios do Brasil”, brinca Prazeres. A consultoria já atendeu empresas como Grupo Ultra, Sompo Seguros, Editora Globo, Shell, Gol, Escola Catavento, entre outras.

Professora, pesquisadora e coordenadora do Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP) da Faculdade Cásper Líbero, além de mãe de dois filhos, a vida de Prazeres não tem nada de devagar, mas como ela mesmo diz, é intensa no ritmo certo. Atualmente, ela faz pós-doutorado em comunicação e semiótica focando o estudo da slow mídia, que busca uma forma mais profunda e contextualizada de transmitir a informação, valorizando mais a qualidade do que a quantidade. O melhor exemplo que temos nessa linha é a marca Vida Simples que, em colaboração com HSM Management, cedeu as ilustrações dessa reportagem.

A revista, que nasceu em 2002 no Grupo Abril, foi adquirida em 2018 pelo casal Eugenio Mussak e Luciana Pianaro. Na posição de CEO, Pianaro transformou a Vida Simples em uma plataforma de conteúdo, educação e negócios. Segundo a executiva, a marca tem em seu DNA a filosofia slow e procura inspirar as pessoas na busca do ser, conviver e transformar o mundo.

Com reportagens bem apuradas e elaboradas, sem a necessidade da pressa da informação em tempo real, a revista expandiu seus domínios para o mundo virtual. Hoje, são 2,5 milhões de seguidores nas redes sociais. “Com a pandemia, tivemos picos de acesso que chegaram a ser até seis vezes maior do que o normal. As pessoas iam na busca orgânica no Google procurar informações mais leves e com significado pessoal”, conta Pianaro.

Apesar do conteúdo inspiracional, a marca não atinge apenas um perfil alternativo. Entre seu público fiel, existem pessoas de todas as idades, com boas condições financeiras e alto nível cultural. A CEO conta que o leitor típico de Vida Simples é aquele que gosta de acordar no domingo de manhã, tomar sol e fazer uma caminhada até a banca mais próxima para comprar o jornal e a revista. “Eles buscam um novo olhar sobre o mundo, mais compassivo, harmonioso e integrado com a natureza”, completa.

## __DA CONTRACULTURA AO MAINSTREAM__
Para o especialista Ricardo Voltolini, fundador da consultoria Ideia Sustentável, que trabalha há mais de 20 anos com o tema em grandes organizações, o movimento slow não é uma iniciativa isolada ou uma moda passageira, mas uma tendência que veio para ficar.

Segundo Voltolini, é preciso fazer uma análise sistêmica para entender este ponto de inflexão que estamos vivendo. “Além dos sinais de falência do modo atual de fazer negócios, temos um movimento geracional que favorece a mudança.” Ele explica que tanto a Geração X como os millennials (pessoas nascidas entre as décadas de 1980 e 1990) estão assumindo os espaços de poder e substituindo os executivos mais velhos. “Essas gerações colocam o propósito na frente do lucro e querem mudar o curso do capitalismo”, afirma Voltolini.
A evidência mais emblemática disso é que o Fórum Econômico Mundial realizado este ano, ainda antes da pandemia, discutiu por dois dias os negócios de propósito. “Os capitalistas estão estendendo que para continuar no jogo é necessário rever as regras”, afirma.

Citando o sociólogo francês Edgar Morin em sua obra Os sete saberes necessários à educação do futuro, o especialista explica que a visão slow é uma contracorrente regeneradora do modelo dominante fast. “É impossível entender o século 21 sem compreender essas nuances das contracorrentes que buscam revisar o modo convencional de pensar e fazer negócios. Se eu quero prosperar no século 21, tenho que entender para onde a civilização está caminhando”, completa.

Para Voltolini, não é por acaso que estão pipocando pelo mundo diversas experiências empresariais com princípios da filosofia slow. São negócios de todos os portes, natureza e localidades geográficas e vão desde pequenas empresas de viagem e hospedagem até grandes grupos empresariais como a rede RaiaDrogasil, que estendeu a cultura do cuidado para clientes, funcionários e comunidade. Segundo a vice-presidente de gente e cultura Maria Susana de Souza, a empresa caminha cada vez mais para a direção de promover mudanças na sociedade e prestar serviços para todos valorizando a saúde integral em todas as dimensões: física, mental, espiritual, social e do planeta. “Queremos dispor da nossa liderança no segmento e de nossas mais de 2 mil lojas para ser, em cada uma delas, um espaço que promove a saúde integral”, conta a executiva.

## __DEMOCRATIZANDO OS ORGÂNICOS NO BRASIL __
É da alimentação que vem o exemplo brasileiro mais bem-sucedido de negócio que opera usando os princípios do “bom, limpo e justo”. Trata-se da Mãe Terra, empresa líder no segmento de alimentos naturais e orgânicos no Brasil.
Fundada em 1979, a Mãe Terra nasceu como um restaurante natural que vendia ingredientes, grãos e cereais integrais. Em 2007, ela foi comprada pelo empreendedor Alexandre Borges, que colocou a empresa no mapa dos negócios sustentáveis.

O surfista que segue os preceitos budistas explica que a filosofia slow é uma busca pelo caminho do meio. “É o equilíbrio entre a razão e a emoção, o pensar e o sentir, o masculino e feminino, entre ter lucro e propósito”, afirma. Para o empresário essas coisas tendem a ser antagônicas, mas não são. “É possível ter lucro e impacto social, ser ágil e também ser slow. É possível ter uma empresa de alimentos que faça bem para as pessoas e que tenha sucesso empresarial”, afirma.
O sonho de Borges sempre foi democratizar o consumo de alimentos orgânicos no Brasil, que era restrito a um público menor. Em 2015, em uma parceria inédita, a Mãe Terra e a empresa aérea Gol se uniram para oferecer o snack Tribos nos voos da companhia. De repente, milhões de pessoas por todo o País passaram a consumir gratuitamente um lanche natural e orgânico.

Carolina Trancucci, diretora de produtos e experiência da Gol, conta que, em pesquisas, os clientes apontavam que estavam buscando alimentos mais saudáveis e que a empresa estava procurando sair do lugar-comum com uma alimentação diferenciada. “Imagina que em cada voo são 180 passageiros, em média, e dezenas de emoções diferentes viajando juntas. Tem a pessoa que vai encontrar a família, a que vai fechar um contrato, a que está com medo, a que está ansiosa. Queríamos oferecer um momento de indulgência, e o snack Tribos foi a materialização disso”, afirma.

A parceria entre as duas empresas exigiu a montagem de uma estrutura logística. Os voos se tornaram uma espécie de plataforma de divulgação da Mãe Terra, que foi aos poucos diversificando seu portfólio, introduzindo novos sabores, trazendo uma variação de snacks salgados e doces. “As pessoas se permitiram conhecer e gostar dos produtos orgânicos. Até as crianças foram contempladas com o lançamento dos cookies e pediam o lanche durante o voo”, relembra Carolina. Até hoje, os snacks Tribos fazem parte do portfólio da Gol e contribuem muito para a visibilidade dos orgânicos por todo o país.

A Mãe Terra não parou por aí. Em 2017, deu mais um salto de mestre e foi adquirida pela gigante Unilever. Segundo Alexandre Borges, a empresa estava num momento de expansão e precisava financiar o alto crescimento, que chegava a 30% ao ano. “Eu tinha duas opções: ou parava de crescer ou escolhia um parceiro adequado”, conta Borges. Para valer a pena, a parceria precisaria compartilhar os mesmos propósitos. “Queríamos crescer, mas não a qualquer preço”. A empresa escolhida foi a Unilever, uma corporação europeia, mais alinhada com o equilíbrio entre lucro e valores, que de acordo com Borges iria ajudar na missão de oferecer comida natural e orgânica para mais pessoas no Brasil.Apesar das críticas iniciais e dos desafios operacionais, a integração tem sido bem-sucedida. A cultura da Mãe Terra, que mantém sua operação separada da gigante de alimentos, permanece intacta, atuando em uma cadeia sustentável, com cooperativas de produtores e trabalhando com a biodiversidade brasileira. “A Unilever fez questão de preservar a nossa alma, que é o sucesso da nossa empresa”, conta Borges, que se mantém CEO da empresa.

A Mãe Terra também é certificada como Empresa B e cresce respeitando a preservação ambiental e o cuidado social. “Mais uma vez, é a busca pelo caminho do meio”, afirma Alexandre. E explica: “De nicho passamos para o mainstream, provando que é possível, sim, ser sustentável e lucrativo”. Para o empreendedor, esse é o único caminho viável para as empresas, já que o consumidor também está atento à questão do propósito, e está de olho nos negócios que visam não apenas ao lucro, mas também ao bem do planeta. “Se antes a decisão de compra era baseada em atributos funcionais e emocionais, agora a ética e o impacto ambiental e social também estão no radar do consumidor. E as empresas sabem que isso já é o presente e o futuro dos negócios”, conclui o empreendedor.

Slow Design e Slow Travel

O Bosque Hostel, construído em Curitiba, é considerado um dos primeiros hostels com o conceito slow design do Brasil. A principal fonte de inspiração para se construir O Bosque Hostel foi a natureza. O projeto arquitetônico utiliza ripas de madeira antiga, vindas de demolidoras, e o empreendimento foi pensado para aproveitar ao máximo a iluminação natural. “Todo o projeto tem o conceito ecológico e sustentável, e a decoração valoriza o artesanal”, conta a proprietária Eduarda Guimarães de Almeida.

No início de 2020, o hostel passou a fazer parte do Sistema B, e com a certificação veio uma rede de contatos e empresas que compartilham os mesmos valores, como a Vivejar, uma agência que valoriza a imersão e o turismo de experiência por meio de viagens com grupos pequenos para diferentes locais do Brasil, como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e comunidades ribeirinhas da Amazônia. “Nessas viagens, valorizamos a experiência sensorial, o contato direto do turista com as comunidades locais e o desenvolvimento sustentável das regiões visitadas”, conta Marianne Costa, fundadora da empresa que faz parte do Sistema B desde 2016.

O Sistema B é uma comunidade global de organizações que buscam o desenvolvimento socioambiental, além do econômico. Surgiu nos Estados Unidos em 2006 e está no Brasil desde 2013. Qualquer empresa pode fazer parte do Sistema B, mas precisa ter altos padrões de gestão, transparência, adotar práticas sustentáveis que gerem benefícios sociais e ser certificada. Atualmente, são 5 mil companhias em processo de certificação no País. Saiba mais sobre a visão de Francine Lemos, diretora executiva do Sistema B Brasil, na reportagem da página 26.

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