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A sucessão de NARCISO

No Brasil, 70% das empresas familiares morrem porque não conseguem chegar à geração seguinte; o real problema e sua solução podem não ser muito óbvios.
É sócio-proprietário da Cedar Tree Family Business Advisors e da Consilium Family Office Advisros. Graduado em gestão de recursos humanos e mestrado em consulting and coaching for change pela INSEAD Business School, na França, trabalhou por mais de 20 anos como executivo no conglomerado de empresas de sua família. Especialista em governança Familiar e no desenvolvimento da família empresária, cursou diversos programas como parceria para o desenvolvimento do acionista-PDA e desenvolvimento de conselheiros-PDC, pela Fundação Dom Cabral-FDC. É certificado internacionalmente em Family Business advisor pelo Family Firm Institute-FFI, de Boston (USA). É fundador do Fórum Brasileiro da Família Empresária-FBFE.

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Narciso era uma criança tão bela que sua mãe, Liríope, preocupada, decidiu consultar um sábio sobre como criá-lo. Tirésias disse que o menino só teria vida longa se jamais visse a própria imagem. Mas, um dia, Narciso dirigiu-se a um lago e, ao ver sua imagem refletida ali, enlouqueceu de amor pelo próprio reflexo, sem olhos para mais nada. Mergulhou n’água e desapareceu em busca do objeto de sua paixão, sem reconhecer que era ele mesmo. 

Partindo desse mito, a psicanálise desenvolveu o conceito de narcisismo, que remete à pessoa que nutre paixão por si mesma. Um tanto de amor próprio é necessário para confirmar e sustentar a autoestima, é claro, mas o exagero costuma ser prejudicial, não apenas ao convívio social como ao trabalho e à vida da pessoa. 

Os negócios não escapam disso e, em especial, os negócios familiares. No Brasil, onde 90% de todos os negócios têm controle familiar, 70% deles morrem por não conseguir passar para a segunda geração. Segundo a consultoria PwC, apenas 8% das famílias empresárias se sentem preparadas para a sucessão de liderança dos negócios. 

Minha hipótese é que uma das causas de as empresas familiares terem duração tão curta é algo de que quase não se fala: os fundadores ou líderes que apresentam traços narcisistas. Assim, impactam negativamente as relações entre os sócios familiares, dando origem a sérios conflitos, colaborando para a descontinuidade dos negócios e, consequentemente, comprometendo a transição. Narcisistas não delegam poder, não valorizam a educação de seus sucessores, não compartilham seus conhecimentos. Tais ações impactam negativamente não só o dia a dia da empresa como também as relações entre os membros familiares fora dela, podendo dar origem a conflitos e desalinhamento entre os sócios e, assim, ameaçando a sucessão e a continuidade do negócio. 

Ao contrário da autoestima, qualidade indispensável à liderança, narcisismo é uma patologia. Dependendo do nível de narcisismo dos empreendedores familiares, a passagem de bastão e o planejamento sucessório ficam muito difíceis – às vezes, até impossíveis. Esse foi o tema do meu livro Sucessão ou morte da empresa familiar?. 

**ENTENDENDO O NARCISISMO**

Inicialmente, Sigmund Freud (1856-1939) tratava o narcisismo como um estágio intermediário entre as fases do autoerotismo e do amor por objetos externos. Então, o próprio Freud propôs a existência de dois tipos de narcisismo: a) o primário, que corresponde à fase em que o próprio corpo constitui para o sujeito seu único objeto de desejo; e b) o secundário, no qual o objeto de satisfação não está mais num órgão, nem mesmo num conjunto de órgãos do corpo, mas no ego. 

No mundo dos negócios, Kets de Vries e Miller afirmam que a liderança e o narcisismo têm estreita relação. Ao ocupar o cargo de liderança, o líder narcisista encontra o espaço necessário para sua manifestação. Mas vários estudos distinguem tipos positivos e negativos de narcisismo, como o de Lubit, que distingue o narcisismo saudável do destrutivo. O primeiro é caracterizado por uma autoconfiança baseada em sólida autoestima, que permite lidar com situações de estresse com facilidade. Já o segundo exibe autoconfiança como tentativa de esconder a fragilidade da autoestima, o que leva a não respeitar direitos alheios, tornar-se arrogante, menosprezar e explorar outras pessoas. Para Lubit, o narcisismo destrutivo também aumenta a ambição do sujeito por poder, levando o gestor a sacrificar tudo que cresce na organização. A ambição pelo poder pode transformá-lo em mestre no ato de manipular pessoas, fingindo que se preocupa com os outros, para atingir seus objetivos. 

Não considera seu comportamento errado, pois se julga especial e merecedor de tratamento melhor do que os outros. A maioria de seus relacionamentos é marcada pelo menosprezo ao outro, por um sentimento de ter direito a tudo e pelo desinteresse pelos direitos alheios. 

Às vezes, exibe fortes traços de personalidade paranoica. Projeta nos outros seus desejos e atitudes não aceitas. Pode ser desconfiado, suspeitoso, hipersensível, contestador e inclina-se a atribuir intenções maldosas aos outros. Vê o mundo como hostil e ameaçador, confia apenas em alguns subordinados e os agrada para que lhes sejam fiéis e exibam total devoção em troca. Quando os gestores narcisistas destrutivos adotam uma postura paranoica, sua capacidade de contribuir para a produtividade dos negócios se reduz drasticamente. 

Na condução dos negócios, gestores narcisistas destrutivos afastam os melhores colaboradores, uma vez que não toleram o sucesso dos subordinados, sejam eles profissionais, sejam seus próprios filhos. Impedem o desenvolvimento de sua equipe e insistem em agir do seu modo. Não são empáticos e estão sempre prontos a explorar os demais. 

O desafio da sucessão do líder narcisista de uma empresa tem um agravante. Para ele, ter de passar o bastão é como ter de aceitar o próprio envelhecimento e lidar com a morte. Isso é difícil para todos, mas especialmente para narcisistas destrutivos. Como reação, eles se agarram ainda mais ao poder em vez de delegá-lo à próxima geração no momento oportuno e o resultado, claro, é bastante destrutivo para as organizações. E confrontar tais líderes pode ser desastroso, pois não é incomum se tornarem agressivos ou paranoicos quando contrariados. 

**MUDANDO O FOCO**

Minha hipótese é de que a influência de fundadores narcisistas em membros familiares pode causar grandes traumas e rupturas nos negócios. Foi isso que trabalhei em uma dissertação de mestrado no Insead, França, em 2016. Como procedimento, pensava inicialmente em entrevistar fundadores, compreendê-los e procurar ajudá-los. Porém meu orientador, o professor Roger Lehman, me aconselhou a seguir outro caminho: descobrir se tais impactos dos líderes narcisistas sentidos por seus herdeiros contribuem para a descontinuidade dos negócios – e, em caso afirmativo, como isso ocorre. 

Segui esse caminho e os depoimentos recolhidos com sucessores confirmaram a tese: o processo sucessório se torna pouco provável ou mesmo impossível quando o fundador ou líder da empresa familiar possui traços narcisistas destrutivos. Fundadores narcisistas na maioria das vezes distorcem a imagem dos próprios fi lhos, pois não suportam a ideia de que alguém possa substituí-los. Costumam concentrar a atenção no crescimento de suas empresas e não medem esforços para atingir seus objetivos de poder, status, prestígio e superioridade, relegando a família a segundo plano. Não se dedicam a construir um relacionamento com seus fi lhos e netos, nem nutrem laços familiares de longo prazo, ingredientes fundamentais para a continuidade do legado familiar. Entre as consequências, além de conflitos em família, muitos irreversíveis, e de incontáveis problemas de natureza psicológica nos herdeiros, pode ocorrer a destruição da empresa familiar – e o desmantelamento da família. 

Como pais e educadores, os fundadores narcisistas falham na educação e no direcionamento de seus filhos. O perfil manipulador e explorador, típico deles, retarda e até mesmo anula o desenvolvimento desses herdeiros. Eles têm suas identidades abaladas e seus planos pessoais adiados. Seduzidos por um sonho que não é o deles, vivem uma vida ilusória – e não se deixar influenciar por pais narcisistas é uma dura missão, bem como é difícil libertar-se de uma relação de dependência. 

Ao quererem ser protagonistas de suas próprias histórias e se desvencilhar do negócio familiar, os sucessores geralmente sentem-se culpados. Diante de tanta cobrança e expectativa, permanecem amarrados aos padrões familiares. Um dia, cansados de desentendimentos constantes e da falta de alinhamento da família, acabam se afastando dos negócios e até mesmo rompendo relações familiares. E tudo isso contribui para a descontinuidade das empresas e a pulverização do legado familiar. 

![](https://revista-hsm-public.s3.amazonaws.com/uploads/35a52796-1a12-444c-ba62-1bac2f522f2e.png) 

**A MELHOR SOLUÇÃO**

 “Freud sugere responsabilizar nossos pais por todas as falhas da nossa vida, e Marx sugere responsabilizar a classe social privilegiada. Mas o único responsável é o próprio indivíduo. É o que há de proveitoso na ideia hindu do carma. Sua vida é fruto do seu próprio fazer. Você não tem ninguém a quem responsabilizar, exceto a si mesmo.” Essa afirmação é de Joseph Campbell, o autor de _O poder do mito_, e descreve à perfeição a solução possível para as empresas familiares: além de entender que o verdadeiro problema é o narcisismo dos líderes, promover uma mudança de comportamento dos herdeiros. Foi o que vi acontecer com alguns herdeiros entrevistados, com ótimos resultados. 

Como os herdeiros podem mudar o comportamento?
A reconstrução da identidade é o passo número um para essa mudança, e passa pelo encontro com a verdadeira vocação, que decorre da busca por autoconhecimento por meio de processos de individuação. Sem um processo de individuação e autoconhecimento, somos prisioneiros do nosso passado. É necessário entender quem somos e tomar consciência de nossos padrões de comportamento. A busca pelo crescimento pessoal é um processo de aprendizado longo e doloroso. Somente assim é possível ser autor da própria história. 

Desprender-se dos tentáculos de um fundador narcisista é tarefa difícil, mas não impossível. É preciso encarar o temor de se desconstruir e, então, reunir todas as forças para se reconstruir. É preciso procurar saber quem você é, qual sua verdadeira vocação e aonde quer chegar. Há histórias únicas de empresas que passaram por guerras, contratempos, dramas e crises, mas, ainda assim, se mantiveram unidas e saudáveis, graças à resiliência e criatividade da família. Qual o segredo de resistir durante séculos? Como podemos aprender com essas famílias que perpetuaram seus negócios por tanto tempo? 

Acredito que a longevidade de empresas familiares depende acima de tudo de relações familiares equilibradas, fundamentais para proporcionar mudanças verdadeiramente eficazes e positivas no empreendimento, ao longo do tempo. 

O segundo passo é a educação, que traz novas perspectivas, gera amadurecimento e fortalece os membros da família. Como assevera Randel Carlock, o conhecimento melhora o capital humano e aumenta a vantagem competitiva das famílias empresárias. A cada geração, os desafios da empresa mudam, os jogadores mudam e até as regras podem ser mutáveis. O importante é que os sucessores se reinventem e, ao mesmo tempo, mantenham o DNA e os valores da empresa e da família. 

É preciso abrir espaço para a educação. Há uma história de um famoso mestre Zen que foi abordado por um de seus discípulos, ávido por aprender mais sobre os seus conhecimentos. O mestre, então, convidou-o para tomar chá. Quando o chá estava quase pronto, o mestre começou a servi-lo, mas quando a xícara estava praticamente cheia, o mestre continuou a servir, deixando o chá transbordar. O discípulo, espantado, interrompeu o mestre e perguntou por que ele estava fazendo aquilo, ao que o mestre respondeu: “Sua mente é como uma xícara de chá. Está totalmente cheia e não existe espaço para o novo. Dessa forma, não consigo lhe ensinar nada. Vá embora e volte somente quando sua mente tiver espaço para um novo aprendizado”, relata Kets de Vries no livro Leader on the couch. 

Assim como a capacitação conta muito, a construção de autonomia, decorrente do encontro com a vocação, também é fundamental. É ela que permite não se deixar abalar por quem tem poder ou por quem controla o dinheiro; é ela que liberta a pessoa da dinâmica quem-manda-e-quem-obedece. 

Canais de comunicação familiar são outro aspecto da solução. Não significa que todos pensarão do mesmo modo ou que farão as mesmas coisas, mas uma boa comunicação facilita muito o alinhamento. 

Tudo isso ajudará a aceitar que os pais também têm medos, traumas e padrões comportamentais que prejudicam seu desenvolvimento emocional – uma postura madura que precisa acontecer e pode ser uma saída. É evidente que há sofrimento nesse processo, por requerer “matar” emocionalmente os pais. Conseguir perdoá-los, ter uma postura não infantilizada em sua presença e não vitimizar-se na relação com eles é uma dura missão, mas possível. 

É isso que pode fazer as famílias empresárias abrirem a caixa-preta das emoções, encarar seus dramas de forma aberta e corajosa, colocar na mesa assuntos “velados” de forma transparente e, assim, conseguir superar os desafios intangíveis da sucessão. 

Lembro que, no mito de Narciso há mais uma personagem: Eco. Trata-se de uma jovem que se apaixona por Narciso, é rejeitada por ele e acaba condenada a repetir o que dizem os outros pela eternidade, sem voz própria. O que me dei conta é que as empresas familiares conseguem ser duradouras só quando Eco – nesse caso, representante de todos os outros membros da família – adquire voz própria.

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