Estratégia e Execução
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A transformação digital no Estado

Conheça em detalhe dois projetos de gestão pública que mostram a viabilidade de agilizar também esse setor

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Não faltam, no Brasil, anseios por maior qualidade dos serviços públicos. A demanda por um Estado mais eficiente, mais transparente, mais inclusivo e menos corrupto está no imaginário da população. Fazer mais, melhor e com um custo razoável são os fatores de uma equação complexa, no entanto. Por isso, argumentamos que a transformação digital do Estado pode ser um meio-chave, embora não o único, de alcançar maiores níveis de democracia, desenvolvimento e eficiência nos serviços e na gestão pública.

De um lado, multiplicar as formas de acesso e contato direto com o cidadão pode fazer do Estado o mais relevante vetor de desenvolvimento socioeconômico. De outro, a tecnologia da informação em sua fase mais recente – da conectividade, da inteligência artificial e dos grandes volumes de dados – possibilita novos patamares de eficiência para a gestão.

É verdade que essa transformação digital está repleta de desafios, e não só no Brasil. Citemos dois. A infraestrutura para acessar a internet é um deles. Dos 7,6 bilhões de pessoas que habitam o planeta, menos da metade (45,7%) dispunha de acesso à internet em 2016. (Embora dados do Banco Mundial sugiram que as famílias mais pobres têm mais acesso a celulares com internet do que a serviços de saneamento básico.) Outro desafio é a cultura das organizações governamentais, em que muitos funcionários relutam em abrir mão de processos hoje ultrapassados – o que não é exclusividade do setor público, diga-se de passagem.

Dá para vencer esses desafios? A resposta é sim e temos vivenciado múltiplos casos que a confirmam.

**CASOS DE SUCESSO**

Para tornar nossas percepções mais concretas, apresentamos dois casos recentes de transformação digital no setor público brasileiro: Ceará Transparente e Conviva Educação. 

**CEARÁ TRANSPARENTE**

Difícil pensar em uma palavra tão fetichizada, nesse início de século, quanto “transparência”. Em sua acepção mais positiva, significa abertura e diálogo. Mas é possível pecar pelo excesso de transparência? Sim. Um dos dilemas do novo século é saber definir quais dos nossos dados queremos ocultar do Facebook, do Google e também das pessoas de nosso convívio mais íntimo – no ótimo seriado Billions, exibido pela Netflix, discute-se quão “transparentes” devem ser as senhas do casal protagonista. A resposta não é óbvia. A ficção já contempla distopias que descrevem a despersonalização que viria da transparência máxima, como no filme O Círculo .

Se calibrar o grau de transparência é difícil para indivíduos, governos sofrem muito com isso. Um governo pouco transparente será tratado com desconfiança e pressionado a abrir seus dados. Já transparência excessiva pode atrapalhar negociações políticas e prejudicar interesses mercadológicos de empresas estatais.

Uma resposta para esse dilema é implementar programas de transparência governamental baseados nos direitos dos cidadãos, e não apenas no cumprimento de leis de acesso à informação. Esse é o objetivo do “Ceará Transparente” , implementado pela Caiena, contratada por governo do estado do Ceará e Banco Mundial. 

O projeto é fruto de uma operação de crédito entre as duas instituições por meio do Programa para Resultados em 2013. O acordo de US$ 350 milhões destinou parte dos recursos para a transformação digital dos serviços de Transparência, Ouvidoria, Acesso à Informação e Participação Cidadã. Coube ao Ceará Transparente esse desafio.

O Ceará Transparente não foi um projeto fácil. O primeiro passo foi conhecer a diversidade regional, realizando uma pesquisa etnográfica em 27 cidades, que percorreu mais de 4 mil quilômetros pelo estado. A pesquisa revelou que, apesar de a população possuir os meios digitais de acesso ao governo, desconhecia os canais de interação. Além disso, os sistemas de controle social não funcionavam adequadamente em celulares – hoje, um dos principais meios de acesso à informação.

A pesquisa também indicou a necessidade de disponibilizar aos cidadãos protótipos do Ceará Transparente para colher os feedbacks de melhoria logo no início. Assim, com 19 dias de desenvolvimento, uma primeira versão da plataforma foi testada “vapt-vupt”. Na ocasião, foram criados 61 chamados, todos encaminhados aos órgãos competentes do estado para atendimento. 

Hoje, por meio do Ceará Transparente, o cidadão pode acompanhar os investimentos orçamentários do estado de modo regionalizado e inteligível – a inteligibilidade é um ponto importante. Iniciativas de orçamento participativo existem no Brasil desde o fim da década de 1980, mas pecam pela complexidade das informações, atendendo apenas participantes que detêm conhecimento e preparo prévios para entender o orçamento. Os cientistas políticos Lúcio Rennó e Aílton Souza mostram que a cidade-modelo do orçamento participativo tem dificuldades em atrair para a deliberação pública pessoas que não possuem engajamento em, por exemplo, associações de bairro.

No Ceará Transparente, o cidadão pode também pedir acesso a dados públicos e abrir chamados de ouvidoria. Ao abrir um chamado, ele consegue, por exemplo, informar o governo, de maneira anônima, o fato de um agente público do órgão X ter exigido propina para fazer certo serviço.

O projeto foi lançado em junho de 2018 e já mostra bons resultados. O tempo de permanência do cidadão nas plataformas digitais quase dobrou e os chamados de Ouvidoria quadruplicaram. Isso nos leva à hipótese de que os cidadãos estão mais engajados na interação com o governo estadual. Ainda, a quantidade de acessos aos sistemas de controle social do Estado aumentou mais de 30%. A rede de ouvidoria alcançou maior capilaridade, incorporando instituições antes inacessíveis. 

Em 2018, o Ceará Transparente foi reconhecido pelo mais tradicional prêmio de design no mundo, o iF Design Award, na categoria “design de serviços para governos e instituições”. Outro reconhecimento foi concedido pela Câmara dos Deputados, por meio do prêmio de “Transparência e Fiscalização Pública”.

**CONVIVA EDUCAÇÃO**

Esse projeto é a maior iniciativa brasileira de transformação digital voltada para secretarias municipais de educação – atualmente, alcança mais de 5 mil municípios. Desse universo, 2.153 municípios acessam a plataforma todo mês. Cerca de 37 mil técnicos das secretarias de educação são atingidos pelo projeto. Para além da ferramenta tecnológica, são realizadas ações de formação de capital humano, planejamento de políticas públicas e gestão orientada por dados.

O projeto Conviva teve início no final de 2012, capitaneado pelo Instituto Natura, em parceria com outras dez instituições. Àquela altura, o desafio era construir uma primeira versão da plataforma em três meses, para aproximar os gestores municipais de educação e fomentar um ambiente baseado em quatro pilares: 

• informação, 

• formação, 

• trocas de experiências, e 

• trocas de dados. 

A capacitação dos quadros técnicos e a integração de dados de fontes oficiais são grandes desafios. Com relação aos quadros técnicos, foram organizadas redes de articuladores locais em 17 estados, promovendo a capacitação presencial para cerca de 1,2 mil municípios. Prêmios foram organizados para reconhecer as boas práticas de gestores públicos na educação, fomentando o uso de dados e ferramentas digitais na gestão. Já a integração de dados foi feita por meio de uma camada de integração.

Os relatos dos usuários do Conviva destacam ganhos de produtividade para gerenciar, manter e recuperar as informações básicas das secretarias, como cálculos nutricionais, custos e repasses. O Conviva permite a quase todos os municípios brasileiros o acesso organizado a seus próprios dados, a conteúdos formativos e a ferramentas de gestão, ampliando as possibilidades analíticas para a melhoria do serviço público prestado na área de educação.

> **SAIBA MAIS SOBRE OS AUTORES**
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> No melhor espírito digital e colaborativo, este texto foi escrito a dez mãos. Os cientistas da computação e mestres em inteligência artificial Caio Belazzi e Eduardo Assis são fundadores e diretores da Caiena Tecnologia e Design e criaram também a Caju Capital Social, sociedade de investimentos para negócios de impacto social. O economista e mestre em administração pública pela Fundação Getulio Vargas Nilson Oliveira tem vasto histórico de atuação em projetos de tecnologia e políticas públicas. O advogado Valdir Simão foi ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão e ministro-chefe da Controladoria-Geral da União e, entre 2016 e 2018, um dos responsáveis pela implantação do Ceará Transparente. O professor Sérgio Praça é pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro e do Centro de Política e Economia do Setor Público da FGV-EAESP, com pós–doutorado também pela FGV-EAESP.
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> A Caiena nasceu há 15 anos incubada na Unesp de Rio Claro (SP) e inicia 2019 com faturamento previsto em pouco mais de 
>
> R$ 50 milhões, 50 funcionários (dois dos quais se tornaram sócios) e uma taxa de crescimento anual de 50% nos últimos três anos. Um de seus focos tem sido desenvolver plataformas digitais para o poder público, dentro e fora do Brasil, e, com isso, organizou um conjunto relevante de conhecimentos na área.

**APRENDIZADOS**

Nessas duas experiências, e com todas as outras de que participamos, identificamos quatro fatores de sucesso principais, que podem servir a qualquer projeto de transformação digital do Estado: 

(1) Comprometimento das equipes gestoras e das lideranças dos órgãos governamentais. 

(2) Formação de capital humano e transferência de tecnologia.

(3) Software em funcionamento disponível para os usuários em versões iniciais. 

(4) Adaptabilidade às mudanças e cultura ágil de gestão e governança.

O comprometimento dos gestores e a capacidade de adaptação às mudanças dos órgãos governamentais são particularmente delicados. Em sistemas democráticos como o brasileiro, a mudança de governantes é óbvia e desejável. Mas espera-se, no melhor dos mundos, que os novos detentores do poder não joguem às traças os avanços dos antecessores. E acreditamos que políticas de transparência governamental sempre são avanços. 

Identificamos ainda quatro desafios recorrentes. São eles: (1) ausência de uma política de transformação digital integrada para todos os níveis de governo; (2) necessidade de proteger a privacidade para evitar que o ferramental digital seja utilizado como instrumento de manipulação; (3) baixa cultura de gestão de riscos na administração pública e receios de responsabilização em processos de inovação; e (4) formação insuficiente dos quadros técnicos do Estado para lidar com gestão da informação, integridade de dados e qualidade de software. 

**ACEITAR O ERRO É PRECISO**

Quanto antes os poderes públicos entenderem a relevância da transformação digital para a relação sociedade-governo, ou mesmo governo-governo, melhores serão os resultados sociais. Para enfrentar os desafios dessa transformação, os governos devem buscar garantir a excelência em seus sistemas de informação e suas bases de dados, o que implica integrar a engenharia de software ao design e ao desenvolvimento pautado em testes contínuos. E esse é outro desafio democrático: testar significa errar, e isso é sempre algo delicado para políticos eleitos e não eleitos. Mas é um preço pequeno a pagar pelos ganhos da inovação.

Um cuidado a mais é não esquecer que a tecnologia é um meio, sem intenções, e precisa ser dirigida para os benefícios de toda a sociedade.

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