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“AI whisperer”: quando o CEO terceiriza o pensamento crítico

A ascensão dos conselheiros de IA levanta uma pergunta incômoda: quem de fato está tomando as decisões?
Co-Fundador e VP de Inovação e Tecnologia do Grupo Benner, Palestrante, Mentor, Conselheiro, Embaixador e membro do Senior Advisory Board do Instituto Capitalismo Consciente Brasil, Embaixador e Membro da Comissão ESG da Board Academy BR e Especialista do Gerson Lehrman Group e da Coleman Research – Fala sobre Inovação, Governança e ESG.

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Em meio à avalanche de transformações causadas pela inteligência artificial generativa, uma nova figura discretamente poderosa começou a circular pelas salas de conselho e escritórios de CEOs globais: o “AI whisperer”, que tem sido chamado de conselheiro ou até coach de IA em algumas empresas.

Trata-se de um profissional técnico, com trânsito fluente entre algoritmos e linguagem executiva, cuja função não está em nenhum organograma, mas que já influencia decisões estratégicas, discursos públicos e prioridades de investimento. Ele traduz, sintetiza, aconselha. E, em muitos casos, decide por quem deveria estar decidindo.

Empresas que se dizem “AI-driven” contratam esses especialistas para ajudar seus líderes a entender o mínimo necessário, fazer as perguntas certas ou, no caso mais comum, parecerem atualizados sem de fato estarem. O fenômeno cresce silenciosamente, impulsionado pelo temor de ficar para trás em um jogo tecnológico que muda de regras a cada trimestre.

Mas a ascensão dessa figura intermediária revela algo incômodo: talvez o problema não seja a complexidade da IA, mas a limitação cognitiva das lideranças que deveriam guiá-la.

Porque quando o topo da organização precisa de intérprete para compreender o que moldará seus próximos anos, não estamos apenas diante de um novo apoio técnico. Estamos diante de um sintoma de regressão.

O surgimento do “AI whisperer” como “função oculta”

O avanço da inteligência artificial generativa impôs às lideranças empresariais um novo tipo de desafio: tomar decisões estratégicas sobre tecnologias que poucos compreendem em profundidade, mas que afetam diretamente o modelo de negócio, a governança e a reputação da organização.

Esse é o contexto em que surge o “AI whisperer”. Trata-se de um contexto que pede um profissional-ponte entre a lógica algorítmica e o discurso executivo, como já dissemos. Outro modo de explicar sua função, aliás, dizer que ele edita e molda a inteligência artificial para caber na agenda da alta liderança.

Essa função, embora não formalizada, já é amplamente reconhecida e valorizada. Entre multinacionais, fundos de investimento e empresas com ambições de modernização, o “AI whisperer” vem ganhando protagonismo silencioso. O Business Insider mostra que CEOs de empresas da Fortune 500 contam hoje com “AI strategic advisors” dedicados exclusivamente a acompanhá-los em decisões críticas. Consultorias como McKinsey, BCG e EY também ampliaram suas ofertas de serviços de conciergeria para C-suites focados em inteligência artificial.

No Brasil, a presença do “AI whisperer” é mais sutil. Em alguns casos, aparece sob o título de consultor de inovação. Em outros, é incorporado à equipe técnica do conselho como interlocutor com capacidade de tradução executiva. Mas a função é sempre a mesma: proteger a liderança do desconforto técnico enquanto mantém viva a narrativa de modernidade. Esse papel pode ser legítimo, desde que operado com intencionalidade formativa. O risco se instala quando o “AI whisperer” deixa de capacitar e passa a decidir. Quando, em vez de promover autonomia, reforça dependência. Nesse ponto, não estamos mais diante de um apoio especializado, mas da delegação informal de um território que deveria ser estratégico e inegociável.

Terceirização da compreensão: problema ou estratégia?

Delegar conhecimento técnico nunca foi um problema em si. Nenhum executivo precisa entender os detalhes de codificação de um modelo de linguagem para liderar com responsabilidade. A questão central está no tipo de relação que se estabelece entre liderança e conhecimento. Há uma diferença fundamental entre confiar em especialistas e abdicar da própria capacidade de compreender o essencial.

Nos últimos anos, muitas organizações têm confundido essas duas coisas. A dependência crescente de figuras como o “AI whisperer”, quando não acompanhada de um esforço real de aprendizagem executiva, tem transformado o apoio técnico em blindagem intelectual. A liderança continua assinando decisões, mas cada vez mais com base em resumos filtrados, sem contato direto com a complexidade real do que está em jogo.

Essa terceirização da compreensão não é apenas um risco técnico. É um sinal de regressão na função estratégica da liderança. O pensamento crítico, a capacidade de formular boas perguntas, de cruzar implicações tecnológicas com dilemas éticos e de antever impactos sociais e regulatórios não podem ser delegados. Quando isso acontece, o líder deixa de ser autor das decisões e passa a ser apenas seu endossador. Em um cenário onde a IA redefine modelos de negócio, estruturas de trabalho, critérios de investimento e expectativas da sociedade, a liderança que terceiriza o entendimento corre o risco de se tornar refém das narrativas que não controla. E de descobrir, tarde demais, que não basta parecer preparado. É preciso ser.

O risco de um novo AIwashing

A inteligência artificial rapidamente assumiu o papel de novo totem corporativo. Virou parte do vocabulário obrigatório dos conselhos, dos relatórios anuais e das apresentações institucionais. Mas à medida que o discurso se acelera, cresce o risco de que a prática fique para trás. E o que sobra, mais uma vez, é a velha maquiagem estratégica: o AIwashing.

O termo descreve o uso simbólico da inteligência artificial para reforçar uma imagem de modernidade e sofisticação, mesmo quando a organização não possui estratégia, competência ou governança adequadas para lidar com os impactos reais da tecnologia. No AIwashing, tudo é comunicação. A IA aparece como promessa de produtividade, ética, inclusão e vantagem competitiva. Mas quase nunca como prática estruturada, conectada aos dilemas concretos da operação.

O “AI whisperer” pode, nesse contexto, se tornar um agente ambíguo. Quando atua como facilitador do aprendizado organizacional, ajuda a alinhar discurso e realidade. Mas quando sua função se limita a roteirizar narrativas e preparar falas para fóruns executivos, contribui diretamente para esse descolamento. Ele vira parte da performance e não da transformação.

Essa distância entre fala e ação tem implicações sérias. Primeiro, corrói a credibilidade institucional, especialmente em setores regulados ou sensíveis à opinião pública. Segundo, alimenta uma cultura de decisão superficial, onde tudo se resolve com storytelling e quase nada com consistência. Por fim, compromete a preparação da empresa para lidar com os riscos que a IA efetivamente traz, desde vieses algorítmicos até impactos ambientais, passando por segurança cibernética e manipulação de dados.

A superficialidade tecnológica pode ser mais perigosa do que a ignorância declarada. Porque simula preparo e adia o enfrentamento real. E quando esse enfrentamento finalmente se impõe, muitas lideranças descobrem que construíram reputações sobre bases retóricas. E que o custo do improviso pode ser mais alto do que o da preparação.

Governança e responsabilidade: quem responde pela IA?

A velocidade com que a inteligência artificial foi incorporada ao discurso empresarial não foi acompanhada pela mesma agilidade na definição de estruturas de responsabilidade. Em muitas organizações, decisões que envolvem algoritmos, automação, coleta de dados sensíveis ou interação com usuários já estão sendo tomadas com base em soluções de IA. Mas poucos sabem dizer, com clareza, quem é responsável por cada escolha, cada risco, cada consequência.

O problema começa na ausência de governança específica. Em boa parte dos conselhos, a IA ainda é tratada como subtema da agenda de inovação ou de tecnologia da informação, quando na verdade deveria estar no centro das discussões sobre ética, risco, reputação e valor de longo prazo. A maioria dos executivos não consegue listar os critérios que orientam o uso de IA na organização, tampouco identificar os pontos de fricção entre tecnologia e princípios corporativos.

Nesse vácuo, o “AI whisperer” pode se tornar o elo mais forte, ou o mais frágil. Seu papel informal o posiciona como conselheiro técnico, mas sem autoridade formal. Ele influencia sem responder. E isso pode gerar uma perigosa zona cinzenta, onde as decisões são validadas por quem entende e legitimadas por quem deveria decidir, mas não compreende o suficiente para questionar.

Os relatórios mais recentes da PwC e da Deloitte apontam que menos de um terço das grandes empresas no mundo possui um comitê de IA com poder deliberativo ou supervisão direta do conselho. Isso significa que algoritmos já estão impactando vidas, operações e finanças sem que exista uma instância clara de accountability.

Governança, nesse contexto, precisa ser mais do que estrutura. Precisa ser compromisso com a responsabilidade real sobre as escolhas feitas. E isso inclui compreender a lógica da IA, os limites dos modelos, os vieses embutidos, os impactos ambientais dos treinamentos e a pressão social que a automatização pode provocar.

Quando a liderança se exime desse debate, transfere o peso da responsabilidade para as áreas técnicas ou para consultores externos. Mas o mercado, os órgãos reguladores e a sociedade civil não cobram os especialistas. Eles cobram os líderes. E com razão.

Conclusão – A hora da liderança reaprender a aprender

A inteligência artificial não é uma ferramenta a mais. É um vetor de transformação estrutural que está redesenhando a forma como as organizações operam, tomam decisões, gerenciam riscos e constroem valor. Frente a isso, a liderança não pode se contentar em ser espectadora informada. Precisa reaprender a ser protagonista.

Isso exige uma postura ativa de aprendizado contínuo, disposição para lidar com complexidade, coragem para navegar zonas cinzentas e, acima de tudo, a humildade intelectual de reconhecer o que ainda não se sabe. A era dos generalistas bem-relacionados e dos gestores de agendas está chegando ao fim. A nova liderança será feita de repertório, criticidade e capacidade de conectar o técnico ao ético, o estratégico ao social, o regulatório ao humano.

Ter um “AI whisperer” ao lado pode ser um diferencial, se sua função for provocar reflexão, ampliar o horizonte e desafiar certezas. Mas ele não pode ser o responsável por decisões que pertencem à liderança. Não pode substituir o pensamento, a escuta, o discernimento. E muito menos, a responsabilidade.

Porque no mundo da inteligência artificial, delegar compreensão é renunciar à soberania sobre o próprio futuro. E nenhuma organização que pretende ser relevante pode se dar a esse luxo.

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