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Alfabetizar-se em futuros é preciso

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Leia a entrevista com a futurista Lala Deheinzelin na íntegra:

HSM Management: __Você já afirmou que as pessoas precisam ser alfabetizadas em futuro, assim como em tecnologia e outras coisas. É isso mesmo: temos de ser todos futuristas? O que uma pessoa precisa fazer ser futurista?__

Hoje em dia, nem todo mundo precisa ser futurista, mas todo mundo precisa ser alfabetizado em futuros. A comparação seria, por exemplo, com a nossa saúde: todo mundo precisa prestar atenção, fazer escolhas mais saudáveis, mas isso não quer dizer que todo mundo precisa ser médico.

Então, o fato de você se interessar por futuros, estudar futuros, nessa sintonia, não quer dizer que você seja futurista. Eu acho até muito divertido quando eu vejo muita gente dizendo que é futurista quando é simplesmente alguém que está alfabetizado em futuros.

Como a gente se alfabetiza em futuros e por quê? A primeira coisa é perceber que, antes, o futuro demorava milênios, séculos ou, pelo menos, décadas para chegar. Agora, ele leva anos. Então, a gente precisa compreender o que está acontecendo para poder fazer melhores escolhas na vida pessoal, profissional, empresarial etc.

Se você quer ser futurista, maravilha, você vai precisar estudar isso em profundidade ou praticar muito, fazer muita pesquisa, realmente se dedicar. Mas, se você quer se alfabetizar em futuros, algumas coisas são possíveis de fazer de forma muito fácil. E não apenas é possível como extremamente necessário.

Por exemplo, na sua vida pessoal, ser alfabetizado em futuros depende de onde e como você se informa. Quais são suas fontes de informação? A gente normalmente dedica muito tempo a ver, por exemplo, problemas. Esses problemas são, normalmente, apresentados pela grande mídia, que fala pouquíssimo de soluções, e muitíssimo, digamos até demasiado, de problemas. É importantíssimo a gente se informar sobre tudo que já existe de soluções.

Existem muitas, muitas, muitas soluções já disponíveis, soluções em todos os âmbitos. Desde a área ambiental, de energias renováveis, de produção sustentável, circular etc. Existem soluções de novas formas de gestão, de novas formas de política, existem soluções de nova educação, existem soluções de novos desenhos econômicos e financeiros, existem muitas soluções em todas as áreas da vida. Na verdade, eu diria que as soluções que a gente precisa já estão todas criadas, a gente apenas não as conhece, e, portanto, não tem nem como adotá-las nem como combiná-las para criar outra realidade.

A segunda coisa importante para a alfabetização de futuros é conhecer história. Não ter como ser futurista sem ter um pouco de perspectiva histórica. Tanto é que talvez o maior historiador vivo do momento, Yuval Harari, acabou se tornando futurista também, porque você, ao observar o passado, começa a perceber tendências, padrões… E para que essas tendências não se repitam, como é que a gente pode reimaginar o futuro?

O que é muito importante e fundamental quando a gente estuda história é perceber que 100% das vezes as grandes descobertas, as grandes mudanças de paradigma pareciam totalmente loucura quando surgiram, iam contra o senso comum. Muitas vezes, alguém pode dizer alguma coisa diferente, e respondem: “Imagina, isso que você está falando é diferente do que todo mundo diz”, eu, inclusive, escuto muito isso, e é divertido porque agora que eu tenho 60 anos e 40 de prática, eu já sei que como acontece.

Muitas vezes, o que você pode falar em algum momento como futurista, como alguém que tem uma visão de futuro, soa estranho naquele momento, e dali cinco, dez anos, já se torna corrente. Então, lembre-se disso: toda descoberta, no momento, parecia absurda. Seria muito legal se a gente aprendesse a andar pelo mundo, a olhar as coisas dizendo “Uau, das coisas que hoje em dia parecem tão improváveis ou impossíveis ou irreais, quais são as novas verdades do futuro?”, porque, em algum momento, era alguma loucura.

A eletricidade era considerada bruxaria, era uma loucura imaginar que a Terra não era o centro do sistema solar, ou que a Terra não era plana, coisas assim. Então, é muito importante a gente estar aberto para isso, e aberto a diferenciar, também, o senso comum do bom senso, que são coisas muito diferentes.

Normalmente, inclusive, o senso comum não tem nenhum bom senso ou tende a não ter bom senso. Não é que aquilo que a maioria acha que é o certo ou que é o melhor é fato, porque as escolhas dependem muito de conhecimento técnico, e nem todo mundo tem conhecimento técnico sobre todas as coisas. Então, é muito importante a gente ver, no momento de fazer escolhas, quem é que conhece profundamente aquele tema.

Então, eu recomendaria: “Ouça mais podcasts e menos noticiário”, por exemplo, é uma forma de se alfabetizar em futuro. Todas as empresas precisariam contratar produtos e serviços de futuristas, aí a gente está falando de futurista mesmo, porque não tem como. A empresa conhece o seu negócio, ela sabe fazer bem aquilo que ela faz, mas ela não está dedicada a entender e enxergar futuros. A gente, como futurista, tem um treinamento realmente, não é modo de dizer, a gente realmente vê o que o outro não vê.

Não é uma coisa miraculosa, é só um treinamento. Isso acontece com expertises. Um bioquímico vê coisas que eu não vejo, ele olha todas as reações bioquímicas e para ele elas são claríssimas, e para mim não.

Então, as empresas, os governos, as instituições precisariam muito contratar esses produtos e serviços de futuristas para poder tomar melhores decisões. Na França, por exemplo, há uma lei que diz que todo município e todo estado têm que ter um plano de futuro, tem que ter seu desenho de futuro, e está tramitando uma lei de que as empresas também sejam obrigadas a fazer o seu plano de futuro, que é muito mais do que botar na parede uma missão, é realmente saber para onde se está indo.

Eu lembro que uma das coisas que me fez virar futurista foi um ditado chinês que dizia: “Se não mudarmos de direção, acabaremos onde estamos indo”. Então, o “para onde estamos indo” é um pouco senso comum. As novas direções são o treinamento de visão sistêmica, de visão do todo, de visão abrangente que os futuristas podem ter.

HSM Management: __O exercício do futurismo serve para deixar os profissionais melhores? Empresários como Jorge Gerdau falam que elaborar estratégia tem vantagem de capacitar as pessoas. Isso vale para futurismo?__

Trabalhar com futuro ou futurismo ou futuring ajuda a melhorar os profissionais porque, antes de tudo, um bom profissional é aquele que tem mais clareza na visão do todo, mais capacidade de fazer boas escolhas. Isso é a principal coisa, escolher. É muito interessante isso, escolher é a chave de tudo, porque qualquer coisa que a gente faça na vida, no fundo, é uma escolha.

A gente escolhe onde investir, a gente escolhe onde botar nossa energia, a gente escolhe, aliás, onde investir não apenas dinheiro, mas tudo, né? Tempo, tesão, recursos, afetos, tudo, a gente escolhe onde vai investir, e o desafio atual é justamente fazer melhores escolhas.

Como eu me baseio? Em que eu me baseio normalmente? O que escolho como profissional? Primeiro, repare o seguinte: a gente tende a operar de forma reativa, um clássico. Normalmente investimos muito mais tempo no reativo do que no criativo. Em toda atividade que coordeno, a gente faz um levantamento da porcentagem do tempo pessoal e da empresa é investido no reativo, e o resultado é de no mínimo 75%.

Só que a reação é sempra àquilo que eu não quero. O importante é passar do reativo para o criativo, para ver o que é que queremos, e qual é a melhor escolha não só individual, mas a melhor escolha para o bem comum. Então, quando você tem elementos de futurismo, isso te permite compreender, por exemplo, a imensa diferença que existe no momento de fazer uma escolha entre aquilo que eu prefiro e aquilo que eu preciso.

Pense, por exemplo, em uma coisa da vida pessoal pequena, sei lá, o que eu escolho para comer. Aquilo que eu prefiro e aquilo que eu preciso são normalmente muito diferentes. Eu prefiro chocolate, e eu preciso de folha verde. Então, eu preciso de elementos para me auxiliarem nessa escolha.

Isso se torna ainda mais agudo quando a gente passa de escolhas individuais a escolhas coletivas. O que é fascinante dessa pandemia é que ela nos deu uma lição de interdependência, de que aquilo que parecia um conceito mais do que uma prática, que era a noção de interdependência, de que não dá para pensar só no individual, tem que pensar no coletivo, tem que ser corresponsável e tal, isso parecia uma coisa longínqua, só que a pandemia mostrou que isso é uma coisa agora, já não é mais possível, estamos todos interconectados, somos interdependentes, a escolha de um afeta o todo.

Então, é superimportante a gente pensar também no bem comum, no coletivo, e ter visão de futuro serve para isso. Os futuristas, muitos de nós, estamos dedicados a isso, a pensar qual é a escolha mais adequada não ao interesse de um indivíduo, não a um interesse de uma organização, mas ao interesse do bem comum, incluindo, aí, o que é bom para o indivíduo e para a organização. Então, você pensar no bem comum não exclui você como indivíduo, não exclui você como organização, apenas muda o foco, o teu foco é incluir um terceiro, que é o coletivo e o bem comum, sem anular os outros dois.

Também a questão de pensar futuros, a questão sistêmica, nós somos treinados a enxergar o todo, que é um treinamento que normalmente a gente não tem, e de pensar sistemicamente, e ver como atuar sistemicamente, que são coisas imprescindíveis para um profissional hoje.

HSM Management: __Como praticar o futurismo? A gente queria falar do método que você criou e aplica às organizações.__

Podemos detalhar três coisas:
a. Para que servem futuros prováveis x futuros desejáveis e o que a empresa faz com eles. Os primeiros são como ver um ovo no presente e um ovo melhorado no futuro. E dos futuros desejáveis, que são como ver um ovo no presente e criar um pássaro no futuro.

b. A diferença entre tendências e design de futuro e como usar as duas coisas.

c. Fluxonomia 4D, que é uma sequência de etapas para construir o futuro, partindo de uma visão sistêmica.

Como é que dá para colocar em prática a alfabetização de futuros, o pensamento futurista? Primeira coisa é identificar esses três tipos de futuro: o primeiro é o futuro provável, que é aquele ao qual estamos reagindo, e que normalmente está baseado no passado, naquilo que já aconteceu. Esse futuro provável é como se fosse um cone. Você imagina o que está acontecendo no presente amplificado no tempo, é uma espécie de amplificação do vigente. Ele é interessante para a tomada de decisão em curto prazo porque ele te dá, na verdade, uma leitura de presente, não uma leitura de futuro.

Então, imagine o seguinte: se a gente pensa em ovo e pássaro, que são dois estados muito diferentes, ver os futuros prováveis ajuda a cuidar do ovo, como não quebrar, como chocar, etc. Você está cuidando das coisas como elas estão no presente. Não é uma visão disruptiva, algo que serve para outro estado. Disruptivo, por exemplo, é quando a casca se rompe e vem o pássaro.

O pássaro é uma coisa que o ovo não consegue supor. Para isso, você precisa ser capaz de imaginar o inimaginável. O interessante é que a história mostra, e é legal ver imagens do passado do futuro, que mostram que muitas das coisas que hoje existem foram como que semeadas no imaginário, porque o desejo dos indivíduos, revelados por aquilo que eles desejam, se materializam no futuro… Essas sementes de futuro acabam inspirando inovação, e elas acabam permitindo que as pessoas percebam tanto o que desejam quanto o que elas não desejam.

Então, há, por exemplo, um monte de imagens do passado, de alimentos que são só pílulas ou pastas etc. Não é um futuro muito desejável. Isso foi criado? Sim, mas não é a tendência, não foi uma tendência que foi a escolhida. O que aconteceu foi que a gente foi na direção do orgânico, da gastronomia etc.

Então, é superimportante a gente focar em futuros desejáveis. Quando eu comecei a trabalhar com isso em 2008, soava muito estranho, porque todo mundo fazia tendências, cenários e tal, e a gente não faz. Meu trabalho não é com cenários de futuro, o que eu trabalho é em ver qual é o desejo, o que é tanto desejo do indivíduo, porque isso ajuda a ver o que ele tende a escolher, quanto o que é o desejável no sentido daquilo que é bom para o coletivo.

Aí, quando você combina o futuro provável com o desejável, você chega naquilo que é possível, e o possível é muito maior do que o provável, é muito interessante ver isso, existe muita coisa que é improvável, porém possível. Eu sempre me divirto fazendo esses cálculos. Então, eu imagino o seguinte: a gente sabe o papel tremendo que a educação tem hoje em dia. Então, vamos imaginar que, por exemplo, num domingo, você veja 2 horas de algum tipo de telinha, e você use 2 horas para ensinar ou aprender alguma coisa. Então, 2 horas de passatempo e 2 horas de usar tempo, vamos aprender ou ensinar.

Se 1/3 da população brasileira, a cada três domingos, dedicasse 2 horas para ensinar alguma coisa, eu fiz as contas do que isso significaria, e isso significaria 4,5 milhões e meio de anos letivos, o tempo de 2 horas dessa conta que eu fiz agora. Então, o déficit educacional do Brasil é 3,5 milhões de anos letivos, e simplesmente 30% da população, a cada três domingos, 2 horas, já dava conta disso. O mesmo vale não só para ensinar, mas para aprender. Quanta coisa você poderia aprender convergindo seu tempo assim?

O que se revela, por exemplo, quando a gente trabalha com futuros desejáveis? Dá para compreender o que não é o provável, mas é aquilo que é capaz de garantir o futuro para o coletivo. Vou dar um exemplo muito concreto. O ovo, ou seja, o vigente, é que uma empresa sobrevive competindo. Isso não é o pássaro, porque num futuro muito próximo, na verdade, não é mais no futuro, é agora, a empresa que vai ter competitividade, o que é muito diferente de competição. Competitividade é a capacidade dela de crescer e se manter no jogo, a competitividade dela vai depender da capacidade de colaborar.

Então, é uma coisa que não está no campo do provável, mas é uma chave. Agora, a questão interessante é que para você pensar futuros desejáveis, você precisa de repertório, essa é uma das razões do nosso trabalho, porque se você não tem repertório, você acaba chegando às mesmas coisas. Você usa as mesmas pecinhas, e, portanto, acaba chegando um pouco no mesmo desenho. Para poder chegar em novos desenhos, você precisa de novas pecinhas.

Pense numa construção com Lego: se você não tem novas pecinhas de lego, você limita um pouco aquilo que é capaz de construir. E também uma coisa muito interessante é que quando a gente observa a História, o que se revela é que, como o futuro é incerto e é complexo, é resultado de interações que não dá para controlar, a tendência é que aquilo que vai surgir como solução seja improvável.

Então, a única coisa que dá para ter certeza em relação ao futuro é que aquilo que é provável que ele seja, ele não será. Tem um livro interessantíssimo do matemático Nassim Taleb, chamado Cisne Negro, que mostra isso: como grandes mudanças históricas foram, na verdade, muito pouco percebidas, porque eram improváveis. Improváveis por quê? Porque a gente normalmente enxerga as coisas pelas lentes que já tem, daquilo que a gente já conhece, daquilo que está no nosso passado, daquilo que a gente acha provável.

Em síntese, para praticar futuro, a gente precisa conhecer esses três tipos de futuro, o provável, o desejável e o possível, e ter elementos para escolher, e esses elementos para escolha dependem muito mais da gente estar na sintonia do desejável do que do provável.

HSM Management: __E como é possível implementar isso? __

Estou ligada a estudos de futuro desde 1995, e futurista sou desde 1999, quando entrei numa compilação da World Future Society de quem era futurista no mundo nessa época. Fui uma das pioneiras no Brasil nesse tema.

Aí, o que venho observando neste tempo? Primeiro, que é superimportante saber qual futuro eu desejo para mim, para minha organização e para a sociedade como um todo. Mas não basta ter uma visão desejável, eu preciso ser capaz de implementar isso, e, para implementar, como faz? Primeiro, como é muito complexo você pensar em futuro, é importante ter ferramentas que sejam simples. Quanto mais complexo, mais simples precisa ser a maneira de olhar isso.

Qual a maneira simples de olhar? Quando a gente tem uma bússola, ela tem quatro direções. Quando você pensa, por exemplo, como os antigos compreendiam o mundo, eles compreendiam em quatro elementos, terra, fogo, ar e água, e a gente percebe que as menores partes da sociedade são dimensões. A dimensão cultural, que é tudo que tem a ver com conhecimento, habilidade e criatividade, é como se fosse a semente. A dimensão ambiental é a estrutura.

Se você tem uma ideia, por exemplo, de dimensão cultural, você vai, na dimensão ambiental, precisar da estrutura para botar de pé essa ideia. A ambiental, então, é toda a infraestrutura manufaturada, feita pelo homem, e a estrutura natural, na nossa metáfora de cultivo, seria o terreno. Daí, eu tenho uma terceira dimensão, quando eu combino essas duas coisas, eu consigo ter uma terceira, que é o social, é a organização e regulação do coletivo, todas as instituições, o arcabouço jurídico tributário, etc., é o cultivo, é o fazer junto.

Finalmente, como eu tenho semente do cultural, terreno, infraestrutura do ambiental, e cultivo, que é o fazer junto do social, eu chego no fruto, na colheita, que é a dimensão financeira, a dimensão do resultado e do impacto, onde estão as métricas para conseguir enxergar e tornar acessíveis e intercambiáveis os recursos, o tempo etc.

O que a gente enxerga quando trabalha com futuro em relação a essas quatro dimensões? Dá para perceber, por exemplo, em uma organização, que você vai dando várias “voltas na espiral”, nesse processo de começar no cultural, depois partir para o ambiental, o social, até chegar ao financeiro. Vou usar o exemplo de uma empresa que eu gosto muito e com quem tenho tido privilégio de trabalhar junto nos últimos 20 e tantos anos, que é a Natura.

Vamos imaginar o seguinte: A primeira volta por essas dimensões é a volta que a gente chama de operacional, é uma volta através da qual você gera receita, é o que você faz.

Então, vamos imaginar, por exemplo, no exemplo da Natura, eu, na dimensão cultural, você tem uma ideia, “ah, eu quero…”, você percebe uma necessidade das pessoas e tem uma ideia de um desenvolvimento de um produto, e faz a pesquisa, usa o talento para fazer isso. Na dimensão ambiental, você tem os ativos, os ingredientes, a fábrica, e você produz. Na dimensão social, você tem o ecossistema que participa de tudo isso, a força de vendas, a comunicação, e na dimensão financeira, você tem a venda propriamente dita e o relato, a contabilização etc.

Isso é tua operação, você tem a operação tradicional como a gente conhece, passando pelas quatro dimensões. Aí, beleza, você passou por elas e gerou receita. Só que tem uma coisa: Essa primeira volta é linear, ela é limitada pela capacidade de pesquisa, de produzir, da força de vendas, capacidade de comunicação, de recursos disponíveis para investimento etc.

Mas há uma segunda volta, que é a volta do como você faz isso, que é capaz de ser exponencial. O que quer dizer isso? Se, na dimensão cultural, por exemplo, a tua pesquisa e teu propósito estão baseados em brasilidade, visão estratégica, sustentabilidade, digamos, você vai, então, fazer o produto com ingredientes da Amazônia, e isso tem outro valor. Se, na dimensão ambiental, a forma como você trabalha infraestrutura, por exemplo, a forma como são extraídos os ativos da diversidade amazônica, elas são justas e sustentáveis, você está gerando valor. Se, na dimensão social, a forma como você comunica e estrutura tua força de vendas, se relaciona com o teu ecossistema de fornecedores, de, enfim, todo o ecossistema que está envolvido na operação, tem transparência, tem relação ganha-ganha, tem sistemas de governança coerentes, você gera valor. Se, na dimensão financeira, há repartição de benefícios, como acontece com a Natura, com as comunidades extrativistas com as quais ela trabalha, tudo isso faz com que você gere valor.

Você gera fidelidade de parceiros, de fornecedores, de cliente, você gera reputação, você gera credibilidade, e você gera acesso a crédito. Por exemplo, quando a Natura, antes de abrir capital, faz todo o processo de triple bottomline, de mostrar por que ela é sustentável, quando ela abre capital, ela tem crédito, ela tem valor, e ela capta 700 e tantos bilhões.

Eu imagino, por exemplo, que quando ela adquire a Avon, não creio que isso seja com o caixa, com a receita que é gerada pela operação, que é aquela que é linear. Eu acho que é pelo crédito que ela tem acesso por sua capacidade de gerar valor, de valor não só para si, mas para todo mundo que está envolvido e para a sociedade como um todo.

Então, isso é uma coisa que a fluxonomia permite, que você não apenas saia da escravidão e da escassez de ter que só gerar receita, receita, receita, e consiga desenhar processos que sejam capazes de gerar valor, e de ter exponencialidade e, novamente, mais longevidade.

HSM Management: __Você coordena Movimento Crie futuros. Como é esse movimento?__

Antes de falar do movimento Crie Futuros, é importante ressaltar que toda essa síntese do trabalho de percepção de presente, visão de futuro, novas economias, quatro dimensões, tudo isso está sintetizado no livro que, em 2020, foi finalista do Prêmio Jabuti, que é o Novas economias, viabilizando futuros desejáveis. Ele é uma espécie de guia do que fazer, e dá sequência ao livro anterior, que chama Desejável mundo novo, que é um livro que é uma ficção, uma ficção de mundos possíveis e desejáveis, construída a partir do repertório desse movimento Crie Futuros.

O movimento Crie Futuros se origina num prêmio da cooperação espanhola, um super prêmio que permitiu que ele fosse levado para vários países, e o objetivo é fomentar e dar instrumentos para que a gente perceba o que são futuros… Não distópicos, a gente tem que estar supertreinado a ver catástrofe e ser pessimista, mas quando pergunta: “Tá bom, e se tudo fosse possível, o que você faria?”. Por exemplo, a gente critica muito os governos, mas se você perguntar para qualquer pessoa “Se você fosse o presidente, o que você faria?”, a maior parte das pessoas não sabe, mesmo que tivesse poder e recursos. Essa é uma pergunta muito importante.

Então, a gente tem métodos para isso, para estimular essas visões positivas. Recentemente, ouvindo um podcast maravilhoso do Yuval Harari, chamado 2 million years in 2 hours, ele diz: “Olha, eu usando minha capacidade consigo imaginar muitos futuros distópicos, mas a minha imaginação não consegue imaginar futuros desejáveis que não sejam uma distopia”.

A gente trabalha com isso, a gente usa os elementos do que serve ao bem comum, do que é mais sustentável, do que está ligado a essas novas dinâmicas das novas economias – criativa, compartilhada, colaborativa, multimoedas – para fornecer elementos para que a gente imagine.

Aí, o que é interessante também de trabalhar com futuros é que eles são sempre a melhor forma de iniciar um processo, porque quando você pergunta qual é o desejo de futuro de todo mundo, a gente, mesmo pessoas muito diferentes, acaba percebendo que elas querem a mesma coisa, para si, para os filhos, e quando você tem um futuro comum, você tem um chão para construir todo o resto.

O que é importante ressaltar é que nessa visão de futuro não diz respeito só a tecnologia. Eu, por exemplo, sou um tipo de futurista meio raro, porque sou uma futurista sociocultural. Meu foco está em trabalhar o humano, o desenho organizacional, o repensar novos processos mais do que novos produtos. Muita gente pensa produto de futuro, mas pouca gente pensa processo de futuro, e isso é absolutamente fundamental neste momento.

Então, use o futurismo não só para reinventar produtos, mas para, sobretudo, reinventar processos.

HSM Management: __Você acha que a atual crise de autoestima brasileira atrapalha a construção do futuro em nível individual e coletivo? O que podemos fazer a respeito?__

O grande desafio de trabalhar com futuro é que, para poder pensar soluções, você precisa também encarar os problemas, e encarar problemas acaba deixando a gente paralisado ou em pânico, porque é muita coisa, especialmente com baixa autoestima, se achando sem saída, sem habilidades etc.

Você vê o problema e você se sente impotente, então você escapa. O oposto da construção de futuro é o escapismo. Lidar com o improvável e com o ainda desconhecido causa insegurança, e a gente tende a escapar, a não querer ver, a não querer pensar, a se anestesiar.

Então, esse é um dos enormes desafios que a gente tem agora, o escapismo e a anestesia de todas as formas. A gente precisa de um pouco de escapismo, sim, a gente precisa ver um pouquinho de série, a gente precisa tomar um pouquinho de cerveja, um pouquinho de remédio, mas quanta série? Quanta cerveja? Quanto remédio? Enfim, como a gente pode lidar com isso?

A primeira coisa é escolher o que a gente faz com o tempo. O que a gente deseja colocar dentro de si? Então, eu volto a dizer: se você já tem consciência dos problemas que a gente vive, dedique seu tempo a conhecer as soluções que já existem. Isso é o que vai tirar você da paralisia. Seu tempo é o único recurso que é escasso e não renovável. Assim, use esse recurso preciosíssimo para um pouco de escapismo com moderação, porque se você escapar demais, você vai estar perdendo a possibilidade de se transformar, transformar o mundo, e vai entrar num ciclo vicioso de só se sentir cada vez mais assustado, mais paralisado, mais impotente.

Então, busque conhecer as soluções, são muitas. E muito boas. Quando a gente conhece essas coisas, aí dá potência, e você sabendo que existe ferramenta, você sabendo que tem solução, a coisa fica completamente diferente.

Por exemplo, eu tenho uma alegria imensa de ver que as pessoas que estudaram fluxonomia têm muitos depoimentos. A maior parte delas não sofreu tanto na pandemia com depressão, com insegurança, com pânico e tal, porque já estava preparada para isso, porque tinham enxergavam além, foram preparada para compreender o presente, para enxergar oportunidades de futuro, para perceber que a transição é real, mas que a gente vai chegar num lugar melhor, para enxergar recursos além do monetário, e para trabalhar junto.

Então, é muito importante a gente não escapar do futuro, mas a gente ter as ferramentas para aproveitá-lo.

HSM Management: __Como você vê a economia criativa nesse futuro, especialmente no Brasil (diante da sua definição de EC, de que todo valor está no intangível), e para o qual sempre temos recursos, uma vez que temos criatividade. A tecnologia é parte da economia criativa, mas ela também pode ser rival da economia criativa, numa hipótese, por exemplo, de um gestor ter de escolher entre investir na criatividade e na máquina? Até porque, como você disse uma vez, imaginar máquinas é mais simples que imaginar relações e a sociedade.__

Em relação à economia criativa, a gente tem uma visão muito estreita ainda em relação a ela e o potencial que ela traz. Então, a gente se surpreende com a China, fala: “Nossa, puxa, como que a China conseguiu crescer tanto? Como ela conseguiu se transformar tanto? Como ela conseguiu incluir financeiramente, em parcelas imensas da população e tal?”. Uma das razões é a priorização da economia criativa. Eu sei disso porque tive o privilégio de trabalhar entre 2005 e 2010 como assessora da ONU.

A economia criativa é uma das principais prioridades estratégicas do país, e, para isso, a China desenvolveu um programa de inovação a partir de 1988, que é o momento em que começa a curva exponencial de crescimento do PIB da China, e o importante é saber que essa inovação não era uma inovação hard, não era uma inovação de pensar novas máquinas, novas coisas, era uma inovação também soft, tanto que eles usam muito esse termo, de tecnologia hard e tecnologia soft. Então, o que é uma inovação soft? É uma inovação de formas de gestão, de processos educacionais, de estruturas organizacionais, de arcabouço político, jurídico e tributário, inovação em todos os sentidos.

O que a gente vê, primeiro, é pouco uso da economia criativa, lembrando que estamos nesse enrosco de desafio climático, ponto de exaustão e da extração de recursos naturais do planeta a um risco sistêmico imenso porque a economia tradicional é baseada em extração de recursos naturais que são limitados, é um crescimento linear, não tem como dar conta da exponencialidade desses tempos, e é escasso, porque um recurso tangível, consumido com o uso. Já o intangível, conhecimento, cultura, criatividade, dados, não se consome com uso, mas se multiplica com uso, e é exponencial, portanto, é a grande estratégia.

Uma coisa interessante é a gente observar que quando fala em economia criativa, nossa visão ainda é muito estreita. A gente tende a pensar que são os artistas, que é artesanato. É, mas não apenas. Então, por exemplo, as maiores empresas do mundo nesse momento são empresas de economia criativa. Elas trabalham com recursos intangíveis.

O Google e o Facebook trabalham com a economia da atenção, intangível, com extração de dados, intangível, então, é economia criativa. Aí, a gente vai precisar redirecionar as nossas escolhas. Um conselho que eu daria para gestores hoje é: pense duas vezes se você vai investir em máquina ou se você vai investir em pessoas, em processos, em inteligência. Eu investiria no soft e não no hard.

Eu me lembro sempre de um livro quando eu era criança, do Pato Donald e do Mickey, que o Pato Donald não queria ir pra escola, e o Mickey dizia: “Você vai ficar burro”, e ele dizia: “Não, eu compro uma máquina de escrever e tudo bem”, e a gente está se comportando meio assim. A gente está achando que as máquinas vão dar conta da nossa parada, e não, não darão.

No campo da economia criativa, se a gente resolve investir em processos, porque são processos que o mundo vai precisar nessa transição, a tecnologia é fundamental, não tenho a menor dúvida, ela é uma condição sine qua non, mas ela não é suficiente. Então, pensar em transição digital não é você passar a ter equipamentos, é você saber o que fazer com esses equipamentos.

Então, uma oportunidade imensa que nós temos como país é a combinação de tecnologias sociais, que somos muito bons, temos muitas soluções, o Brasil é um celeiro de soluções de todo tipo, um celeiro de inovação, um celeiro de soluções de todo tipo. O que nós não temos é apoio institucional, não há estruturas de investimento, de aceleração e tal, suficientes para transformar essas ideias, essas soluções em coisas e implementar. A minha experiência mostra que são dois mundos diferentes, o mundo dos que criam soluções e o mundo dos que sabem implementá-las.

Então, tem aí uma oportunidade imensa de transformar ideias criativas e colocar isso em escala. Na minha trajetória, o que eu observei foi que não bastava pensar em economia criativa. Ela só teria o alcance necessário quando combinada com as novas economias, com a compartilhada, ganhando valor e gerando economias, ampliando possibilidades através do compartilhamento; na economia colaborativa é a mesma coisa, redução de custo, geração de valor, melhores resultados através da colaboração, na forma de gestão distribuída, onde cada um faz um pedaço e, com isso, você consegue fazer coisas enormes; e de uma economia multivalores, na qual a gente não trabalha só com recurso monetário, mas com recursos também culturais, ambientais e sociais, e em relação a resultado – o resultado não pode ser só monetário, ele também tem que ser cultural, ambiental e social.

HSM Management: __Você fala bastante em economia compartilhada, economia complementar (com moedas alternativas, inclusive), colaboração. Faz a apologia, de certa maneira, da gambiarra do bem, da “sevirologia” (de se virar), e da colaboração como cultura que o Brasil supostamente tem (o exemplo máximo disso é o Carnaval, mas é algo que não se vê em outras áreas talvez). O que esses conceitos têm a ver com o futuro no Brasil? Isso ajuda a reduzir custos?__

Dando sequência à questão de novas economias, colaboração e tecnologia soft, uma das coisas que a gente tem como um enorme recurso no Brasil é essa “sevirologia’, é a capacidade de se adaptar e de fazer já com quem somos e com o que temos. Isso, por exemplo, é um dos pontos f

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