Liderança

Alimentos (im)possíveis

Ele tem gosto, cheiro e textura de hambúrguer, mas não é um hambúrguer. A cara é de maionese, mas nenhum ovo foi usado em sua composição. E antes de rotular como “coisa de vegano”, atenção: a tecnologia de ponta chegou ao setor de alimentos e, tanto grandes empresas, como a M. Dias Branco, quanto startups conhecidas como FoodTechs, prometem revolucionar toda a cadeia de produção do setor.

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dia primeiro de abril de 2019 deve virar um marco na história da alimentação humana. Foi o dia em que uma grande rede de fast-food pregou uma peça nos clientes servindo um hambúrguer que não era de carne, mas sintético. O resultado: a maioria nem percebeu que não estava comendo um produto de origem animal.

O Impossible Whoopper é fruto de uma parceria do Burger King com a Impossible Foods (IF), startup que desde 2014 vem desenvolvendo um hambúrguer baseado em vegetais. Inicialmente, só será oferecido em cerca de 60 lanchonetes da rede nas redondezas de St. Louis, à beira do rio Mississípi. Mas só esse projeto piloto já fez dobrar a capacidade produtiva da IF.

Comida sintética, proteínas alternativas, novos ingredientes e novos processos de produção – que incluem a impressão 3D de alimentos, uma das atrações da edição 2019 do evento South by Southwest (SXSW), de Austin, EUA – devem revolucionar a indústria de alimentos nos próximos anos. O objetivo é claro: tornar a comida industrializada (que é conveniente para os consumidores sem tempo) mais saudável e menos dependente de aditivos químicos, e reduzir a pegada de carbono do setor substituindo a carne por insumos vegetais.

**O HAMBÚRGUER IMPOSSÍVEL**

A Impossible Foods é um bom exemplo dessa tendência. Seu ovo de Colombo foi desenvolver um produto direcionado não para o público vegano ou vegetariano, mas para os tradicionais carnívoros. Aqueles para quem a carne é fraca quando se trata de resistir a um bom hambúrguer, mesmo sabendo que quase 15% do efeito estufa responsável pelo aquecimento global vem da agropecuária.

O Impossible Burger tem cheiro e gosto de carne e até sangra quando é mordido. Isso acontece graças ao heme, uma molécula encontrada no sangue de animais. É o heme que dá à carne (e ao sangue) sua cor e seu gosto meio metálico. Ele existe no sangue, nos músculos e em vegetais como a soja, em proteínas muito parecidas umas com as outras. Em vez de plantar soja, os cientistas da IF encontraram um jeito mais barato e escalável de produzir o heme: modificaram geneticamente uma levedura para que ela o produzisse. O heme é então adicionado a uma mistura de proteínas de trigo, batata e óleo de coco para imitar a textura e o aspecto de um hambúrguer de carne de boi.

A empresa começou a tentar a aprovação de seu produto no FDA em 2014, mas ela só chegou em julho de 2018. O crescimento da IF foi mais do que exponencial; foi estratosférico. De quarenta estabelecimentos que vendiam seu Impossible Burger em 2017, eles passaram para mais de 3 mil ao redor do mundo em 2018. “Hoje você encontra o produto da IF em qualquer esquina de São Francisco”, diz Barbara Minuzzi, fundadora da Babel Ventures, fundo que investe em empresas de biotecnologia. “Tem hambúrguer, macarrão à bolonhesa e, outro dia, experimentei um Impossible Tartar. Mas ainda é tudo restrito a um público de alto poder aquisitivo. O acordo com o Burger King vai dar uma chacoalhada nesse mercado. É uma coisa que traz a proteína alternativa para todas as classes socioeconômicas”.

Minuzzi considera que o primeiro movimento de divulgação das proteínas alternativas foi quando a WeWork, gigante de escritórios de coworking, decidiu cortar a carne de todo seu cardápio. “Eles estão no mundo todo e só servem Impossible ou pratos veganos em seus eventos. Como atuam principalmente com um público jovem e a mensagem de sustentabilidade foi bem clara, a aprovação foi 100%.”

A Babel Ventures tem US$ 30 milhões investidos em empresas de biotecnologia, o que inclui várias empresas de proteína alternativa, como Mission Barns (carne), Finless Foods (peixe), Shiok (frutos do mar) e Wild Earth (comida para pets baseada em fungos). Todas desenvolvem produtos baseados na produção de proteína animal a partir de células-tronco.     A produção de carne in vitro em laboratório, também chamada de agricultura celular, vem sendo pesquisada desde 2000, quando o NSR/Touro Applied BioScience Research Consortium produziu filés de peixe a partir de células de peixinhos dourados. Em 2001, a Nasa conseguiu produzir carne de peru em laboratório a partir de células-tronco. O processo é basicamente o mesmo: células-tronco do animal são cultivadas em um caldo nutriente em um ambiente esterilizado. As células são estimuladas a se agrupar e formar tecido muscular que passa por diversos processos para crescer e ser “colhido” quando atinge o tamanho desejado.

“Estamos muito animados com esse movimento da proteína alternativa. Normalmente, você investe em uma empresa depois de estudar a viabilidade de uma ideia, analisar mercado, tudo muito teórico. Você é impulsionado mais pelo otimismo do que por outra coisa e no fundo sempre tem aquela ponta de desconfiança se vai mesmo dar certo. Nesse mercado, você entra no laboratório, experimenta o produto e vê pratos feitos com ele sendo servidos. É incrível”, explica Minuzzi.

Ainda segundo a fundadora da Babel, há poucas empresas no mundo trabalhando com isso. “Temos umas 50 mapeadas e, dessas, 15 devem lançar produtos em breve.” Das startups apoiadas pela Babel, ela destaca a Shiok, criada por duas cientistas de Singapura com apoio do governo local que acabaram de fazer as primeiras provas de seu camarão sintético. “A evolução foi impressionantemente rápida. Fizemos o primeiro aporte em setembro do ano passado e em março já estávamos provando o produto.”

Outro destaque é a Finless Foods, que está desenvolvendo um atum de laboratório “capaz de enganar muito sushiman”, segundo ela. A Mission Barns deve começar suas atividades com bacon de laboratório e carne de pato. Em seu pipeline produtivo está o desafio de produzir uma das iguarias menos ecológicas do mundo: o foie gras, patê obtido tragicamente por confinamento e hiperalimentação de patos e gansos até sua morte por hipertrofia lipídica.

**NÃO É COMPANHIA**

Fundada em 2015, a chilena NotCo (The Not Company) chamou a atenção do mundo quando levantou US$ 30 milhões em uma rodada de investimentos liderada pela The Craftory, fundo com participação de Jeff Bezos. A NotCo segue um caminho da “agricultura celular” que é diferente. 

Ela tem entre seus fundadores um bioquímico e um cientista da computação que criaram uma mistura de inteligência artificial com o paladar humano para desenvolver seus produtos. Giuseppe, como se chama a inteligência artifical da NotCo, analisa moléculas de produtos como a maionese e o leite e vasculha em um banco de dados gigantesco de vegetais qual planta tem molécula similar. Então, os técnicos da empresa vão refinando a combinação até obter um produto próximo do original.

A NotCo chegou recentemente ao Brasil, em parceria com a rede Pão de Açúcar. Segundo Giuliana Vespa, gerente de operações da NotCo no Brasil, a entrada aqui segue uma estratégia da empresa de expandir para mercados vizinhos. “Estamos começando a atuar simultaneamente na Argentina, onde estão nossos primeiros investidores, e no Brasil, devido a sua importância na região. Somente São Paulo é um mercado do tamanho do Chile.”

O crescimento da empresa, como o das outras foodtechs, foi espantoso. Lançada em 2017, a NotMayo [veja quadro abaixo] abocanhou 10% do mercado de maioneses em um ano. Como na Impossible Foods, o segredo do sucesso foi criar um produto que agradasse ao público tradicional. “No Chile, 92% de nossos consumidores não têm nenhum tipo de restrição alimentar. Os veganos, vegetarianos ou ovo-intolerantes representam apenas 8%.”

A NotMayo chega ao Brasil com preço ao redor de R$10, categorizado por Vespa como “premium acessível”. Os investimentos recentes aportados à empresa servirão para dar início à próxima etapa de sua expansão: a construção de uma nova fábrica para começar a entrada nos mercados mexicano e norte-americano. Os próximos produtos a serem lançados pela NotCo serão o NotMilk e o NotIceCream. 

**NANOFOOD**

A Noviga é uma startup brasileira de foodtech que surgiu da patente de um ingrediente alternativo à gordura trans, e hoje é especializada no uso de nanotecnologia na produção de alimentos. Segundo Maria Cristina Nucci Mascarenhas, sua sócia-fundadora, a nanotecnologia é um dos campos mais promissores para o setor, pois permite encapsular ingredientes como gorduras, polissacarídeos e aromas para liberação posterior, permitindo a melhoria de qualidade dos produtos, a redução de aditivos e conservantes e o aumento da produtividade. “A utilização de nanotecnologia na indústria de alimentos está atrasada em relação a outros setores, como os de cosméticos, por exemplo, no qual o nanoencapsulamento já é utilizado em larga escala.” Para Mascarenhas, o atraso no Brasil se deve à pouca integração entre a indústria e as universidades e startups. “Temos muitas ideias e pesquisas, mas para um ingrediente ou processo virar um produto há necessidade de testes em escala industrial. Isso só uma grande indústria pode fornecer.”

Como diz Mascarenhas, “não basta ter uma ideia de um ingrediente ou processo novo. Para uma startup de alimentos vingar, ela precisa mostrar ao mercado um produto viável, escalável e apetitoso”.

Mascarenhas discorda da estratégia de rotular produtos como “hambúrguer sem carne” ou “maionese sem ovo”. “Essa referência a alimentos que já existem, na minha opinião muito particular, frustra o consumidor e desperdiça investimentos em tornar um novo alimento parecido com um que já existe. É mais vantajoso criar novas categorias de alimentos. Em vez de vender um ‘leite sem lactose’ oferecer uma ‘bebida vegetal’, por exemplo.” Vespa, da NotCo, concorda em termos com Mascarenhas. “Ela tem uma certa razão. Estamos criando alimentos novos. Mas é preciso conquistar o paladar dos consumidores tradicionais. Precisamos explicar que nosso leite é feito de vegetais, mas não é como um leite de amêndoas ou de coco. Ele tem gosto de leite de vaca, ele faz espuma quando colocado no café. Jogamos nessa categoria porque é o que o consumidor já conhece. Nosso ‘chef’ Giuseppe pode fazer muito mais do que imitar um sabor já existente. Mas acredito que essa seja uma segunda etapa. Primeiro temos que provar que podemos ser tão saborosos e mais saudáveis do que o produto mainstream”, diz Vespa.

Seja como for, podemos estar na antevéspera de uma revolução na indústria de alimentos, na visão de Mascarenhas. “Com o microencapsulamento, a qualidade da comida industrializada deve dar um salto, com a possibilidade de reduzir sal e conservantes e de melhorar o sabor dos alimentos fazendo com que liberem aromas e sabores na hora em que forem consumidos”.

Falamos em antevéspera porque ainda há um caminho longo a percorrer. “É grande a preocupação com a saúde e os efeitos sobre o ser humano, pois são nanopartículas que entram em nosso corpo e ninguém sabe muito bem aonde vão parar. É preciso muitos estudos para uma aplicação ser liberada.” A indústria de cosméticos já tem produtos que atuam nas mais profundas camadas da pele, porque testou. 

**GERMINANDO STARTUPS DO TIPO FOODTECH**

A Noviga foi uma das selecionadas do Germinar, programa de parceria com startups promovido pela M. Dias Branco, proprietária das marcas Piraquê e Adria, entre outras. “Tudo começou com uma visita que fizemos ao Vale do Silício, em 2017”, conta Fernando Bocchi, diretor de pesquisa e desenvolvimento da empresa. “Fizemos uma imersão em inovação e chegamos à conclusão de que o caminho mais promissor para estimular a inovação na empresa seria promover a colaboração com o ecossistema de startups.”

A M. Dias Branco organizou o projeto em duas frentes, uma de curto prazo, para transformar startups em fornecedores visando resolver problemas e necessidades atuais do negócio; e outra focada em novos negócios e parcerias, onde a empresa atuaria como investidora e parceira das startups.

Entre as etapas de entendimento dos negócios, propostas de desafios, avaliações, pitches de propostas, seleção, desenvolvimento e produção de um projeto-piloto se passou quase um ano. De 178 startups inscritas, 31 foram selecionadas para o programa e oito foram aprovadas como fornecedores e parceiras.

“Foodtech no Brasil está em um estágio incipiente, mas é um mercado com alto potencial”, diz Bocchi. “Nosso maior problema é encontrar startups com patentes realmente inovadoras.” Segundo ele, a M. Dias Branco decidiu investir no Germinar para recuperar o espírito inovador que tinha quando foi fundada. “O Germinar começou como um projeto, virou um programa e agora está se integrando à cultura da empresa. Na segunda edição que estamos promovendo este ano, recebemos mais de 150 sugestões e projetos de nossos funcionários, um engajamento sensacional.”

**UM FUTURO SEM CARNE**

No Brasil, nós estamos atrasados na corrida das foodtechs? Para Minuzzi, não. “Como a onda é muito incipiente, nossas chances são as mesmas de qualquer país. O cenário das startups de proteínas está muito concentrado na região de Oakland – as foodtechs são poucas e se ajudam muito. Mesmo Matias Muchnick, da NotCo, volta e meia está por aqui.” Para ela, o Brasil tem um potencial imenso para essa tecnologia, só estamos um pouco isolados. “As startups nacionais só precisam vir mais para São Francisco e se infiltrar nesse clubinho. É uma questão de vir, se expor, conectar e aproveitar o que o Brasil tem de melhor.” 

Em algumas décadas, matar bichos para comer sua carne vai ser tão ofensivo quanto o canibalismo é hoje? As opiniões divergem, mesmo entre os defensores das novas proteínas. “Acredito que teremos escolha, mas nunca a substituição total”, diz Vespa. “Meu sócio, Ryan Bethencourt, acha que em dez anos ninguém mais vai comer carne”, afirma Minuzzi, uma projeção que pode deixar muito pecuarista brasileiro de cabelo em pé. Porém, ela acrescenta, Bethencourt é um ativista vegano. 

Uma mudança paulatina de hábitos é o cenário mais provável, na opinião da própria Minuzzi. “Em dez anos, se a agricultura celular e outras formas de comida sintética alcançarem 30% do mercado, já será um sucesso gigantesco. Agora, em um futuro um pouco mais distante, matar animais para comer talvez venha a ser considerado uma piada que ficou para a História.”

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