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As fascinantes aventuras do propósito

Cecília Troiano: Psicóloga Clínica pela PUC-SP. Mestre em Women ́s, Gender and Sexuality Studies - Georgia State University, Atlanta, USA. COO da TroianoBranding, empresa que se dedica à gestão de marcas e comportamento do consumidor. / Jaime Troiano: Formado em Engenharia Química pela FEI e em Sociologia pela USP, Jaime fundou e comanda há 26 anos a TroianoBranding. Tem um programa semanal na Rádio CBN, junto com Cecília Russo Troiano e Milton Jung. Tem também uma coluna quinzenal no portal Mundo do Marketing, sobre Brand Insights, além de inúmeras participações nas páginas do jornal Meio & Mensagem, na revista da HSM e também como palestrante em vários eventos organizados por esses dois veículos.

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Na história dos negócios e da sociedade como um todo, dificilmente alguma coisa acontece por acaso. Talvez a gente não enxergue imediatamente, mas há sempre algo mais determinante sob a superfície de verniz que recobre os acontecimentos.

Foi assim durante as grandes descobertas do século XVI, quando a Europa precisava de novas oportunidades territoriais e comerciais e se meteu mar adentro. Não foi simplesmente um ato heroico e isolado de portugueses e espanhóis ousados e aventureiros. Foi assim também quando Darwin navegou no seu Beagle em busca de explicações que negavam a certeza do criacionismo, até encontrar as raízes de nossa espécie. A Primeira Guerra Mundial não aconteceu porque o arquiduque Francisco Fernando foi assassinado na Bósnia, em 1914.

No mundo dos negócios, a dinâmica é exatamente a mesma. All Ries e Jack Trout não criaram e se projetaram com o conceito de posicionamento, formulado por eles, apenas por serem geniais. E são! Mas, porque o crescente congestionamento de novas marcas no mercado exigia uma disciplina que organizasse como cada uma poderia ocupar um espaço próprio e diferenciado na mente dos consumidores. Eles souberam interpretar o zeitgeist. 

Just in time surgiu no Japão quando a Toyota precisava idealizar uma forma organizada de multiplicar seus modelos distintos de carros, num mercado em que a diferenciação e individualização exigia novos padrões de customização.

É sempre assim! Algumas aventuras levam a “novos continentes”, outras naufragam nos oceanos por não serem respostas a necessidades autênticas da sociedade e do mercado, em sua época.

E Propósito, de que falamos tanto e ouvimos falar mais ainda hoje? Bem, usando minha metáfora náutica, posso afirmar com segurança que Propósito é um conceito que já “dobrou o Cabo da Boa Esperança.” Ou seja, já está avançando bastante, nos mais diversos ambientes, singrando nestes mares turbulentos de nossa época.

Para entender o porquê dessa emergência do Propósito nos dias de hoje, queremos mapear qual o cenário dos últimos tempos. Qual é o cenário em que vivemos hoje? E o hoje não significa 2019: estou, na verdade, falando de algumas décadas. Qual é o ambiente do mundo em que estamos metidos?

Acho que ele tem alguns traços indiscutíveis na sua configuração. 

O primeiro é que ocorre a todos nós uma visão clara e muito conhecida de que há uma certa liquidez no mundo, nas relações entre pessoas, entre grupos, entre instituições.

Sygmunt Bauman, o inspirado filósofo contemporâneo, polonês, que nos deixou em 2017, captou como poucos o que é esse ambiente. 

_“Os tempos são líquidos porque, assim como a água, tudo muda muito rapidamente. Na sociedade contemporânea, nada é feito para durar”._

E numa outra frase, ele nos diz: _“Sinto-me em casa em qualquer lugar, embora não haja um lugar que eu possa chamar de lar”._

Essa fluidez das relações sociais cria uma plataforma de equilíbrio permanentemente instável. E o risco de afogamento nessa vastidão líquida nos assusta.

O segundo traço que caracteriza nossa vida é a invasão do big data e sua suposta capacidade de identificar preferências e padrões de escolha cada vez mais individuais. A pergunta natural que isso evoca é a seguinte: até que ponto essa política granular de relacionamento com o mercado não vai nos impor cada vez mais o fantasma de um solitário individualismo? Mônadas no meio da sociedade ao nosso redor.

Vivemos cada vez mais dependendo de bits e menos de átomos.

Nessa mesma torrente digital, estamos sendo mapeados por algoritmos. Eles deveriam ter a finalidade de antecipar nossas decisões, atender expectativas. E o raciocínio subjacente que ele emprega é o seguinte: se até agora, eu comprei vários livros do Paulo Coelho e equipamentos de jardinagem, o meu futuro como consumidor está determinado. Continuarei recebendo ofertas de livros do Paulo Coelho e autores do mesmo estilo, além conhecer tudo o que há de melhor para meu jardim. Ou seja, serei sempre um ser que reproduz o meu passado. Se Copérnico tivesse se alimentado de algoritmos, o Sol teria continuado a girar ao redor da Terra, que continuaria sendo o centro narcísico do Universo.

Estamos em busca de razões para a insistente presença da discussão sobre Propósito atualmente. Aqui, vai mais uma. Além de líquida, **nossa sociedade é acelerada e fragmentada nas suas relações sociais primárias.** Todos temos múltiplos contatos de caráter tênue, superficial, com dezenas de outras pessoas ou de, supostamente, amigos. É como se tivéssemos nos destribalizando e fôssemos partículas sociais desordenadas em movimento frenético no campo de força que habitamos. 

Ser lento é feio. Ser rápido vale muito. Ser quieto pega mal, ser extrovertido, falar muito pega bem. Mais rápido é melhor. 

As relações humanas têm se pulverizado em pequenos cristais. Que muitas vezes nem se encaixam. Chico Buarque já profetizava essa fragmentação em 1974, na música Sinal Fechado. Aliás, os artistas sempre entendem antes do que nós, profissionais de negócio, as encruzilhadas e armadilhas da vida. Na música, duas pessoas que se encontram depois de um bom tempo, num farol de trânsito, cada um dos quais no volante do seu carro. Abrem a janela e conversam:

_“Me perdoe a pressa_

_É a alma dos nossos negócios_

_Não tem de que_

_Eu também só ando a cem…_

_Tanta coisa que eu tinha a dizer_

_Mas eu sumi na poeira das ruas ”_

Como consequência desse cenário, vivemos uma busca intensa, às vezes meio desordenada, meio nervosa; uma busca por algo que seja menos passageiro. Ou seja, uma busca de sentido na vida, nas nossas decisões, em nossas escolhas, que não apenas reflita e reproduza nossa história anterior. Mas que projete a transformação necessária que idealizamos para o futuro. Algo com mais sentido e menos espuma. 

E sabemos que estamos à caça de algo que cada vez mais engaja e movimenta os grupos jovens. Ao lado da necessidade de deixar de lado a ideia de que atendemos o mercado, palavra perigosa. E nos lembrarmos de que o que fazemos, quando fazemos bem feito, é atender a sociedade. Enquanto escrevemos este texto, os grupos jovens estão demonstrando exatamente essa mesma inquietação no Chile. Falta algo que apenas as políticas liberais e o mercado de consumo como conhecemos hoje ainda não foram capazes de equacionar. E qualquer semelhança com o que vivemos em nosso país, em 2013, não é mera coincidência.

Vem desse cenário, de um ambiente perigosamente líquido, onde há sempre o risco de afogamento. Vem de um ambiente fugaz e muitas vezes insensato, a necessidade iminente de refletirmos sobre Propósito. Porque ele ajuda a nos aproximar daquilo que é mais permanente, mais essencial e menos provisório. E combater a incômoda sensação de superficialidade, de fugacidade do tempo, sensações que têm nos perseguido e comprometido a limpidez também da visão corporativa. 

Propósito, como nós achamos que é correto conceituar, é um tema que retrocede há 2.300 anos. Aristóteles formulou a seguinte ideia: _“Quando suas autênticas qualidades se cruzam com as necessidades do mundo, aí nasce seu Propósito, sua verdadeira vocação”._

Embora seja milenar, lembro-me de ouvi-la pela primeira vez em torno de 2009, quando trabalhamos ao lado do inspirador Joey Reiman.

Essa frase nos deu a chave a partir da qual construímos nossa metodologia, a Rota do Soul, que tem a finalidade de escavar, formular e disseminar o Propósito de uma marca ou de uma organização.  

![](https://revista-hsm-public.s3.amazonaws.com/uploads/a15d4eb6-1b16-4e2a-aaef-5b2a72bd0ef2.png)

Há muitos benefícios no investimento consistente e determinado no Propósito. 

Foi por isso que decidimos escrever o livro Qual é o seu Propósito – energia que movimenta pessoas, marcas e organizações no século 21.![C:Usersguilherme.pereiraDownloadsCapa-Livro.jpg](https://revista-hsm-public.s3.amazonaws.com/uploads/0e24f837-fc0c-483d-82f5-b89b1a6b39de.png)

Vamos enumerar quais são os principais benefícios.

1. Empresas onde o Propósito é entendido e assimilado pela equipe apresentam um nível de engajamento superior. Uma convicção de que elas estão atendendo não apenas o mercado, mas que têm um papel relevante diante da sociedade. O que se relaciona diretamente com o ponto seguinte.

2. Particularmente nos segmentos mais jovens do mercado, as empresas que são fiéis a seu Propósito são mais capazes de atrair e reter melhores profissionais. É típico desses segmentos jovens a procura por ambientes profissionais que tenham um compromisso que transcende benefícios meramente mercadológicos e salariais.

3. Ainda é cedo, mas cresce gradualmente a quantidade de consumidores que optam por marcas que demonstrem ter, de forma autêntica, esse compromisso. Talvez ainda não seja um fator de decisão prioritário, mas a balança tenderá a pender cada vez mais para essas organizações, seja na área de produtos como de serviços. 

4. A convicção de que a empresa gravita em torno de um claro Propósito, descomplica a linguagem dos statements de missão e de visão, que passaram a ser, muitas vezes, quadrinhos na parede. Propósito, por sua vez, é uma mentalidade, uma forma de ver o papel da empresa no mundo e está internalizado na consciência de seus colaboradores. 

5. O Propósito é um guideline que alinha os processos de comunicação. Como todos nós sabemos, um dos eternos problemas em comunicação, seja corporativa, seja de produto, é o risco da dispersão. O Propósito é um princípio unificador dos programas de comunicação alinhando seus conteúdos, com sinergia. É o caso que acompanhamos com a ampla rede de centenas de lojas Giraffas. Diante do desafio de levar coesão à marca, os líderes da empresa iniciaram um trabalho para desvelar seu Propósito e encontrar um caminho que pudesse ser seguido por todos. 

6. Está mais do que provado: empresas e marcas que se inspiram num autêntico Propósito geram mais valor para seus acionistas. Estudos que constam do livro demonstram essa correlação entre praticar um Propósito legítimo e alimentar resultados. 

![](https://revista-hsm-public.s3.amazonaws.com/uploads/49c34c73-8f49-41f2-becd-62d2771b5eb3.png)

7. O Propósito não flutua na superfície da comunicação da marca e nem é algo que se impõe de fora para dentro por meio de uma retórica publicitária. O Propósito não é um perfume que se aplica na flor. É a fragrância que nasce com ela. Por isso, foi tão inspirador o mergulho que fizemos na Caedu. Diz Leninha de Palma, filha de Vicente, o fundador: “Foi um processo fundamental (aprofundar seu contato com o passado da organização) para que pudéssemos firmar a identidade da Caedu e nos preparar para o início da expansão”.

8. Além do benefício de iluminar a arquitetura de comunicação em geral, o Propósito, quando identificado, passa a ser uma ferramenta para ajustar os elementos de comunicação visual da marca. Assim foi, por exemplo, com o Instituto Avon ou com a AEGEA, que passaram por uma reformulação da marca à luz do seus respectivos Propósitos. No caso da AEGEA, em particular, sua identidade anterior foi reajustada para que refletisse o Propósito que move a empresa, sintetizado pela frase “Nossa natureza movimenta a vida”. O novo logo é muito mais poderoso para ilustrar o ciclo do eterno recomeço que a água percorre na natureza depois de ser usada por nós.

![C:Usersguilherme.pereiraDesktopaegea-logos.png](https://revista-hsm-public.s3.amazonaws.com/uploads/98068df7-85c7-4e14-9239-19ef707573cc.png)

9. Deixamos por último algo que julgamos condição sine qua non para que os benefícios do Propósito gerem frutos na vida de uma organização e em sua relação com a sociedade. Nunca pretendam utilizá-lo, em primeiro lugar, como um instrumento de relacionamento de marketing ou de comunicação em geral, da porta da rua para fora. Se ele não for disseminado e internalizado pelos colaboradores antes de mais nada, o restante será apenas uma retórica que não se sustenta. Este é o momento em que lideranças e equipes de gestão de pessoas e recursos humanos têm uma responsabilidade nobre e insubstituível: integrar o Propósito à mentalidade e comportamentos dos colaboradores. 

É provável que esse processo se estenda por alguns meses, antes dos quais ele não deve servir para ações externas junto aos outros públicos. Se fosse um bolo, saberíamos quando desligar o forno. Quando o pálito que se espeta fica seco. No caso do Propósito, o palito seco corresponde à consciência generalizada dos colaboradores de qual é a razão de ser da empresa diante da sociedade. Uma consciência que se manifesta de modo espontâneo nas relações internas. Nesse momento, o palito está seco. É hora de tirá-lo do forno e servir o bolo. 

Comentários Finais
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As fascinantes aventuras do Propósito na vida das organizações e das marcas não estão no fim e nem no princípio do fim, estão simplesmente no início do começo. Ainda são poucas as iniciativas autênticas nessa direção. Embora, como vive acontecendo em nosso país de hábitos tão novidadeiros, há apenas muita conversa, muita retórica sobre o assunto. 

Que elas sirvam para colocá-lo no centro do debate, no boardroom, nas listas de prioridades. 

O que nós esperamos sobre os novos ciclos de desenvolvimento do capitalismo e sua capacidade de atender mais plenamente necessidades humanas, não depende apenas das empresas praticarem seriamente seu Propósito. Depende de múltiplos compromissos, em muitas áreas da vida. Mas, acreditem, tratar o Propósito como uma ferramenta de desenvolvimento corporativo é muito mais do que apenas um grão de areia no conjunto desses essenciais compromissos.

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