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As queridinhas de 2020

As healthtechs já estavam maturando, mas aí veio uma pandemia. Este ano, a adoção de tecnologias no setor da saúde talvez tenha sido a única (e inevitável) certeza entre as startups no Brasil e no mundo

Heinar Maracy

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“Quando fechamos a primeira leva de startups do Cubo Health, em 2018, tínhamos 12 empresas de saúde. Nem se falava em healthtechs na época. Todos esses grandes deals que surgiram em 2020 estavam lá ou foram selecionados, mas não entraram por questões específicas. Não é coincidência, eles já se preparavam faz tempo. Reconheço a boa performance do portfólio, mas reforço que não precisava ser gênio para sacar que eles iriam explodir. Essas empresas chegaram para preencher uma carência muito grande do setor.”

Essa afirmação é de Thiago Julio, gerente de inovação aberta do Grupo Dasa e curador do Cubo Health, vertical de saúde da incubadora Cubo Itaú. Segundo ele, as startups de saúde, que despertaram fortemente o interesse de investidores este ano, principalmente devido à Covid-19, estavam destinadas ao sucesso, antes mesmo da crise causada pela pandemia.

Números do Distrito Healthtech Report 2020 corroboram a visão de Julio ao mostrar que o Brasil já somou US$ 66,5 milhões em investimentos resultantes de 25 deals. No ano passado, foram US$ 94,5 milhões, de 45 negociações – e a plataforma de conexão de startups Distrito espera que esse patamar seja superado em 2020. O relatório indicou que há 542 healthtechs atuantes no País, ante 248 mapeadas em 2018.

Essa expansão é ainda maior do ponto de vista global. De acordo com a plataforma de inteligência CB Insights, existem 41 unicórnios da área no mundo, em países como China, Coreia do Sul, Suíça, Alemanha, França, Israel, Reino Unido e Estados Unidos, com uma valuation total de
US$ 102 bilhões.

## Dívida tecnológica
Desde 2014, segundo a Distrito, mais de US$ 430 milhões foram investidos em startups de saúde no País. Mesmo assim, o setor é considerado conservador, ainda que seja o maior mercado da América Latina e o sétimo do mundo. Apesar dos exemplos bem-sucedidos dos mercados chinês e norte-americano, onde as healthtechs já estão abrindo capital na bolsa, a coisa andava devagar por aqui. A telemedicina é um bom exemplo desse pé no freio. Soluções existem há anos, mas não eram adotadas até a pandemia. Por quê?

Para Guilherme Weigert, CEO da Conexa, a resposta está no retorno do investimento. “Investir em um novo centro cirúrgico era muito melhor do que investir em tecnologia, porque o retorno era imediato. Só que a pandemia mudou tudo. Laboratórios fecharam, centros cirúrgicos e internações se esvaziaram. Isso fez com que os hospitais buscassem tecnologias para chegar ao paciente. Hoje, hospitais e planos de saúde utilizam plataformas de telemedicina. Esse movimento tracionou e não volta mais, porque os serviços foram implementados. A parte mais difícil era sair da inércia. Agora, olhamos a aplicação de tecnologias para além do novo coronavírus.”
Presidente do InovaHC, incubadora de startups de saúde do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Giovanni Guido Cerri concorda que o uso da telemedicina não deve recuar com o fim da pandemia, uma vez que, “no Brasil, as distâncias são grandes, as desigualdades também, e, ao se associar a teleconsulta à tecnologia, o potencial é enorme. Acredito que com a telemedicina o paciente vai ser melhor assistido, o atendimento será mais democrático e o custo, reduzido”.

A pandemia pode ter acelerado a busca por tecnologia na saúde, mas seu impacto nas startups do ramo aconteceu de forma desigual, segundo Julio, do Cubo Health – deals milionários ocorreram, mas algumas empresas fecharam as portas. Para ele, não por questão de competência, mas por características do setor, já que as startups são ágeis e trabalham no limite, mas sofrem com fluxo de caixa e perda de clientes em momentos de crise.

“Quase todas as healthtechs são B2B. Aquelas que forneciam para hospitais se deram mal, até clientes satisfeitos cancelaram contratos; já as que representavam demandas reprimidas, como telemedicina, prontuário e prescrição eletrônica, foram bem”, afirma Julio. De fato, a Distrito indica que healthtechs B2B representam 48,3% das inovações, seguidas por empresas B2C (31,2%). Além das startups que forneciam soluções de digitalização e telemedicina, tiveram suas atividades aceleradas empresas de produtos como módulos de gestão financeira, antecipação de recebíveis e engajamento de pacientes.

Para Vitor Asseituno, presidente da Sami, o que aconteceu com as healthtechs foi uma tempestade perfeita, fazendo de 2020 um ano histórico. “Os fundos de investimento pararam de evitar o setor porque era muito regulado e complexo. Os custos, exatamente por não ser digitalizado, aumentaram absurdamente. O preço médio dos planos cresceu 158%, de 2013 a 2018, e surgiram os primeiros planos de saúde digitais. Por fim, entrou a pandemia que acentuou o desemprego, a necessidade de saúde e escancarou a digitalização devido ao distanciamento.”

## Disrupção e futuro
Ainda que as startups de marketplace tenham sido as mais procuradas por investidores (46,9%), seguidas das de gestão e de PEP (21,9%), healthtechs dedicadas à adoção de inovações como inteligência artificial, machine learning, big data, wearables e internet das coisas estão ganhando atenção. Contudo, Marco Bego, diretor do InovaHC, pondera que a qualidade dos dados dos pacientes é fundamental, e o Brasil ainda lida com uma quantidade pequena de informações.

“O DataSUS é um grande repositório dessas informações. Mas ele não capta dados para pesquisa clínica ou científica, são dados mais abertos, voltados para a gestão. Quando essas informações forem captadas, de forma anônima, obviamente, trarão um grande benefício para toda a população”, diz Bego.
O InovaHC está implementando um sistema de informações de saúde com a ambição de servir como exemplo de plataforma para o setor, como “um Serasa da saúde”, com dados homologados para que todos possam usar de forma adequada. Um banco no qual todas as informações clínicas, laboratoriais, de imagem e de pesquisa ficarão armazenadas e disponíveis para a comunidade.
Weigert, da Conexa, acha que a disrupção do setor virá em três ondas: “a primeira coisa é conseguir digitalizar a entrada do paciente e seus dados de saúde, seja por IoT, dispositivos de triagem por aplicativo ou ferramentas de telemedicina que capturam informações. Depois, precisamos desenvolver algoritmos e soluções para que o médico tome a melhor decisão. Por último, vem a ferramenta de engajamento do paciente ao tratamento”.

A pergunta que fica é: após esse boom, quais oportunidades ainda estão em aberto? Para o curador do Cubo Health, no curto prazo, haverá uma consolidação do movimento, com empresas comprando startups e as próprias startups adquirindo outras, como no caso de Conexa e iMedicina. Depois, virá um período de maturação das startups atuais, cuja maioria está em estágio inicial. “Não temos 50 healthtechs no Brasil que merecem série B de investimentos. Temos ótimos empreendedores e um ecossistema mais estruturado, mas é preciso tempo. Todo mundo quer montar uma empresa de telemedicina, mas essa onda já passou. Estamos gastando empreendedorismo com a coisa errada”, diz Julio.

## Áreas promissoras
A estruturação digital em prontuários clínicos e de especialidades, com sistemas que captam informação clínica de forma estruturada para que grandes empresas possam utilizar IA, machine learning e análise preditiva são algumas das áreas que seguem em alta no setor. Outro ramo para empreendedores ficarem de olho são as health fintechs.
“É uma caixa de Pandora, porque mistura fintech, insuretech e plano de saúde. Hoje temos um padrão que é o convênio demorar 60 a 90 dias para pagar o médico. Isso pede uma disrupção digital. Por que não ficar com um fee e pagar no dia? Se eu tivesse alguns milhões sobrando, investiria nisso”, aposta Julio.

Mais operadoras digitais, como a Sami, também devem aparecer – soluções que oferecem melhores custos em serviços de saúde para empresas, tomando o espaço de convênios tradicionais, visto que o RH virou um grande cliente. Ao mesmo tempo, porém, Vitor Asseituno ressalta que o Brasil não trata bem o empreendedor, que sente falta de um ecossistema que favoreça a experimentação e novos modelos de negócio.

“A saúde está na mão de poucas redes hospitalares e de apenas oito empresas que dominam o mercado de planos de saúde, que nem sempre estão preocupadas em adotar novas soluções. Mas a pandemia tende a atrair empreendedores de outras áreas e negócios mais estruturados. O próprio recorde da Sami mostra que tem algo acontecendo e deve fazer empresas maiores olharem para o setor”, ressalta Asseituno.

Dois cases “de fora” comprovam essa tese. O primeiro é o UOL Med, plano criado pelo provedor de internet com mensalidade de R$ 20 que garante acesso a uma rede de mais de 1 mil locais de atendimento, além de descontos de até 70% em medicamentos. Já em outubro, a rede de varejo Pernambucanas lançou em conjunto com a AXA o Cuidar Mais, microsseguro de pessoas com pacote de assistências e acesso a serviços de saúde. Além da cobertura em caso de invalidez, o Cuidar Mais oferece indenização para doenças graves como câncer, telemedicina e descontos em atendimentos presenciais e exames.

Quando surgirá o primeiro unicórnio brasileiro no setor de saúde?

Para Thiago Julio, os unicórnios brasileiros ou operam em massa, ou têm apelo internacional, e o País se encontra em um estágio mais primário da saúde. “O mercado brasileiro não tem tamanho para um unicórnio de prontuário. O potencial está em biotech, genética, medical devices, empresas que fogem de digital health. No Brasil, há poucas startups investindo nisso. Como médico, preciso resolver o problema do paciente. Para isso, prefiro que exista dez healthtechs de US$ 200 milhões do que uma de US$ 1 bilhão”.
Em um setor tão complexo, ele não aposta em um killer app. Caso apareça uma plataforma dominante, acredita que virá de um player que já domina a tecnologia, como Google, Apple ou Amazon, “mas mesmo que todos os dados de saúde rodem em uma plataforma da Apple ou do Google, eles vão precisar de startups para executar a ponta. O Google não vai desenvolver prontuário de reumatologia, ele vai criar uma plataforma para as startups se plugarem nela”.

As estrelas da pandemia

__Healthtechs que receberam grandes aportes em 2020__

Sami
Startup de telemedicina responsável por um recorde de investimentos Série A no Brasil, captando R$ 86 milhões capitaneados pelos fundos Valor Capital Group e Monashees no fim de outubro de 2020. Começou como fornecedora de serviços digitais para operadoras de planos de saúde e se prepara para transformar-se em operadora.

Conexa
Baseada em telemedicina, adquiriu a startup de prontuário eletrônico iMedicina após um aporte de capital este ano, saltando de 5 milhões para 6,5 milhões de pacientes ativos e de 18 mil para mais de 50 mil profissionais de saúde cadastrados. Recentemente, criou a vertical B2C de consultas online Docpass.

iClinic
Comprada pelo grupo de educação médica Afya por R$ 182,7 milhões, fornece serviço de prontuário eletrônico, ferramentas de telemedicina, marketing médico e módulo financeiro para médicos e instituições de saúde. Cresceu 400% no segundo semestre de 2020 em relação ao ano anterior.

Pebmed
Desenvolvedora de aplicativo para auxiliar na tomada de decisão médica comprada pela Afya em julho de 2020, por R$ 133 milhões.

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