> Pássaro negro cantando na calada da noite
> Pegue essas asas quebradas e aprenda a voar
> Durante sua vida toda
> Você só estava esperando este momento para decolar
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> Pássaro negro cantando na calada da noite
> Pegue estes olhos fundos e aprenda a enxergar
> Durante sua vida toda
> Você só estava esperando este momento para ser livre
Era mais ou menos o dia 47 (mil?~) da quarentena e resolvemos fazer um café da manhã especial; tiramos as louças que a minha filha chama de “chiques!” de cima do armário, preparamos a mesa da cozinha e colocamos para tocar músicas do Beatles. Ela imita tudo que eu faço, e quando olho para a minha filha me conheço um pouco mais: a cara de dor na hora que simulamos um solo de guitarra; os olhos arregalados quando canto um refrão; a forma como dançamos germanicamente, sem ginga alguma, mas emanando uma felicidade boba.
Até que Blackbird começou a tocar e eu a chorar de um jeito incontrolável, como se meus olhos fossem algum encanamento com rachadura. “Blackbird singing in the dead of night”, Paul cantava na minha cozinha, e não sei se foi a lembrança do dia em que o vi ao vivo, se foi o tempo todo que passamos fechados em casa, ou o barulho de passarinho da música, que nos lembra uma liberdade que talvez não volte nunca mais, ou se de repente era a consciência de como somos sortudos e abençoados por termos uma casa, uma família, ovos mexidos, os Beatles tocando na nossa cozinha e crianças para nos mostrar o que importa neste mundo.
Se você cortar o filme para quatro anos atrás, eu estava no auge da minha carreira: coordenando uma equipe digital em uma grande empresa de comunicação, fazendo reportagens para um famoso programa de televisão, lançando meu segundo livro, cobrindo as Olimpíadas do Rio e dando dez palestras por mês…
## CONTEÚDO EXTRA
Eu não parava em casa. Minha filha mais velha, na época com onze anos, me chamou para conversar. “Você está trabalhando demais, pai”, ela disse. A minha resposta veio pronta: “Estou no auge da minha carreira, agora é o momento de aproveitar, filha”.
É difícil discutir com crianças, mais difícil ainda discutir com a minha filha mais velha. “A gente está crescendo, pai. Você precisa estar mais em casa”, ela disse. O rosto dela impávido, eu não consegui segurar a risada. Olhando de fora, alguém poderia entender que eu não estava levando a sério a mensagem. Por dentro, meu coração sofria um pequeno corte. Como um rasgo em um papel manteiga, o talho foi aumentando por meses, até que um ano depois eu não aguentava mais. Pedi demissão, mudamos de cidade, reorganizei minha vida, e decidi que não perderia mais nenhum dia importante das meninas.
Eu lembro do medo que senti e da angústia de não saber o que seria da gente. Lembro da minha aflição em lidar com o anonimato, a falta de previsibilidade econômica, a necessidade de empreender. Mas aos poucos fui percebendo que quanto mais tempo eu passava com minhas filhas, mais tranquilo eu ficava. Elas me davam a impressão de não esperar grandes coisas de mim. Queriam apenas minha atenção. Diziam: “Olha, pai!”, seguidamente. No começo eu ainda estava enfeitiçado pelos emails urgentes que precisam ser respondidos sem falta. “Olha, pai! Eu vestida de bailarina!”, uma dizia. “Olha, pai! Plantando bananeira!”, dizia a outra. E aos poucos, fui levado pela mão para a Terra do Nunca. Começamos a criar nossos próprios jogos de tabuleiro; montamos labirintos no corredor do apartamento usando fita crepe; a cama de casal virava um planeta distante que explorávamos juntos. “Não esqueçam de colocar o capacete”, eu dizia.
### O NOVO ANORMAL
Foi entre os anos de 1899 e 1910 que o artista francês Jean Marc Côté publicou sua série de ilustrações En L’An Deux Mille (No Ano Dois Mil), que se propunha a imaginar como seria a vida no ano 2000. A coleção foi redescoberta nos anos 80 pelo escritor de ficção científica Isaac Asimov, e impressiona pela precisão. Jean Marc Côté desenhou máquinas trabalhando em fazendas; cozinhas automatizadas; eletrodomésticos inteligentes; ligações por vídeo chamada; entrega por máquinas voadoras (drones); e até um futuro de aprendizagem escolar em que livros eram colocados em uma máquina e o conteúdo era transmitido para os alunos por fio até um fone de ouvido, ou seja, o cara previu até os audiobooks.
Mas uma coisa Jean Marc Côté não previu: nosso estresse, nossos escritórios e o trânsito das grandes cidades. O que chama atenção nos desenhos de Côté é que neste futuro idealizado as máquinas fazem o trabalho duro, e as pessoas estão sempre relaxadas. O fazendeiro, a faxineira, o professor, todos parecem felizes e satisfeitos com seus dispositivos. Esta é a grande promessa da tecnologia: um dia a máquina cuidará de toda a parte complicada e enfadonha de nossos trabalhos, de forma que poderemos aproveitar a vida. Mas aqui estamos nós, entre horas semanais no trânsito e emails respondidos no meio do jantar, trabalhando mais do que nunca.
Apesar das inovações das últimas décadas, como a internet e os smartphones, a produtividade das maiores economias do mundo está estagnada ou diminuindo há 70 anos. O ambiente de trabalho se tornou cada vez mais competitivo. Com a chegada de automação de robôs e algoritmos, nossos empregos não são apenas ameaçados pelos colegas, mas também pelas máquinas. O burnout é uma doença que se espalha e a saúde mental de trabalhadores está em crise. A pandemia global de Covid-19 parece deixar tudo ainda mais manifesto: nosso estilo de vida e de trabalho parecem insustentáveis, seja pelas limitações biológicas do nosso corpo, seja pelo impacto ambiental que causamos.
Desde 2018, coordeno um laboratório de pesquisas sobre a relação das pessoas com o trabalho. Entrevistamos cerca de 600 pessoas ao redor do mundo, em seis países e trinta áreas diferentes. Nossos dados confirmam o que outras pesquisas já demonstravam: mais de 90% dos trabalhadores se sente cansado; cerca de 60% está desengajado do trabalho; e 75% considera o chefe uma figura estressante.
Antes ainda da pandemia, algumas empresas tentavam solucionar este problema moderno. A Microsoft Japan experimentou a jornada de trabalho de apenas quatro dias por semana. O experimento aumentou em 40% a produtividade dos colaboradores; a empresa economizou 23% de energia elétrica; e 90% dos funcionários aprovou a ideia. Empresas como Basecamp não tem metas e nem KPIs. A Morning Star Co. não tem chefes. A Automattic não tem escritórios.
Depois de zerar os casos de coronavírus no país, a primeira-ministra Jacinda Ardern propôs a semana de quatro dias em toda a Nova Zelândia. Segundo ela, a medida incentivaria o turismo local e beneficiaria a saúde mental dos trabalhadores. Talvez, seja um momento perfeito para discutirmos uma jornada reduzida, renda universal, licença parental estendida, ambientes de trabalho com creche e a sistematização do trabalho remoto. O modelo como conhecemos precisa urgentemente de melhorias e, quem sabe, de uma nova métrica.
Em 1934, o economista Simon Kuznets, um dos criadores do GDP (da sigla em inglês, Produto Interno Bruto), alertou o Congresso Americano: “o bem-estar de uma nação dificilmente pode ser inferido a partir de uma medida da renda nacional”. Em outras palavras, o que Kuznets estava dizendo é: “Não pensem que o crescimento do PIB é a única coisa que importa!”. O PIB não mede nosso trabalho voluntário, nossos cuidados como pais, nossa dedicação aos mais velhos. Muitas das coisas mais importantes da vida não estão contempladas no PIB. E, ainda assim, nossas discussões fazem parecer que um país deve apenas se preocupar com ele.
Kuznets, que ganharia o Nobel em 1971, disse com outras palavras o que Bob Kennedy repetiu no famoso discurso de 1968 na Universidade do Kansas: “O PIB não mede a saúde das nossas crianças, a qualidade da sua educação ou a diversão de suas brincadeiras. Não mede a beleza da nossa poesia nem a força dos nossos casamentos, a inteligência do nosso debate público ou a integridade dos nossos políticos. (…) o PIB mede praticamente tudo, menos aquilo que faz a vida valer a pena de ser vivida”.
### TAKE THESE BROKEN WINGS
Sempre que vê uma estrela cadente ou sopra velas no bolo de aniversário, minha filha menor fecha os olhos e sorri, fazendo um pedido. É uma cena especialmente bonita, pois ela realmente se concentra, e então sopra as velas. Sei que é contra a lei universal dos pedidos, mas sempre pergunto o que ela desejou. E ela sempre me responde, cochichando no meu ouvido: “Que a nossa família nunca se separe”. Todas as vezes, há oito anos, o mesmo pedido. “Que a nossa família nunca se separe”.
Em um de seus aniversários, perguntei o que ela gostaria de ganhar. “Qualquer coisa, papai. Eu gosto de tudo”, ela disse. Foram as minhas filhas que me ensinaram o valor das coisas. Ou melhor, me ensinaram novamente. Eu havia esquecido. Quando era pequeno, qualquer galho de árvore virava uma espada. Qualquer pedra era também uma nave, ou um carrinho.
Minha filha mais velha que, certa feita, ensinou sobre as frustrações do consumo. “Pai, você já notou que os brinquedos são muito legais quando aparecem na televisão, mas quando a gente ganha e brinca com eles, perdem a graça?”, ela disse. Quantas vezes trabalhei longas horas para comprar presentes para minhas filhas, e vê-las logo depois deixando os presentes largados em um canto? Quantas vezes elas preferiram brincar com a caixa do presente, e ignoraram o conteúdo?
Lembro de um pai que me contou uma história ilustrativa. Tinha passado o ano em uma intensa dedicação profissional e, no aniversário do filho, quis remediar sua ausência oferecendo um brinquedo. “Pode pedir qualquer coisa, filho”, ele disse. O filho respondeu: “Qualquer coisa? Então eu quero um dia inteiro com você. Que isso você não me dá”. Corações são rasgados todos os dias por pequenas crianças e seus pais desatentos.
“All your life, You were only waiting for this moment to arise”, o Paul cantava na minha cozinha. Minha filha estava ainda com o pijama lambuzado de geléia de morango e eu me sentia um homem feliz. A quarentena tem sido longa e cansativa, mas cheia de momentos que, olhando em retrospecto, tenho certeza que sentirei saudades. Quantas vezes eu estava trabalhando demais, pedindo aos céus um tempo em casa com a família? Olho para minha filha e me vejo de novo, com oito anos, achando a vida a coisa mais divertida do mundo.
O escritor Kurt Vonnegut, costumava dizer que a única missão de uma pessoa na terra é esta: fazer outras pessoas apreciarem estarem vivas, pelo menos por alguns segundos.
“As pessoas sempre me perguntam se eu conheço alguém que foi capaz disso”, ele dizia.
“Os Beatles. Os Beatles conseguiram”.