Dossiê HSM

Case Mercado Livre: Metodologia é cultura

O crescimento não mudou a vocação 100% ágil com que a empresa nasceu; os projetos são estruturados em grandes avenidas

Compartilhar:

Startups assimilam facilmente alguns fundamentos da metodologia ágil. Mas e quando vira um unicórnio do e-commerce com mais de 4 mil funcionários só na área de tecnologia e subindo, como é o caso do Mercado Livre, ou Meli para os íntimos e os investidores da Nasdaq? Dá para manter a cultura ágil nativa depois de se metamorfosear em corporação?

Rodrigo Perenha, diretor de engenharia (de software) da empresa, não tem nenhuma dúvida: “Sim, porque metodologia é cultura”, afirma. Para ele, inclusive, não adianta uma empresa criar um time piloto para implementar a metodologia ágil sem mexer na cultura, na mentalidade das lideranças. Perenha entrou no Meli em 2019 para estruturar os times do Mercado Pago, braço financeiro da empresa. Em dois anos, sua equipe saltou de três para 400 colaboradores e ele virou líder Latam de todos os produtos digitais do Mercado Pago e country manager de engenharia no Brasil dos times fintech.

__Casa em ordem.__ Para estruturar os milhares de funcionários do Meli em times de 10 ou 12 pessoas sem hierarquizar demais ou perder a visão global dos acontecimentos foi preciso entender que independência não pode ser sinônimo de caos. O Meli tem um método próprio para garantir isso, baseado em aspectos culturais, com um ritual e uma data-chave para as jornadas de desenvolvimento – a apresentação do planejamento trimestral.

Nesse dia, o time assume compromissos com a alta liderança e ganha uma nota, que conta no bônus. Inclui entregas, geração de impacto, eventuais quedas e problemas. A preparação dessa apresentação envolve os times de produto, tecnologia e experiência do usuário (UX) e dura seis semanas. A área de negócios define do que a empresa precisa, e o time de tecnologia dimensiona o escopo da demanda. Depois a lista é priorizada, cruzando os itens mais importantes com a capacidade do time, e fazendo um exercício de trade-offs.

__Valores.__ Para Perenha, os valores necessários a um bom desempenho ágil precisam permear todos os aspectos culturais da empresa. “Cultura é um item muito forte na contratação; reprovamos por cultura. Se a pessoa não sabe lidar com conflito e não consegue trabalhar em colaboração, ela nem entra. Conhecimento técnico vem em segundo lugar, porque, se falta, a gente ensina.”

A cultura do Meli privilegia outros valores, como o cuidado com as pessoas. “Nossa liderança tem duas grandes responsabilidades: entregar projeto e cuidar das pessoas. Se a pesquisa de clima não for positiva, o líder do time é penalizado. É a nossa forma de balancear. A entrega é importante, mas não pode ser feita a qualquer custo”, conta Perenha.

E os métodos tradicionais? Não são usados na área de Perenha. O tempo gasto entre as etapas do desenvolvimento em cascata podem provocar a perda do timing quando o projeto chega na produção, o que ele considera uma falha grave. “Tem um monte de passagem de bastão no processo, só que o mercado está em evolução constante. O escopo muda no meio do caminho e aí vêm comitês de change request para aprovar outro. O projeto não acaba nunca! Além disso, essa metodologia [tradicional] gera competição entre diretores, cada um olhando para o próprio umbigo”, avalia. Porém Perenha reconhece que ter nascido ágil torna mais fácil continuar ágil. Ou seja, uma grande empresa que usa waterfall sofre mais para ficar ágil. (Eis um argumento cultural para usar os dois métodos.)

__Avenidas.__ No Meli, o desenvolvimento é estruturado em avenidas, grandes áreas que reúnem várias equipes, semelhante às tribos do famoso modelo Spotify. Essas estruturas ficam logo abaixo das grandes unidades de negócio: Marketplace, Mercado Livre e Mercado Pago.

Cada avenida tem líderes de tecnologia, produto e UX conectados ao head de negócios, que deve ter um olhar de médio a longo prazo, pensando no roadmap da empresa. Dentro de cada avenida existem vários squads por produtos. Um gerente sênior cuida de um grupo de squads do mesmo tema, e cada squad tem um líder de projeto, um coordenador responsável por cuidar das pessoas e da execução. Apesar da estrutura robusta, Perenha considera que a hierarquia é fraca. “É uma hierarquia de pontos focais, de organização.”

__Foco no MVP.__ Um cuidado que Perenha destaca na implementação do ágil é com relação à definição do mínimo produto viável. Para ele, as empresas que não conseguem implementar corretamente o ágil costumam se equivocar com o que é “viável”. “Eles não entendem que o viável é para o cliente, não para o desenvolvedor. As entregas precisam ser usáveis”, alerta.

Essa consciência é mais clara em uma startup, que precisa entregar algo útil para o cliente se quiser sobreviver; uma grande empresa “torra dinheiro” em MVPs que nunca chegam ao cliente. “Na prática, elas continuam fazendo desenvolvimento em cascata, só que em iterações menores”, considera.

Para evitar esse viés, Perenha prefere o termo MLP (produto mínimo desejável, na sigla em inglês). “As entregas têm que ser iterativas, mas todas elas devem ser úteis ao cliente e gerar aprendizado para você ver se está no caminho correto. Não adianta saber se acertou só no final.”

Como exemplo, ele cita a implementação do meio de pagamento instantâneo Pix no Mercado Pago. “Conseguimos implementar menos de três meses após o lançamento. Não era um produto totalmente redondo, mas tinha qualidade necessária para não estragar a experiência do usuário. Depois, já em produção, com os clientes substituindo o boleto pelo Pix, fomos terminando o alicerce. Esse é o ganho do ágil. Não basta ter entregas iterativas, é preciso que sejam úteis”.

Compartilhar:

Artigos relacionados

Organização

A difícil arte de premiar sem capitular

Desde Alfred Nobel, o ato de reconhecer os feitos dos seres humanos não é uma tarefa trivial, mas quando bem-feita costuma resultar em ganho reputacional para que premia e para quem é premiado

ESG
No mundo corporativo, onde a transparência é imperativa, a Washingmania expõe a desconexão entre discurso e prática. Ser autêntico não é mais uma opção, mas uma necessidade estratégica para líderes que desejam prosperar e construir confiança real.

Marcelo Murilo

8 min de leitura
Empreendedorismo
Em um mundo onde as empresas têm mais ferramentas do que nunca para inovar, por que parecem tão frágeis diante da mudança? A resposta pode estar na desconexão entre estratégia, gestão, cultura e inovação — um erro que custa bilhões e mina a capacidade crítica das organizações

Átila Persici

0 min de leitura
Tecnologias exponenciais
A ascensão da DeepSeek desafia a supremacia dos modelos ocidentais de inteligência artificial, mas seu avanço não representa um triunfo da democratização tecnológica. Embora promova acessibilidade, a IA chinesa segue alinhada aos interesses estratégicos do governo de Pequim, ampliando o debate sobre viés e controle da informação. No cenário global, a disputa entre gigantes como OpenAI, Google e agora a DeepSeek não se trata de ética ou inclusão, mas sim de hegemonia tecnológica. Sem uma governança global eficaz, a IA continuará sendo um instrumento de poder nas mãos de poucos.

Carine Roos

5 min de leitura
Tecnologias exponenciais
A revolução da Inteligência Artificial está remodelando o mercado de trabalho, impulsionando a necessidade de upskilling e reskilling como estratégias essenciais para a competitividade profissional. Empresas como a SAP já investem pesadamente na requalificação de talentos, enquanto pesquisas indicam que a maioria dos trabalhadores enxerga a IA como uma aliada, não uma ameaça.

Daniel Campos Neto

6 min de leitura
Marketing
Empresas que compreendem essa transformação colhem benefícios significativos, pois os consumidores valorizam tanto a experiência quanto os produtos e serviços oferecidos. A Inteligência Artificial (IA) e a automação desempenham um papel fundamental nesse processo, permitindo a resolução ágil de demandas repetitivas por meio de chatbots e assistentes virtuais, enquanto profissionais se concentram em interações mais complexas e empáticas.

Gustavo Nascimento

4 min de leitura
Empreendedorismo
Pela primeira vez, o LinkedIn ultrapassa o Google e já é o segundo principal canal das empresas brasileiras. E o seu negócio, está pronto para essa nova era da comunicação?

Bruna Lopes de Barros

5 min de leitura
ESG
O etarismo continua sendo um desafio silencioso no ambiente corporativo, afetando tanto profissionais experientes quanto jovens talentos. Mais do que uma questão de idade, essa barreira limita a inovação e prejudica a cultura organizacional. Pesquisas indicam que equipes intergeracionais são mais criativas e produtivas, tornando essencial que empresas invistam na diversidade etária como um ativo estratégico.

Cleide Cavalcante

4 min de leitura
Empreendedorismo
A automação e a inteligência artificial aumentam a eficiência e reduzem a sobrecarga, permitindo que advogados se concentrem em estratégias e no atendimento personalizado. No entanto, competências humanas como julgamento crítico, empatia e ética seguem insubstituíveis.

Cesar Orlando

5 min de leitura
ESG
Em um mundo onde múltiplas gerações coexistem no mercado, a chave para a inovação está na troca entre experiência e renovação. O desafio não é apenas entender as diferenças, mas transformá-las em oportunidades. Ao acolher novas perspectivas e desaprender o que for necessário, criamos ambientes mais criativos, resilientes e preparados para o futuro. Afinal, o sucesso não pertence a uma única geração, mas à soma de todas elas.

Alain S. Levi

6 min de leitura
Carreira
O medo pode paralisar e limitar, mas também pode ser um convite para a ação. No mundo do trabalho, ele se manifesta na insegurança profissional, no receio do fracasso e na resistência à mudança. A liderança tem papel fundamental nesse cenário, influenciando diretamente a motivação e o bem-estar dos profissionais. Encarar os desafios com autoconhecimento, preparação e movimento é a chave para transformar o medo em crescimento. Afinal, viver de verdade é aceitar riscos, aprender com os erros e seguir em frente, com confiança e propósito.

Viviane Ribeiro Gago

4 min de leitura