O ecossistema mundial de startups está vivendo uma diáspora rumo ao Oriente. Depois de 50 anos liderando revoluções tecnológicas como as dos computadores e da internet, o Vale do Silício corre o risco de ver sua hegemonia abalada por startups chinesas e israelenses, entre outras.
“Estamos na fase da negação”, diz Marina Miranda, coordenadora da Missão Rethink China, uma das muitas missões de visitas de brasileiros a startups chinesas. “Não queremos acreditar que o Ocidente está perdendo sua hegemonia. Estudamos movimentos assim nas aulas de história, mas nunca pensamos que poderíamos viver um desses de fato.”
Faz tempo que os países do Oriente têm representantes no Vale do Silício, que vão estudar e trabalhar lá, mas até cinco anos atrás eles em geral acabavam fixando residência nos Estados Unidos. Agora, seus investidores e empreendedores vão a outras plagas, mas voltam para casa; o foco da atividade é na terra natal. Observam- -se dois movimentos: startups orientais atraindo o capital ocidental e investidores orientais comprando participação em startups ocidentais. Estão muito mais ativos os investidores e startups de países como Coreia do Sul, Japão, Emirados Árabes e, em especial, China e Israel.
No Brasil, um indicador do interesse crescente pelo universo empreendedor de China e Israel é o aumento das missões a esses destinos organizadas por agências como Rethink Business e Latin American Institute of Business – Laiob. Vão investidores, empresas estabelecidas e até empresas de crowdsourcing para fazer benchmarking. A Broota, que já financiou 50 startups segundo seu cofundador Frederico Rizzo, espera que o financiamento coletivo triplique no Brasil em 2018, graças à nova legislação, e foi aprender com o mercado chinês.
**A CHINA E A “CALICHINA”**
“Na China, o líder Xi Jiping conclama os cidadãos a empreender e estimula suas empresas com um misto de apoio estatal, venture capital, protecionismo e investimento em tecnologia – calcula-se que em quatro anos o investimento em P&D chinês se equipare ao norte-americano. Enquanto isso, os EUA têm Donald Trump tomando medidas protecionistas e cortando investimentos em pesquisa e desenvolvimento, olhando apenas o curto prazo”, explica Miranda.
Não é só o governo; as 30 maiores operações de venture capital na China em 2017 movimentaram US$ 24,4 bilhões. Afinal, o país conta com o BAT, como é conhecido o trio de empresas Baidu, Alibaba e Tencent, investidor ativo em startups. Em um ano, como o de 2016, mais de 3.500 investimentos podem ser realizados, somando US$ 20,2 bilhões. O resultado é que a China já tem 57 unicórnios – 40% do total mundial, que é de 215 – que, somados, têm um valor de mercado de mais de US$ 240 bilhões. E 46% desses unicórnios contam com o capital de uma ou mais das empresas BAT e ainda da JD.com.
Pode-se dizer que a China tem dois polos de empreendedorismo inovador. O do norte, baseado na capital Beijing, dedica-se mais a software, tendo startups como Didi Chuxing – plataforma de transporte que recentemente comprou a brasileira Voude99, convertendo-a em nosso primeiro unicórnio – e a plataforma de conteúdo alimentado por inteligência artificial Toutiao, além da Tsinghua, uma universidade de ponta. No polo do Sul, centralizado na cidade de Shenzhen, ficam as startups de hardware, com destaque para a fabricante de drones DJI e a Jimgo, que produz alarmes anti-incêndio, detectores de fumaça, sistemas de inspeção por raios X e outros equipamentos, todos com alta tecnologia. Shenzhen está no centro dos holofotes. De um lado, foi apelidada de “Calichina”, combinação de Califórnia e China, graças ao fato de executar cada vez mais protótipos e provas de conceito de projetos nascidos no Vale do Silício; de outro, é vizinha de Hong Kong, que abriga a megaconferência anual de startups Rise.
Essa cidade é o exemplo de como o governo chinês leva a sério a inovação. Há 30 anos, era uma vila de pescadores com menos de 20 mil habitantes. Hoje é uma zona econômica especial de 10 milhões de pessoas, de visual arrojado, onde se instalam startups do mundo inteiro. É a cidade startup da China por excelência. Alicerçada em uma população jovem (a média dos habitantes tem menos de 30 anos), tem também um enorme polo industrial. Mais de 40% da riqueza da região já vem de indústrias como biotecnologia, energia renovável, comunicação high tech e novos materiais.
Além de o governo chinês investir cerca de US$ 10 bilhões em P&D em Shenzhen anualmente (o dobro do que é investido em Singapura), o ecossistema de crowdfunding entra com mais US$ 2 bilhões para financiar projetos de hardware – das 200 plataformas de crowdfunding existentes na China, metade é em Shenzen.
Outra vantagem competitiva local é o Hax, primeira aceleradora do mundo a focar exclusivamente em hardware e novos gadgets. “O Hax abriga dezenas de startups e lhes dá acesso a um maquinário ultramoderno de padrão industrial e à possibilidade de receber aportes de capital de US$ 100 mil a US$ 1 milhão. É uma iniciativa que não tem comparativo em nenhum lugar”, diz Miranda.
O mais interessante é que 90% das startups aceleradas pelo Hax ali vêm de outros países. Seu Demo Day, o dia em que os empreendedores apresentam seus negócios a investidores, já virou um evento mundial. IoT para jardinagem doméstica, sensores neurais para reduzir a depressão, vitrines de lojas inteligentes, chaleiras ultrassônicas – não há limites para a criatividade das startups aceleradas pelo Hax.
**ISRAEL: MODELO GAP MAIS VISÍVEL**
País com maior concentração de startups e venture capital per capita do planeta, Israel tem mais de 1 mil empresas high-tech lançadas todos os anos e é vista como líder em inteligência artificial, biotecnologia e tecnologia médica, além de muito avançada em fintechs. Como na China, também em Israel a participação do governo explica muito dessa performance _[veja quadro ao lado]_, bem como a da academia (a educação é de excelência, ou um país de 9 milhões de habitantes e 60 anos de existência não teria dez ganhadores do Prêmio Nobel) e a do setor privado local (que, entre outras coisas, investe muito em centros de pesquisa e desenvolvimento – são mais de 350 no país). Os três pilares formam o modelo chamado de GAP (governo, academia e setor privado), que é reforçado ainda pelo mindset global nato dos empreendedores locais e sua resiliência – talvez atribuível ao fato de todos servirem o Exército, como especula Miranda.
As startups israelenses, localizadas em Tel Aviv e região, são conhecidas há mais de 20 anos, mas estão gerando exits crescentes _[veja quadro ao lado]_ e ficando cada vez mais conhecidas mundialmente. E não é só o Waze. O leitor provavelmente já ouviu falar da plataforma de criação de sites Wix.com, da empresa de cibersegurança CheckPoint, da otimizadora de tarifas de voos FairFly, do gerenciador de projetos e tarefas DaPulse, da desenvolvedora de tecnologias para veículos autônomos Mobileye, da fornecedora de banda larga por satélite Gilat, do hub de freelancers Fiverr, do guia de transporte público Moovit. Se não, ouvirá em breve.
**TRÊS DIFERENCIAIS**
ISRAEL TEM ATRATIVOS BEM PERSUASIVOS PARA INVESTIDORES E EMPREENDEDORES
1. Os empreendedores contam com forte apoio estatal. “O governo israelense é responsável por 85% dos investimentos em incubadoras”, explica André Fauri, presidente do Laiob, que começa a organizar missões para Israel este ano. Em contrapartida, o governo fica com 3% do faturamento das empresas e, em caso de venda das incubadas, recebe o triplo do que investiu. Empreendedores têm um caminho mais fácil do que o do Vale do Silício, onde o ecossistema é voltado para a rápida aceleração das empresas.
2. As startups não fazem questão de ser unicórnios; elas querem é vender o negócio (US$ 200 milhões já é um bom valor), o que é ótimo para os investidores. “São compradas por grandes empresas, como IBM e Microsoft”, diz Marina Miranda, da Rethink Business. Segundo relatório da PwC, as operações de exit de startups israelenses de alta tecnologia em 2017 totalizaram US$ 7,4 bilhões, valor 110% maior do que o volume gerado em 2016, de US$ 3,5 bilhões. Não há investidor que não goste de estatísticas que lhe deem segurança de reaver o capital investido, com o ganho obtido – e, assim, os investidores ocidentais avançam sobre as startups israelenses.
3. Os empreendedores costumam ser mais velhos, pessoas que fizeram carreira em grandes empresas antes de empreender e têm habilidades gerenciais desenvolvidas.
**STARTUPS ORIENTAIS ATRAEM CAPITAL**
As startups orientais vêm atraindo capital de diversos países do mundo, mas sua atratividade pode ser avaliada por sua relação com os investidores brasileiros. A Bossa Nova, um dos maiores fundos investidores do Brasil na fase pré-capital semente, investia até agora em 170 empresas, sendo 110 delas nos Estados Unidos e 60 no Brasil. Agora, decidiu expandir para outros mercados. Está com ações de coinvestimento em Hong Kong, que é a maneira de entrar na China. Mas ela vai começar a atuar em outros países ocidentais também, como o Chile, a Argentina, o México e Portugal, onde está abrindo uma filial a partir do apoio governamental ao ecossistema empreendedor inovador. “Para cada euro que investimos lá, o governo português coloca outro”, comenta João Kepler, um dos diretores da Bossa Nova.
“A China é o grande mercado para investimentos em startups hoje”, confirma Rodrigo Marques, diretor do escritório de investimentos 109 (Dez à Nona), que já investe no Vale do Silício. Marques recentemente percorreu China, Coreia do Sul, Emirados Árabes, Israel e Japão pesquisando os ecossistemas desses países e ficou bem impressionado. “Existem três pontas do ecossistema que estão bem sólidas nesses países: o empreendedor, as universidades e o investidor”, garante ele.
Para começar a investir na China, Marques acompanhará a aceleração de um startup norte- -americana de seu portfólio lá, a Immersion. “Ela vai ser acelerada pela Industry of Virtual Reality Alliance (IVRA). Será o modo de aprender mais sobre o ecossistema chinês – e o mercado-alvo da empresa é o chinês mesmo”, diz.
Em Israel, os investidores brasileiros têm a entrada facilitada. O conterrâneo Michel Abadi, que trabalhou no banco JP Morgan, comanda, desde 2013, o fundo VC Maverick, que investe em startups e tem 30% de seu capital vindo de brasileiros. Outros investem diretamente, como o fundo Initial.vc, que tem no portfólio 23 empresas, 16 de Israel. “Investimos apenas em empresas de cultura equilibrada entre o lado empreendedor e o lado empresarial, porque quem tem um equilíbrio dessas duas culturas consegue ter uma taxa de crescimento razoável, faça chuva ou faça sol”, diz Daniel Cunha, sócio do Initial. Na explicação de sua filosofia de investimento, fica claro por que Israel é seu foco – lá é comum que sócios de startups tenham conhecimento de gestão.
Por que os investidores brasileiros vêm preferindo a China ao Brasil para destinar seu dinheiro? “Principalmente porque a maioria não está disposta a esperar seis a oito anos para ter retorno no negócio. O governo brasileiro tem olhado para o empreendedor, mas não incentiva o investidor. No resto do mundo investimentos em startup são isentos de impostos, o que faz esse investimento valer a pena; aqui, não”, opina Kepler.
]Nos EUA, muitos investidores vêm preferindo as startups chinesas pelo engajamento das pessoas. “Enquanto discutimos quanto deve durar a licença-paternidade, eles trabalham em um ritmo furioso, das 8h às 22h, seis ou sete dias por semana e até dormem na empresa”, escreveu Michael Moritz, sócio da Sequoia Capital, no _Financial Times._
**INVESTIDORES ORIENTAIS GANHAM O MUNDO**
Os investidores orientais estão ativos no mundo todo, inclusive levando as startups de outros países para serem aceleradas em seus territórios. Mas analisemos sua atuação com startups brasileiras.
Foi graças ao capital chinês que o Brasil ganhou seu primeiro unicórnio nos primeiros dias de 2018, como foi dito, e a Didi já anunciou o valuation da empresa em US$ 1 bilhão. Ela quer escalar globalmente sua operação de plataforma móvel de transporte, como declarou seu CEO, Cheng Wei, até porque precisa justificar os pesados investimentos que tem feito em inteligência artificial e soluções avançadas de transporte.
Assim como a Didi, o capital chinês como um todo está atento às oportunidades de startups mundo afora e o Brasil não escapa do radar. Tanto que, em 2014, por exemplo, a chinesa Baidu investiu no Peixe Urbano (já vendeu sua participação). No entanto, ainda não estamos atraindo os grandes fundos investidores, como observa Marques. “O desafio para as startups brasileiras é atrair investimentos externos em geral, porque o ecossistema não está suficientemente desenvolvido, muita coisa precisa ser balizada e a quantidade de startups é muito baixa em relação ao potencial do País – seria preciso poder investir em 70 startups para acertar uma e não temos esse volume.”
O momento é bom. Os chineses querem se globalizar e seu interesse na América Latina aumentou depois da eleição de Trump nos EUA. No Brasil, o tamanho do mercado doméstico é sedutor, especialmente o tamanho da base da pirâmide demográfica, ainda muito mal atendida e, portanto, passível de ser muito impactada com inovação. Os chineses parecem acompanhar ao menos cinco áreas: educação, saúde, fintechs, agronegócio e varejo. No entanto, eles reclamam bastante – seja da baixa formação em gestão dos nossos empreendedores, seja da grande distância entre universidades e negócios.
Para Daniel Cunha, o fato de termos poucos investidores estrangeiros se deve aos entraves burocráticos, principalmente nos investimentos em estágios iniciais de uma startup. Mas Cunha acredita que São Paulo é um polo de startups tão robusto e avançado quanto os de alguns países da Europa e oferece boas perspectivas. Aliás, os fundos estrangeiros têm aqui a vantagem da pouca competição de investidores locais, incluindo um financiamento coletivo ainda tímido.
Nem o governo brasileiro, com orçamento de R$ 50 milhões para gastar, tem conseguido convencer os fundos estrangeiros, do Oriente ou de outros países do Ocidente, a investir em nossas startups. Elisa Carlos, gerente de inovação da Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), é responsável pelo Programa Nacional Conexão Startup-Indústria, que visa fomentar a relação entre startups e empresas. Segundo ela, a primeira etapa do programa, com investidores do Brasil, já não havia obtido os resultados esperados e, na segunda etapa, os fundos do exterior demonstraram pouco interesse. “Os investidores internacionais dizem querer vir para o Brasil, mas estão demorando para se mexer. Isso ocorre devido à baixa densidade de startups aqui, o que eles atribuem à burocracia e ao excesso de regulamentação, que encarecem as iniciativas de negócios”, diz.
Agora, a ABDI está procurando outros caminhos para chegar aos investidores externos. “Temos feito acordos de cooperação técnica com agências semelhantes à nossa ou câmeras de comércio em países como Israel e Japão. É um modo de buscar ajuda para trazer esse capital”, afirma Elisa Carlos.
**SEGMENTAÇÃO À VISTA**
China e Israel, ou outros países orientais, podem mesmo superar mesmo o Vale do Silício? Kepler, da Bossa Nova, acha que não. “Tem muito capital no Vale do Silício para isso acontecer.” Mas, em sua opinião, os polos orientais vão realmente crescer e destacar-se por segmentos de negócios, como a inteligência artificial na China e as fintechs em Israel.