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Como estar presente

Especialista desvenda os três pilares do processo de presencificação, que vão permitir a você estar aberto ao novo, atingir a alta performance e liderar melhor

Eduardo Farah

Atua como consultor de empresas há mais de 26 anos, atuando nas áreas de relacionamento...

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A saga de livros Harry Potter já vendeu mais de 500 milhões de exemplares. No entanto, antes de alguma editora querer publicá-lo, várias recusaram a proposta de J. K. Rowling, como já é sabido. No Brasil, quando o livro já chegava nas livrarias inglesas mas ainda não tinha repercussão, uma grande editora recebeu o original e declinou, inclusive. Os gestores dessas editoras eram incompetentes? Não. O que aconteceu é que não estavam abertos ao novo, uma história que se repete todos os dias, em todas as empresas, e talvez o leitor mesmo tenha alguns episódios desse em seu currículo.

Várias abordagens são propostas para evitar essa cegueira em relação ao diferente, que é bastante indesejável para os negócios e até perigosa em uma época em que as startups e o empreendedorismo inovador ditam novas regras competitivas. Minha visão é de que talvez o maior obstáculo para enxergar o novo seja a fragmentação do indivíduo, a existência de diversas partes dentro de nós. A fragmentação nos impede de ter uma inteireza na ação e, consequentemente, impede nossa conexão com o que está fora de nós. 

A fragmentação também é o maior obstáculo à alta performance, ou, como gosto de dizer, à autoperformance. “Só há um lugar para você procurar pelo seu melhor. E esse lugar é dentro de si mesmo.” Uso essa frase para ajudar a explicar outro conceito com o qual trabalho, a partir de uma ressignificação dessa palavra, que é o conceito de autoperformance. Para mim, autoperformance significa trabalhar a performance voltada para dentro. Quanto mais trabalhamos nossas questões internas, mais podemos evoluir nelas, o que vai refletir posteriormente na nossa performance no ambiente externo. A autoperformance conduz à alta performance.

A fragmentação ainda dificulta a prática da liderança, tão relevante nos dias atuais. No caso dos líderes, eu diria que a fragmentação aumenta a ansiedade e o estresse da equipe diante das demandas da empresa. Reduz a atenção, o foco, a percepção e a presença, elementos necessários para o líder se desenvolver, decidir e agir – ao se conhecer, conhecer e perceber/ouvir seus liderados e a realidade. O engajamento depende disso, inclusive. Piora os relacionamentos, dificulta enxergar a realidade com clareza e abrir espaço para a criatividade e a inovação, como já foi dito. Atrapalha o líder na hora de lidar com os dilemas de sua posição, a cuidar melhor de si e a ser mais saudável, física e mentalmente.

Embora contradições de um ser humano fragmentado sejam normais, isso não significa que sejam boas. O lugar em que essas forças contrárias são realinhadas, por sua vez, é o que tem sido chamado de presença, inclusive no mundo da gestão organizacional e da tão desejada inovação. E o caminho para atingir a presença é o que eu chamo de presencificação. Significa estar 100% conectado com o seu propósito e ao mesmo tempo perceber-se como parte de algo maior, que envolve tudo e todos – e, assim, nos torna receptivos ao novo.

A “presencificação” está diretamente ligada a outro conceito que ganha mais e mais adeptos no mundo dos negócios, que é o mindfulness, o estado de atenção plena, capaz de nos levar à alta performance no que quer que seja, à autorrealização e à tão almejada felicidade.

De modo geral, é necessário recorrer à prática de muitos exercícios de foco da atenção para que a presencificação se torne um estado natural, para estarmos completamente abertos ao novo o tempo todo, da mesma forma que respiramos. 

Como sabemos que estamos no estado de presença? Ele nos oferece uma sensação de preenchimento no coração por meio de sentimentos positivos, como uma alegria genuína de saber que, seja qual for o resultado de qualquer ação, está tudo certo, pois fizemos a nossa parte e nos sentimos completos. 

A presença é um estado em que ocorre uma equanimidade mental (condição em que o nosso ânimo é sempre igual, tanto na alegria como na adversidade). E quando somos serenos naturalmente, não importa o que aconteça, pois nada nos perturba.

Como o estado de presença é difícil de ser descrito em palavras, entender o processo para se chegar a ele é uma forma de facilitar sua compreensão e sua efetiva experimentação. O processo da presencificação se baseia em três pilares:

**1. MINDFULNESS** – meditação, com todo o seu conteúdo filosófico/científico e, principalmente, suas práticas. 

**2. AUTOCONHECIMENTO** – a compreensão do que existe dentro da gente, as diversas partes e fragmentos, algo que vai além de um entendimento puramente racional, envolvendo também os sentimentos e as emoções. Traz a possibilidade, pelo conhecimento, de transformação, ressignificação e unificação desse conteúdo. 

**3. PROPÓSITO E ÉTICA** – estão relacionados com o que fazemos e por que o fazemos, direcionados de forma positiva e motivadora.

Vejamos um por um.

**MINDFULNESS**

Não há consenso quanto à associação entre meditação e mindfulness. Alguns estudiosos dizem que são a mesma coisa, outros discordam. Existem diversas definições para meditação, que vão desde uma contínua e profunda contemplação de caráter anímico ou espiritual até conotações de características primordialmente cognitivas, quase um sinônimo de reflexão. Uma linha interessante apresenta a meditação como uma forma de treinamento mental que visa melhorar as capacidades psicológicas básicas do indivíduo, como autorregulação da atenção e das emoções. Muitas definições de mindfulness estão mais associadas à qualidade da atenção. 

Podemos classificá-las em aspectos distintos, sendo mindfulness uma técnica mais voltada para o foco e a meditação, um estado de união profunda com todos e com tudo o que existe. No Ocidente, percebo que o uso da palavra mindfulness teve maior impulso – e existe um uso mais amplo dessa palavra nas pesquisas sobre seus efeitos – por ser uma alternativa para designar o estado meditativo e as técnicas de foco e atenção sem associá-los a uma visão religiosa, já que a meditação é muitas vezes entendida como uma prática exclusiva de determinada religião.

Eu uso os dois conceitos como sinônimos neste artigo. O importante é entender que, quando entramos efetivamente em estado meditativo, nos conectamos primeiro conosco mesmos, com nossa essência – com o “observador” que contempla nossos pensamentos e o silêncio que se manifesta na ausência deles. Adquirimos ciência do que é real, do que está acontecendo naquele momento, sem precisar pensar a respeito, e vencemos a barreira de dualidade, separação e percepção finita que todos temos. E isso pode acontecer em diferentes níveis de profundidade. Em outras palavras, trata-se da capacidade de prestar atenção, com intenção, de uma forma aberta e curiosa no momento presente, sem julgamento de qualquer natureza. Julgamento aqui significa toda classificação e comparação mental que fazemos das pessoas e das coisas; uma apreciação crítica, uma opinião (favorável ou desfavorável) sobre alguém ou algo. Trata-se de atribuir uma qualidade – Como ele é bonito, feio, certo, errado, alto, baixo, gordo, magro etc. – com base em referências anteriores, originadas do passado, sendo muitas vezes uma compulsão que ocupa a nossa mente, uma distração que nos impede de ver e viver o momento presente.

Julgar, nesse caso, significa atravessar a linha da verdade, da realidade. “Uma pessoa não me deu um pedaço de doce” é um fato. “A pessoa foi egoísta e não me deu um pedaço do doce” é um julgamento.

E o que é praticar mindfulness? É ampliar nossa capacidade de perceber a realidade externa – o mundo, as pessoas, as relações, as coisas etc. – e a interna – tudo o que acontece em nós, nosso processo decisório, nossos sentimentos, nossas reações etc. A partir daí, sem estar identificados com emoções desfavoráveis, restritivas, presos em circuitos neurais viciados – que frequentemente nos levam a atitudes negativas em várias áreas de atuação –, podemos abrir espaço para uma reflexão clara e assertiva de cada situação, o que nos levará a tomar decisões mais acertadas e escolher aquilo que será melhor para nós e também para os outros. Algo que será baseado na intenção positiva, não em reflexos condicionados e amortecidos de memórias inconscientes. 

Na prática, sugiro um experimento: todo dia, reserve um minuto para cultivar o silêncio. Se perceber algum benefício, estique para 20 minutos, mas comprometendo-se com isso por 21 dias, de preferência sempre no mesmo horário. Se bem-sucedido no intento, aumente o prazo para 40 dias. Depois, para três meses. Após três meses, um novo hábito terá sido “instalado” em você: a sensação de esforço e as resistências desaparecem; meditar se torna um estilo de vida.

**AUTOCONHECIMENTO**

A presencificação, além de mindfulness, necessita de um profundo autoconhecimento, que nos permite compreender não só cognitiva ou intelectualmente, mas também no nível dos sentimentos, sensações e emoções, as diversas camadas e aspectos que constituem a nossa psique.

Um exemplo são as próprias dificuldades e a resistência que temos durante o estudo e a prática de mindfulness. Elas servem de pistas de pensamentos e comportamentos condicionados que necessitam de autoconhecimento. Quando silenciamos, propiciamos a auto-observação e começamos a nos dar conta de histórias que se repetem em nossa mente e nos impedem de concentrar a atenção. Esses pensamentos – que também podem ser vistos como vozes – não estão ali à toa, e sim para nos dar algum aviso de que há algo importante a ser trabalhado internamente. O que mantém sua circulação repetitiva em nossa mente é justamente sua ligação com sentimentos reprimidos ou negativos que mantemos guardados fora do alcance de nossa consciência. 

O mindfulness vai nos ajudar, primeiro, a nos distanciarmos dessas vozes. Precisamos identificá-las sem nos identificarmos com elas. Essa distância nos revelará que por trás da compulsão de pensamentos existe um observador. E se podemos observar os pensamentos, compreendemos que eles acontecem dentro de nós, mas não são o que compreendemos como “nós”. Aos poucos, como cientistas de nós mesmos, vamos investigando, elaborando e liberando sentimentos atrelados a memórias biográficas. 

O tema do autoconhecimento é extremamente vasto. Aqui vou trazer apenas algumas reflexões. Por exemplo, quando nascemos, nossos pais nos dão um nome. Os meus me batizaram de Eduardo. Mas qual é meu verdadeiro nome? O nome pelo qual sou designado indica realmente quem eu sou? Pode parecer estranho, mas será que o nome que alguém nos dá faz com que sejamos aquilo que ele significa? Algo que está carregado de uma bagagem genealógica, social e cultural – além, é claro, das projeções pelas quais os pais imaginavam moldar um “Eduardo” aos seus anseios, seus sonhos e suas vontades – inclusive os não realizados? Quem seria o “Eduardo” sem essas projeções? Quem seria você sem as projeções de seus pais, da sociedade, do seu meio? Somos colocados dentro de certas formas, que tentam modelar até o que devemos ou não devemos sentir. Existe algo em mim além desse pacote? Algo único? Como saber disso? Vejo que estamos presos em sentimentos negativos porque os tememos, já que acreditamos que não os suportaremos se os trouxermos à consciência. E é essa prisão que nos impede de viver outros sentimentos, inclusive e principalmente os positivos, de forma plena. Robert Fisher, em seu belo conto sobre o cavaleiro preso na armadura, aponta que o cavaleiro, para abrir mão da sua armadura, que o impede de sentir, precisa, entre outras coisas, passar pelo palácio do silêncio. Esse silêncio nos ajuda a entrar em contato com os nossos sentimentos, que nos levam a outros pensamentos e a nos conhecermos melhor.

Para nos guiar no caminho do autoconhecimento, algumas perguntas ajudam a avaliar o que sabemos a respeito do nosso mundo interno:

• O que realmente quero para mim?

• O que sinto?

• O que me gera insatisfação?

•  Onde percebo que não sou tão bom quanto gostaria?

• Onde tenho falhas?

•  Quais são meus sentimentos de impotência ou de inferioridade?

• Quais são minhas incoerências? 

• O que faço diferente daquilo que falo?

• O que falo diferente do que penso?

• O que penso diferente do que sinto?

• Quais são meus principais dons e talentos?

• Quais são minhas características positivas?

• O que valorizo e gosto de verdade?

•  Quais são meus valores – aquilo a que dou importância e que direciona o meu comportamento?

•  Como e por que faço escolhas de uma determinada maneira?

Todas essas questões aos poucos nos amadurecem para que possamos desembocar nas duas principais perguntas da nossa existência: “Quem sou eu?” e “O que eu vim fazer aqui?”. Essas questões nos levam ao campo do sentido da vida e, dependendo da interpretação, da espiritualidade.

**PROPÓSITO E ÉTICA**

Além de mindfulness e autoconhecimento, para estarmos presentes com totalidade, precisamos ter clareza do nosso propósito e estar conectados com a ética. Na verdade, entendo que ambos são fruto do autoconhecimento, mas gosto de separá-los para lhes dar um maior destaque devido à sua importância.

Estamos falando em conhecer com clareza qual é o nosso propósito, ou seja, o sentido da nossa vida, e assim agir de forma ética. Ética é a reta razão, é fazer o bem para si e para os outros. É ter uma ação positiva, com consequências benéficas e construtivas, baseada em uma intenção positiva. É nutrir o sentimento de conexão com tudo e todos. É caminhar para perceber que somos parte de um todo – uma unidade na totalidade. Propósito e ética estão ligados a essa concepção de unidade interior – com nós mesmos – e exterior – com tudo e todos. 

Por isso, quando aliamos propósito e ética ao autoconhecimento e a mindfulness, estamos falando de presencificação, de estarmos plenamente atentos, conscientes, presentes, conectados a nós mesmos e a tudo ao nosso redor. Esse é o estado unificado.

**HIPPIE OU BUSINESS?**

Esse tema parece muito hippie, ou esotérico, para você? Será que não haveria aí uma dificuldade de se abrir ao novo? Deixe-me acrescentar uma provocação: nesses tempos VUCA, está sendo cada vez mais aceita a ideia de que a qualidade dos resultados em qualquer tipo de sistema socioeconômico é função da consciência e da atenção das pessoas que estão operando no sistema, entre outros aspectos. 

Exemplo disso é a teoria “U”, que vem do Massachusetts Institute of Technology (MIT), uma das mecas da inovação nos negócios. É baseada em um conceito central chamado “presencing”, que é uma mistura das palavras “presence” (presença) e “sensing” (sentindo). Segundo o Presencing Institute, fundado por Otto Scharmer, a palavra significa “sentir, sintonizar e agir a partir do maior potencial para o futuro” e se refere à capacidade de “ver a partir de nossa fonte mais profunda”, o que só é possível a partir da conexão com o presente. 

Se você ainda não se abriu ao assunto, nunca é tarde para começar.

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