Reportagem

Como vai a inteligência artificial no Brasil?

O uso que empresas estão fazendo dessa tecnologia traça um panorama da mudança que está varrendo o mundo da gestão
Consultor de inovação e transformação digital no Instituto da Transformação Digital e professor de gestão da inovação. É graduado em ciência da computação e mestre em inteligência artificial pelo Centro Universitário FEI.

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A era da inteligência artificial finalmente começou. Foram necessárias algumas décadas de incubação, erros, aprendizados e amadurecimento das bases desse novo oceano de tecnologias inteligentes, e agora elas estão se tornando mais acessíveis e confiáveis.

No entanto, essa era foi se instalando em um ritmo diferente ao redor do mundo. Na China e nos Estados Unidos, primeiro. Seguiu-se o Japão (um dos pioneiros). Países como Coreia do Sul, Singapura, Inglaterra, Alemanha e Israel já navegam em velocidade de cruzeiro nesse oceano. Uma pesquisa recente feita pela Stanford University, The AI Index 2021 Annual Report by Stanford University, mostra que nesses países a quantidade de pesquisas na área é enorme,
e a adoção de soluções com inteligência artificial (IA) variadas, e em diversos setores da economia,está em franca ascensão.

E o Brasil? Onde estamos na carta náutica do oceano da inteligência artificial? Em breves palavras, na etapa de “substitução da interface tradicional entre homem e máquina”, como acredita Ricardo Destro, professor de inteligência artificial no Centro Universitário FEI. “Normalmente usávamos teclado e menus; hoje já podemos conversar com um computador quase como falamos com um atendente ao telefone… e as respostas estão cada vez melhores.” Para ele, o ganho para as empresas com isso já é grande e tende a aumentar, assim como a qualidade do serviço para os usuários.

“Existem também muitas iniciativas de captura, processamento e análise de dados, incluindo dados não estruturados originados de redes sociais, e um grande foco em indústria 4.0 e IoT [internet das coisas]”, complementa Destro.
Esses são resultados visíveis da aplicação de IA. Mas quais são seus bastidores? Em uma série de conversas com executivos de setores diversos e com profissionais atuantes na área de IA, levantamos os desafios relacionados à implantação desse tipo de solução nas nossas empresas, bem como as aplicações mais avançadas e a disposição do empresariado para investir nessas tecnologias.

## Quem é quem nas empresas tradicionais
Ainda há diferenças consideráveis em uso de IA entre os setores produtivos no Brasil, o que posiciona alguns na vanguarda da IA e deixa outros bem aquém de seus pares pelo mundo afora. Os grandes desafios para as empresas retardatárias, ainda a maioria, são “a falta de conhecimento sobre as reais possibilidades de aplicação da IA, a falta de informações sobre a jornada de implantação e de amadurecimento dessas soluções, e o esforço subestimado na preparação prévia da empresa para adotar novas tecnologias”. Essa é a síntese de Plinio Aquino, chefe do departamento de ciência da computação do Centro Universitário FEI.
Essa percepção pode parecer indigesta, mas não ocorre somente na academia. O mercado concorda. Elinton Piratello, CEO da X2 Inteligência Digital, diz que ainda são muitos os casos em que “os empresários partem do pressuposto de que a IA precisa ser comparada com os métodos antigos, o que não é possível, pois a inteligência artificial não é uma nova solução para problemas conhecidos”. Como Piratello diz, “ela traz soluções inovadoras para novos desafios, normalmente em cenários mais incertos e exponenciais”.

Muitos no Brasil ainda pensam em IA como um mero processo de automação, diz o especialista. “Só que ela é uma transformação efetiva, com mudanças de paradigmas, e revolucionando os processos, os serviços, os produtos e a forma como tudo é mensurado e analisado.”

Existem setores que passam longe dessa realidade, contudo. É o caso do setor bancário, que investe pesado em IA em diversas frentes, utilizando-a em sistemas que vão desde a detecção de fraudes até recomendação de produtos bancários e sistemas de apoio e atendimento ao cliente, passando por análise e liberação de crédito, reconhecimento de assinaturas e de faces.

“O Itaú investe em tecnologias de IA desde a década de 1990, quando ainda era algo muito voltado para cálculos estatísticos. E essa cultura criada ao longo das décadas permitiu que acompanhássemos os movimentos tecnológicos e enxergássemos a IA como um investimento de longo prazo. Agora, mais do que nunca, estamos colhendo os excelentes resultados dessa iniciativa”, afirma Diego Nogare, mestre em IA e gerente do setor de machine learning do Itaú-Unibanco.

Assim como a indústria bancária, os setores de serviços e varejo vêm investindo bastante para ampliar o uso de IA em três frentes: (1) soluções de reconhecimento de padrões, como é o caso dos sistemas de reconhecimento de imagem e de detecção de fraudes; (2) ciência de dados e big data, que, entre outras possibilidades, permitem a interpretação, a consolidação e a análise de grandes quantidades de dados estruturados e não estruturados; e (3) algoritmos de processamento de linguagem natural, que permitem a interação entre computadores e pessoas de forma humanizada, ou seja, por meio de escrita, fala e escuta. O setor de healthcare, especialmente em equipamentos hospitalares e medicina diagnóstica, também está bem avançado devido à importação de tecnologia.

Ainda no rol de empresas que investem um montante significativo em IA, estão, é claro, aquelas que possuem parques industriais de base tecnológica. É o caso das montadoras de veículos e de grandes empresas como Bosch, Siemens, Klabin, Weg e Embraer, entre outras, que, devido à natureza complexa de seus projetos, acabaram adotando alta tecnologia em seus parques fabris há muito tempo, e já desenvolveram a mentalidade de que o dinheiro direcionado à tecnologia não é gasto, e sim investimento essencial.

“Nessas áreas industriais está havendo investimento sim, e investimento pesado. O investimento em IA acontece na parte de automação inteligente e de manufatura avançada no chão de fábrica, o que vem permitindo a implantação da indústria 4.0”, diz Sidnei Silva, head of PoC factory engineering na Bosch. Ele conta que os investimentos também se dirigem à transformação digital de processos internos e dos negócios. “A IA está presente em maior ou menor grau em desafios logísticos, administrativos e até industriais.” Há ainda o investimento em tecnologia inteligente embarcada em produtos. “É toda uma nova geração de produtos surgindo.”

E o agronegócio, nosso setor mais célebre? O setor agrícola de grande porte também está dando as mãos para a IA. Os grandes fabricantes de tratores e soluções para o campo vêm implementando soluções de fazenda 4.0, nas quais as máquinas agrícolas são autônomas, o monitoramento do gado é feito por visão computacional, e algoritmos de IA são usados na engenharia genética.

Na contramão, com investimentos muito tímidos, encontram-se grande parte das empresas de pequeno e médio porte do País, e também setores inteiros, como construção civil, educação, turismo, serviços públicos e diversos outros empreendimentos adjacentes ou assessórios aos grandes conglomerados. Ainda se inclui na lista a manufatura em geral. “Em muitos setores, podemos dizer que há a necessidade de saltar da indústria 2.0 para a indústria 4.0”, diz Aquino, da FEI.
Vale destacar que há exceções à regra mesmo nessas áreas. Em serviços públicos, vemos o caso da ANA, a atendente virtual da secretaria da fazenda da Prefeitura de São Caetano do Sul. “A ANA utiliza uma plataforma de processamento de linguagem natural autônoma”, ilustra Piratello. Em cerca de quatro meses, ela aprendeu a entender as solicitações mais básicas dos cidadãos e passou a fazer a ponte deles com alguns dos serviços que a secretaria da fazenda oferece. “O trabalho de aprendizagem é constante e diário, permitindo ampliar cada vez mais a oferta de serviços e aumentar a eficiência na interação da ANA com os cidadãos.”

## Startups fazem os testes
Enquanto tantas empresas tradicionais lutam para acompanhar essa mudança tecnológica e cultural no Brasil, há startups nadando de braçada no oceano. O fato de já começarem a operar nos moldes de um mundo com alta tecnologia, hiperconectado, amplamente sensorizado, e com camadas inteligentes embarcadas capazes de lidar com quantidades enormes de dados, hipóteses e decisões, lhes dá uma grande vantagem. Essas empresas nascem predispostas a se reiventar constantemente, buscando se superar antes que a concorrência o faça.
Guilherme Mori, head de desenvolvimento da Vitat, spin-off de saúde do grupo Raia-Drogasil, diz que “existe muita startup usando tudo o que está disponível”. Para ele, isso é razão de otimismo. “Tem uma grande diversidade de ferramentas sendo testada por startups. Assim vamos entender como essas tecnologias podem, de fato, agregar valor ao mercado.”

## Barreiras de expectativas e preparo
Muitos empresários chegam à IA buscando soluções prontas, ou pelo menos com escopo, prazo e custo bem definidos, só que essa expectativa não condiz com a realidade. “Os projetos de inteligência artificial apresentam alto grau de incerteza e têm desafios próprios, por isso exigem uma visão de médio e longo prazos na estratégia e no cálculo de retorno dos investimentos”, diz Aquino. “O processo todo envolve uma longa e incerta jornada de aprendizado, tanto da máquina quanto dos envolvidos, não tem outro jeito de agregar valor aos negócios”, explica ele.

Além de expectativas erradas, falta preparo. Segundo Aquino, antes de a empresa iniciar esse ciclo de investimentos é necessário que se ajuste para alimentar esses algoritmos inteligentes e, mais importante, que crie uma cultura corporativa alinhada a essa revolução tecnológica. O desajuste às vezes é tão grande que fica difícil dar o salto. “Para a manufatura em geral e para muitos setores, podemos dizer que há a necessidade de saltar da indústria 2.0 (realidade de muitas ainda) para a indústria 4.0”, afirma o professor da FEI.

EM SE TRATANDO DE IA, DE MODO GERAL, O BRASIL ESTÁ ATRASADO. Mas tem bolhas em sincronicidade com o mundo. Quero crer, apesar dos pessimistas, que a revolução que vivenciamos pode ser a grande oportunidade de virarmos o jogo no País. Não estou sozinho nessa crença.

3 pontos de atenção

Investir em IA é complexo, e há complexidades mais difíceis que outras

Paragrafo 2

O caso ficou conhecido nos Estados Unidos: um pai soube da gravidez da filha adolescente porque a família recebeu pelo correio uma mala direta com cupons de desconto para produtos para gestantes e bebês. A culpa foi de quem? Da inteligência artificial, que criou a mala direta a partir do histórico de compras feitas pela garota na loja.

Em geral, algoritmos de IA trabalham com cenários complexos; eles têm a capacidade de lidar com situações de incerteza e grandes quantidades de dados não estruturados, algo impossível para a computação tradicional e os seres humanos. É uma vantagem e tanto. Como vimos no caso acima, porém, há pontos de atenção nada desprezíveis:

1. O cruzamento de dados e a inferência de resultados nem sempre são explicáveis. Isso precisa ficar claro para que possa trazer resultados realmente úteis e precisos.

2. O direito à privacidade precisa ser observado. No caso mencionado acima, a garota não havia informado à loja que estava grávida; a loja “descobriu” a gravidez da adolescente devido a mudanças em seus hábitos de consumo.

3. Algoritmos de IA são normalmente treinados a partir de conjuntos de dados conhecidos, mas que muitas vezes contêm informações enviesadas. É preciso conhecer essas bases de dados.

O desafio mais aparente: profissionais

A IA demanda profissionais não só de TI, mas de áreas complementares

Inteligência artificial não é um assunto estritamente técnico, do tipo que se delega à área de tecnologia da informação (TI) e pronto. Envolve várias áreas. E, se encontrar profissionais especializados em IA para TI já é difícil, imagine o desafio de contratar gente de IA para outras áreas.

“Além dos perfis ligados diretamente a TI, como desenvolvedores, arquitetos e aqueles com conhecimento específico em inteligência artificial, existe uma grande demanda por novos perfis que complementam os técnicos”, diz Ricardo Destro, da FEI.

Para dar apenas um exemplo o curador de IA é o profissional responsável por manter o sistema sempre atualizado para que o aprendizado de máquina possa evoluir. Ele alimenta o sistema com novas perguntas ou com outras formas de perguntar a mesma coisa. E não é uma função técnica. “No futuro, teremos provavelmente auditores de viés algorítmico, pessoa responsável por minimizar o enviesamento da IA, entre outras”, diz Destro.

Contratar pessoas para atuar com IA e capacitá-las também é complexo por conta de questões éticas e de equidade, que são importantes em todas as áreas de uma empresa, mas se tornam quase caso de vida ou morte aqui.

Diego Nogare, gerente do setor de machine learning do Itaú-Unibanco, ensina que abraçar a diversidade ajuda a driblar a escassez de profissionais e a melhorar o desempenho. “Percebemos que uma equipe plural permite o desenvolvimento de soluções de IA mais bem treinadas e com maior aderência aos diversos perfis de nossos clientes.”

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