Carreira

Competência emocional e o trabalho pós covid-19

A pandemia de coronavírus trouxe à tona a pauta da competência emocional em situações de extrema tensão. Apenas se confirmou a percepção geral no mercado de trabalho: habilidades humanas são os grandes diferenciais de um profissional do século 21.
Augusto é Diretor de Relações Institucionais do Instituto Four, Coordenador da Lifeshape Brasil, Professor convidado da Fundação Dom Cabral, criador da certificação Designer de Carreira e produtor do Documentário Propósito Davi Lago é coordenador de pesquisa no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC-SP, professor de pós-graduação na FAAP e autor best-seller de obras como “Um Dia Sem Reclamar” (Citadel) e “Formigas” (MC). Apresentador do programa Futuro Imediato na Univesp/TV Cultura

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Não é uma pauta conjuntural, ela tende a ser ainda mais valorizada no mundo pós-covid-19. A automação de diversos setores das cadeias produtivas e o desenvolvimento veloz da inteligência artificial realizam uma mudança estrutural no mundo do trabalho. Habilidades humanas serão cada vez mais cruciais para a carreira.

Cultura e inteligência emocional
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A capacidade de discernir e controlar as próprias emoções, bem como a sensibilidade ao lidar com a emoções de outras pessoas é uma qualidade reconhecida há séculos em diversos campos do saber. 

No período da Atenas clássica, Aristóteles dedicou o segundo livro da Retórica à análise das emoções “que tanto alteram os homens como afetam seus julgamentos” [1]. O filósofo examinou de que maneira o orador pode alterar as emoções da audiência conforme a finalidade do seu discurso. 

Outra referência está na Bíblia hebraica que registra, por exemplo, o provérbio milenar: “a resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira” [2], realçando a sabedoria de temperar as palavras em situações carregadas de tensão. 

Na era moderna encontramos em O príncipe as observações de Maquiavel ao governante que deseja permanecer firme no poder: o príncipe não pode ser emocionalmente fraco, pois “o que o faz desprezível é ser reputado volúvel, leviano, […] irresoluto” [3]. 

Desse modo, é fácil verificar que a valorização da habilidade emocional é uma constante em diversos gêneros de textos, sejam filosóficos, espirituais, éticos, psicanalíticos ou políticos. 

Isto sem citar as obras de arte, já que as emoções são a matéria-prima de todas as narrativas literárias. Entretanto, apesar da popularidade perene das “emoções” na cultura, o tema foi colocado de lado por muito tempo no mercado de trabalho da sociedade capitalista. 

Orientado por teorias econômicas que consideravam a tomada de decisão apenas como um raciocínio lógico de custo-benefício desprovido de fatores emocionais, o sistema capitalista se equiparou a uma máquina não apenas desumana, mas desumanizadora. 

Filmes do início do século 20 como Metropolis (1927) de Fritz Lang e Tempos Modernos (1936) de Charlie Chaplin ilustram a situação de seres humanos transformados em meras peças nas engrenagens industriais. A emergência do tema “emoções” no mercado de trabalho só ocorreu no final do século passado.

O advento do emotional quotient (EQ) no meio corporativo
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Em 1989 o congresso dos Estados Unidos decidiu investir durante uma década em pesquisas sobre o cérebro. Em 17 de julho de 1990, o presidente George H. W. Bush proclamou a “década do cérebro”. 

Entre os objetivos do programa estava o desenvolvimento de medicamentos contra Alzheimer e Parkinson. Desde então, outras nações também injetaram recursos em projetos semelhantes promovendo a fama das “ciências do cérebro” ou “neurociências”. 

O professor de epistemologia Markus Gabriel, da Universidade Bonn na Alemanha, chegou a afirmar que o mundo saiu do “eurocentrismo (opinião colonial de uma superioridade cultural da Europa em relação ao resto do mundo)” para o “neurocentrismo (alimentado pela fantasia de onipotência da ciência)” [4]. 

O fato é que a década de 1990 ficou marcada pelo grande boom de estudos sobre o cérebro. Em 1994, por exemplo, o neurocientista português António Damásio publicou a aclamada obra O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano, descrevendo o que seria o funcionamento da “mente” em termos biológicos e a influência das emoções na tomada de decisão. 

Neste ambiente científico ufanista em torno cérebro com descobertas sobre as bases biológicas das emoções, cresceu o volume de pesquisadores com propostas de avaliar “cientificamente” as capacidades emocionais de um indivíduo. 

Em 1995 o colunista de ciências do jornal The New York Times, Daniel Goleman fez história no meio corporativo lançando o livro Emotional Intelligence. A obra sintetizou as pesquisas de então, questionou o teste de “QI” (quociente de inteligência) como avaliação padrão sobre a capacidade cognitiva de um ser humano, e promoveu o paradigma do quociente emocional (emotional quotient – EQ). 

Segundo Goleman, a inteligência emocional é a capacidade de um indivíduo identificar, avaliar e controlar suas próprias emoções, bem como discerni-las em outras pessoas. Esta habilidade em lidar com emoções seria tão ou mais decisiva que o QI na trajetória de um profissional. 

O livro explodiu em popularidade alcançando dezoito meses ininterruptos na lista de mais vendidos em quarenta idiomas e diversos países. Ainda em 1995 a revista Time chegou a estampar na capa: “What’s your EQ?” (qual o seu QE – quociente emocional?) demonstrando a popularidade das ideias sobre inteligência emocional.

![](https://revista-hsm-public.s3.amazonaws.com/uploads/39dd8269-a4ce-48fe-92a3-fe34276cc542.png)

O status da inteligência emocional no contemporâneo
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Hoje, vinte e cinco anos depois do auge, a noção de “inteligência emocional” estabeleceu bases estáveis no meio corporativo. Mas é importante destacar dois aspectos que evoluíram neste período. 

Em primeiro lugar, houve um amadurecimento da justificativa: não é mais necessário basear a importância das habilidades emocionais em termos científicos. Atualmente a fundamentação é sobretudo ética. O estardalhaço inicial em torno do conceito arrefeceu com os desdobramentos mais recentes das neurociências. 

Por exemplo, hoje o neurocientista António Damásio diferencia emoções de sentimentos: emoções são um programa de ações e reações biológicas, relacionadas com os músculos, o coração, os pulmões, as reações endócrinas, etc.; já os sentimentos são as experiências mentais que o indivíduo tem a partir daquilo que está acontecendo em seu corpo. 

Assim, não é respaldada pela ciência a possibilidade de se criarem métodos inequívocos de aferir e desenvolver a capacidade emocional e sentimental de um ser humano. Essa ausência de capacidade preditiva das teorias sobre “inteligência emocional” impede sua categorização em termos de teoria científica. 

Desse modo, o mercado de trabalho não fundamenta a necessidade das habilidades emocionais em termos meramente científicos ou econômicos, mas em termos éticos: está no código de ética e conduta, nos valores e práticas das melhores organizações do mundo, nos setores público e privado. Essa virada ética é uma das principais marcas do paradigma dos negócios conscientes.

Em segundo lugar, as aplicações práticas da inteligência emocional também evoluíram. De 1995 para 2020 o mundo foi reordenado por sucessivas revoluções digitais. Hoje, estamos hiperconectados em diversas redes sociais e a fronteira entre trabalho e vida privada ficou tênue. 

Assim, as competências emocionais são percebidas e esperadas não apenas em uma entrevista de emprego, mas em diversos aspectos da carreira. O filósofo italiano Umberto Galimberti resume a ideia ao afirmar que “emoção é essencialmente relação” [5]. 

Além disso, os profissionais são apreciados conforme suas capacidades singulares. Não há um “padrão definitivo” de comportamento emocional. Evoluir a inteligência emocional é uma jornada sem fim. Ao examinar o comportamento da juventude contemporânea, Galimberti elogia a proposta do livro de Daniel Goleman sobre a “alfabetização emotiva”. 

A comparação é apropriada: ainda que não seja possível ensinar alguém a escrever como Jane Austin ou Cora Coralina, é possível alfabetizar e ensinar uma pessoa a simplesmente escrever. Do mesmo modo, não é possível programar um ser humano para que desenvolva as exatamente as competências emocionais de outra pessoa, mas é possível apresentar ferramentas para que desenvolva seu próprio comportamento. 

Insights para a carreira
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Com estes pressupostos em mente, apresentamos algumas ideias que podem contribuir para o desenvolvimento das competências emocionais no mundo do trabalho pós-covid-19. 

Reflita sobre seus sentimentos: não seja superficial ao tratar seu temperamento, ao refletir é proveitoso descrever e nomear com maior precisão o que você está sentindo. Quando alguém pergunta: “como você está?”, invariavelmente respondemos: “estou bem”. Ocorre que “bem” não é um sentimento, é uma resposta padrão, civilizada. O problema é quando somos escapistas e imprecisos diante de nós mesmos. Portanto, no momento adequado, reflita detalhadamente sobre o que realmente te faz “bem”. Seja mais específico: “sinto-me grato”, “entusiasmado”, “leve”. A Universidade Berkeley divulgou um estudo que identificou 27 sentimentos principais: admiração, adoração, alívio, anseio, ansiedade, apreciação estética, arrebatamento, calma, confusão, desejo sexual, dor empática, espanto, estranhamento, excitação, horror, inveja, interesse, júbilo, medo, nojo, nostalgia, raiva, romance, satisfação, surpresa, tédio e tristeza. Dar nomes aos sentimentos é um excelente exercício para se entender de fato. Afinal, em alguma medida, nós somos nossas próprias emoções e sentimentos, como disse o poeta Fernando Pessoa, “a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma” [6].

Reflita sobre suas reações emocionais/sentimentais em situações críticas: as reações de um indivíduo em situações complexas e tensas são determinantes em sua carreira profissional. Habitualmente são as situações difíceis que forjam os grandes líderes da humanidade. O filósofo David Hume observou que “é provável que a ascendência inicial de um homem sobre a multidão tenha início durante o estado de guerra, quando a unidade e a coordenação são mais requeridas” [7]. Inquestionavelmente as situações de pressão são testes para as grandes lideranças, contudo, há pessoas incapazes de suportar os testes mais simples do dia-a-dia profissional. Na atual conjuntura político-econômica mundial, com cenário de recessão e alta competitividade por postos de trabalho, definitivamente não há espaço para profissionais que se descontrolam por qualquer bobagem. Desse modo, avalie e compreenda quais são as principais situações que te fazem sair do controle ou dar vazão à determinados sentimentos e atitudes. Essa capacidade de reconhecer o padrão de pensamento que existe por trás de seus impulsos é comumente chamada de autorregulação no meio corporativo. Profissionais com autorregulação emocional apresentam clareza e racionalidade mesmo sob pressão.

Ria de si mesmo (não se leve à sério demais) e aceite feedbacks: o escritor Amós Oz em seu célebre ensaio Como curar um fanático afirma que a capacidade de levar a vida com maior senso de humor é uma marca das pessoas promotoras da paz. Por outro lado, os fanáticos são incapazes de rir de si mesmos. Nas palavras de Oz, “humor é a aptidão para ver a si mesmo como os outros o veem, humor é a capacidade de perceber que não importa quão justo você é, e como as pessoas têm sido terrivelmente erradas em relação a você, há um certo aspecto da vida que é sempre um pouco engraçado” [8]. O senso de humor ajuda o indivíduo entender seus próprios limites, ser menos crítico consigo mesmo, e abre portas para que feedbacks profissionais sejam recebidos com inteligência. Competência emocional envolve compreender que na maioria das vezes, o que os outros dizem e fazem não é pessoal, e sim uma manifestação de suas próprias motivações e interesses. Portanto, é crucial desenvolver o hábito de receber feedback abertamente, de múltiplas fontes, analisando opiniões contrárias com senso crítico embasado nas experiências vividas.

#### Notas

[1] ARISTÓTELES. Retórica. Tradução: Marcelo Silvano Madeira. São Paulo: Ridel, 2007, p.82.

[2] No hebraico: . מַעֲנֶה-רַּךְ, יָשִׁיב חֵמָה;    וּדְבַר-עֶצֶב, יַעֲלֶה-אָף

[3] MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução: Maurício Santana Dias. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010, p. 107.

[4] GABRIEL, Markus. Eu não sou meu cérebro. Tradução: Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018, p.17.

[5] GALIMBERTI, Umberto. L’ospite inquietante: il nichilismo e i giovani. Milano: Feltrinelli, 2016, p.47.

[6] PESSOA, Fernando. Aforismos e afins. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.11.

[7] HUME, David. Ensaios políticos. Tradução Pedro Pimenta. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.38.

[8] OZ, Amós. How to Cure a Fanatic. London: Vintage, 2012, p.74.

#### Aprofundamento:

Artigo acadêmico sobre a trajetória do conceito de inteligência emocional na literatura científica. Oferece um panorama das pesquisas até a segunda metade da década de 2000: MAYER, J. D.; ROBERTS, R. D.; BARSADE, S. G. Human abilities: emotional intelligence in: Annu. Rev. Psychol, 2008, 59:507–36.

Artigo acadêmico sobre a Hipótese do marcador somático formulada pelo neurocientista António Damásio sobre o processo humano de tomada de decisão. Em contraposição às ideias da teoria econômica que desconsideram as emoções na tomada de decisão, Damásio propõe que emoções realizam um papel essencial na habilidade de realizar decisões racionais rápidas em situações complexas: BECHARA, Antoine; DAMÁSIO, Hanna; DAMÁSIO, António R. Emotion, Decision Making and the Orbitofrontal Cortex in: Oxford University, Cerebral Cortex, Volume 10, Issue 3, March 2000, Pages 295–307.

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