Empreendedorismo, Liderança

Construindo mudanças organizacionais a partir dos affordances de um sistema social

Entendimento e valorização das características existentes no sistema, ou affordances, podem acelerar a inovação e otimizar processos, demonstrando a importância de respeitar e utilizar os recursos e capacidades já presentes no ambiente para promover mudanças eficazes.
É Chief Scientific Officer na The Cynefin Co. Brazil e possui uma trajetória de pioneirismo com agilidade e complexidade. Teve trabalhos de grande destaque envolvendo a disciplina Agile Coaching, como a publicação do livro The Agile Coaching DNA, e introduzindo o conceito de plasticidade organizacional para comunidades e organizações. Na Austrália, esteve envolvido em iniciativas de transformação nas áreas financeira e de segurança civil, onde utilizou complexidade aplicada como base do seu trabalho. Mais recentemente foi Diretor de Business Agility para Americas da consultoria alemã GFT.

Compartilhar:

Nos anos de 2017 e 2018, conduzi um trabalho de transformação para melhorar o fluxo de entrega de software em uma empresa de tecnologia de defesa militar na Austrália. Essa empresa global enfrentava uma grande pressão para agilizar e inovar na entrega de soluções para seus clientes. No entanto, devido à natureza do seu setor, a empresa precisava seguir regulamentações rigorosas, especificações rígidas e um processo de qualidade exigente.

Além disso, por necessitar pesquisar e desenvolver novas tecnologias para o setor, o nível técnico dos seus colaboradores era elevado e abundante. Reconhecer essas características e entender como elas se encaixavam no contexto sistêmico da organização foi fundamental para perceber que, em vez de tentar eliminar esses elementos, era necessário abraçá-los e promover mudanças que valorizassem as características positivas da organização.

Características como excelência técnica, rigor na qualidade e atenção ao design foram fundamentais para estabelecer robustos processos iterativos de automação de testes, comunidades de aprendizado e participação ativa dos clientes nos processos de ideação e desenvolvimento incremental das soluções.

Essa breve história é um bom exemplo do uso inteligente dos affordances (disponibilidades) de um sistema como abordagem essencial para o sucesso das iniciativas de mudanças organizacionais. No contexto deste texto, affordances referem-se às características disponíveis e acessíveis dentro de um sistema (social, biológico, químico, etc.).

O conceito de affordances é um dos elementos do framework ‘3As’, criado por Dave Snowden, que apresenta três lentes de análise sobre a dinâmica dos sistemas sociais: Assemblage (aglutinação), Agency (agência) e Affordance (disponibilidade). A lente affordance representa uma maneira essencial para entender e navegar os diferentes tipos de sistemas descritos no Cynefin Framework.

Affordances são propriedades relacionais que funcionam como restrições, entrelaçando as capacidades e propensões de um organismo com seu ambiente. Elas são produtos de restrições habilitadoras que criam interdependências e novas oportunidades. Em termos práticos, affordances representam convites para ações emitidos pelo próprio ambiente.

Do ponto de vista estratégico em transformações organizacionais, affordances funcionam como adjacentes possíveis que reduzem as barreiras ao fluxo de energia,

tornando os próximos passos mais acessíveis. Historicamente, os primeiros movimentos migratórios da humanidade eram direcionados para áreas adjacentes onde havia recursos disponíveis ou menos ameaças.

Usar os adjacentes possíveis é importante porque fazer mudanças a partir de elementos presentes na organização requer menos energia do que criar um futuro ideal baseado em características inexistentes no sistema. Por isso, usar os affordances é uma abordagem inteligente para promover a evolução saudável e efetiva das organizações.

O conceito de affordance se origina da biologia evolutiva e se refere às coisas que o ambiente nos disponibiliza. Ao identificar os caminhos mais disponíveis no ambiente e as oportunidades que ele proporciona ou impede, somos capazes de entender as tendências evolutivas do sistema e alterá-las através de intervenções.

Alguns affordances atuam como restrições que podem conter certas opções de movimentos ou conectar opções existentes com elementos não óbvios dentro de um contexto complexo. Outros affordances podem atuar como construtores de novos estados dentro de sistemas. Processos, rituais, hábitos, artefatos e regras são exemplos frequentes de construtores dentro de um sistema social.

O mundo esportivo oferece boas analogias para compreender o funcionamento dos affordances. Em qualquer esporte coletivo, como futebol ou voleibol, os jogadores estão continuamente identificando e utilizando os affordances durante o jogo. Eles analisam suas habilidades, o posicionamento dos colegas e adversários, as forças e fraquezas dos outros jogadores e até características ambientais do campo para identificar opções de movimento que gerem melhores resultados.

No contexto dos sistemas sociais, affordances não são apenas um conceito, mas um fenômeno relevante que pode determinar o sucesso ou fracasso de qualquer transformação organizacional. Muitas organizações falham em suas transformações por negligenciar as características disponíveis em seus respectivos contextos.

Elas buscam introduzir novas práticas que muitas vezes não são coerentes com as potencialidades já existentes ou tentam, de maneira traumática, remover características essenciais para a existência e evolução da organização.

Um exemplo são as empresas que tentam forçar profundas mudanças no seu design estrutural, eliminando silos, camadas hierárquicas e processos existentes. Não estou insinuando que tais mudanças são impossíveis, mas elas podem ocorrer à medida que os affordances que constroem essas características mudam de forma natural na organização.

Conforme explicado no artigo “[Estuarine Mapping: qual tipo de planejamento estratégico você quer produzir?](https://www.revistahsm.com.br/post/estuarine-mapping-qual-tipo-de-planejamento-estrategico-voce-quer-produzir)”, o Estuarine Mapping é útil para mapear as relações entre affordances e o custo de energia/tempo para promover mudanças. Compreender a dialética entre propriedades e capacidades é fundamental para o bom uso das características existentes em um sistema. Certos elementos possuem propriedades bem definidas dentro de um espaço-tempo de existência percebida.

Por exemplo, uma simples pedra possui certas características físicas relacionadas a sua ductilidade. Essas características, em sua maioria, são fixas e difíceis de mudar. Entretanto, mesmo com esse aspecto contrafactual relacionados a pedras, nós seres humanos fomos capazes de expandir suas capacidades para uma variedade de aplicações como edificações, desenvolvimento de armas e artes. Como princípio geral, é correto afirmar nesse caso que as propriedades são finitas e as capacidades são infinitas.

A percepção é o elo unificador e potencializador da díade propriedades e capacidades. Como affordances representam um fenômeno dentro de sistemas sociais, é necessário ter mecanismos para coleta e construção coletiva de significados. Por isso, é comum usar práticas de sense-making para identificar affordances a partir de padrões narrativos coletados em um sistema social. Informações detalhadas sobre esse tema podem ser encontradas no artigo “[O papel do sense-making na era da hiperconexão organizacional](https://www.revistahsm.com.br/post/o-papel-do-sense-making-na-era-da-hiperconexao-organizacional)”.

Essas propriedades relacionais e capacidades não são apenas a soma de propriedades primárias internas. Ao longo do tempo, elas representam novas restrições e construtores que são importantes para a estabilidade e viabilidade do sistema. Essa utilização inteligente das características existentes em um sistema também nos remete ao conceito de exaptação, que é uma outra prática essencial para navegar em ambientes complexos.

Exaptação é um conceito biológico que se refere ao processo pelo qual uma característica ou traço que inicialmente evoluiu para uma função particular acaba sendo cooptado ou adaptado para uma função diferente. Diferente de uma adaptação, que é uma característica que evolui diretamente para um propósito específico, a exaptação envolve a reutilização de uma característica existente para um novo uso que não estava previsto em seu contexto original de evolução.

Revisitando a experiência que eu trouxe no início do texto, o entendimento e respeito às propriedades existentes nos processos, modelo de negócio e habilidades das pessoas, foi fundamental para permitir a recombinação e exaptação das características atuais de modo a liberar novas capacidades para que aquela empresa conseguisse acelerar seu modelo de entregas de produtos inovadores na indústria de tecnologia de defesa militar.

Por fim, é necessário reiterar que respeitar os affordances dentro dos sistemas sociais das organizações é crucial, pois essas propriedades relacionais moldam as interações entre os indivíduos e o ambiente de trabalho. Ao reconhecer e valorizar essas características disponíveis e acessíveis, as organizações podem criar um ambiente que potencializa as capacidades e propensões dos seus membros, promovendo interdependências benéficas e oportunidades de inovação. Isso não só aumenta a eficácia das ações e decisões dentro da organização, como também contribui para a sustentabilidade e resiliência do sistema social.

Compartilhar:

É Chief Scientific Officer na The Cynefin Co. Brazil e possui uma trajetória de pioneirismo com agilidade e complexidade. Teve trabalhos de grande destaque envolvendo a disciplina Agile Coaching, como a publicação do livro The Agile Coaching DNA, e introduzindo o conceito de plasticidade organizacional para comunidades e organizações. Na Austrália, esteve envolvido em iniciativas de transformação nas áreas financeira e de segurança civil, onde utilizou complexidade aplicada como base do seu trabalho. Mais recentemente foi Diretor de Business Agility para Americas da consultoria alemã GFT.

Artigos relacionados

Quando a IA desafia o ESG: o dilema das lideranças na era algorítmica

A inteligência artificial está reconfigurando decisões empresariais e estruturas de poder. Sem governança estratégica, essa tecnologia pode colidir com os compromissos ambientais, sociais e éticos das organizações. Liderar com consciência é a nova fronteira da sustentabilidade corporativa.

Semana Mundial do Meio Ambiente: desafios e oportunidades para a agenda de sustentabilidade

Construímos um universo de possibilidades. Mas a pergunta é: a vida humana está realmente melhor hoje do que 30 anos atrás? Enquanto brasileiros — e guardiões de um dos maiores biomas preservados do planeta — somos chamados a desafiar as retóricas de crescimento e consumo atuais. Se bem endereçados, tais desafios podem nos representar uma vantagem competitiva e um fôlego para o planeta

Tecnologia, mãe do autoetarismo

Ninguém fala disso, mas muitos profissionais mais velhos estão discriminando a si mesmos com a tecnofobia. Eles precisam compreender que a revolução digital não é exclusividade dos jovens

Tecnologias exponenciais
A inteligência artificial está reconfigurando decisões empresariais e estruturas de poder. Sem governança estratégica, essa tecnologia pode colidir com os compromissos ambientais, sociais e éticos das organizações. Liderar com consciência é a nova fronteira da sustentabilidade corporativa.

Marcelo Murilo

7 min de leitura
ESG
Projeto de mentoria de inclusão tem colaborado com o desenvolvimento da carreira de pessoas com deficiência na Eurofarma

Carolina Ignarra

6 min de leitura
Saúde mental, Gestão de pessoas
Como as empresas podem usar inteligência artificial e dados para se enquadrar na NR-1, aproveitando o adiamento das punições para 2026
0 min de leitura
ESG
Construímos um universo de possibilidades. Mas a pergunta é: a vida humana está realmente melhor hoje do que 30 anos atrás? Enquanto brasileiros — e guardiões de um dos maiores biomas preservados do planeta — somos chamados a desafiar as retóricas de crescimento e consumo atuais. Se bem endereçados, tais desafios podem nos representar uma vantagem competitiva e um fôlego para o planeta

Filippe Moura

6 min de leitura
Carreira, Diversidade
Ninguém fala disso, mas muitos profissionais mais velhos estão discriminando a si mesmos com a tecnofobia. Eles precisam compreender que a revolução digital não é exclusividade dos jovens

Ricardo Pessoa

4 min de leitura
ESG
Entenda viagens de incentivo só funcionam quando deixam de ser prêmios e viram experiências únicas

Gian Farinelli

6 min de leitura
Liderança
Transições de liderança tem muito mais relação com a cultura e cultura organizacional do que apenas a referência da pessoa naquela função. Como estão estas questões na sua empresa?

Roberto Nascimento

6 min de leitura
Inovação
Estamos entrando na era da Inteligência Viva: sistemas que aprendem, evoluem e tomam decisões como um organismo autônomo. Eles já estão reescrevendo as regras da logística, da medicina e até da criatividade. A pergunta que nenhuma empresa pode ignorar: como liderar equipes quando metade delas não é feita de pessoas?

Átila Persici

6 min de leitura
Gestão de Pessoas
Mais da metade dos jovens trabalhadores já não acredita no valor de um diploma universitário — e esse é só o começo da revolução que está transformando o mercado de trabalho. Com uma relação pragmática com o emprego, a Geração Z encara o trabalho como negócio, não como projeto de vida, desafiando estruturas hierárquicas e modelos de carreira tradicionais. A pergunta que fica: as empresas estão prontas para se adaptar, ou insistirão em um sistema que não conversa mais com a principal força de trabalho do futuro?

Rubens Pimentel

4 min de leitura
Tecnologias exponenciais
US$ 4,4 trilhões anuais. Esse é o prêmio para empresas que souberem integrar agentes de IA autônomos até 2030 (McKinsey). Mas o verdadeiro desafio não é a tecnologia – é reconstruir processos, culturas e lideranças para uma era onde máquinas tomam decisões.

Vitor Maciel

6 min de leitura