Cientista/Matemático/Engenheiro/Inventor/Anatomista/Pintor/Escultor/Arquiteto/Botânico/Poeta/Músico. Se Leonardo da Vinci tivesse um perfil no LinkedIn, sua titulação – aquele texto que vem logo abaixo do nome – poderia ter mais ou menos essa cara. Separar com um símbolo de barra inclinada (slash, em inglês) diferentes habilidades e carreiras tem se tornado tão comum no mundo do trabalho que ganhou até nome próprio: slash career, ou outros equivalentes em português, como você verá nesta reportagem.
O profissional que busca experiências múltiplas, dentro ou fora da empresa, pode ser chamado de T-shaped, que é aquele que tem profundo conhecimento de sua área de atuação – representado pela linha vertical da letra T –, mas não limitado a ela. Diferente do I-shaped, especialista em uma única área, o T-shaped é multidisciplinar, e transita bem em outros setores, representados pela linha horizontal do T.
“Em uma era na qual gigantes como a Avis Rent a Car ou Avianca podem desaparecer do dia para a noite; na qual IA e robótica destruíram setores produtivos inteiros; na qual a tecnologia de ponta do ano passado é o dinossauro do ano que vem; e na qual insights disruptivos podem vir de áreas inesperadas como economia comportamental ou matemática aplicada, o especialista que é profundo e estreito está em risco extremo. A haste horizontal – a capacidade e a disposição de olhar ao redor – não é só boa para o bate-papo nas festinhas da firma; é uma política de seguro de vida”, afirma Barry Katz, professor da Stanford University e um dos consultores mais antigos da Ideo. Considerada uma das empresas de design mais influentes do mundo, a Ideo também foi responsável pela disseminação do conceito do profissional T-shaped no universo empresarial.
Isso porque, em 2010, o CEO da Ideo, Tim Brown, atraiu o interesse do público quando passou a dizer em entrevistas que o T-shaped era o grande segredo da cultura colaborativa e inovadora da empresa. “Aprendemos há muito tempo que a Ideo, que tem cerca de 750 pessoas em todo o mundo, não consegue concorrer com os pacotes salariais de nossos vizinhos aqui em Palo Alto – Google, Facebook, Apple, Uber, Amazon – e que teríamos de ser capazes de oferecer aos funcionários algo que valesse dinheiro, para todas as intenções e propósitos. O que oferecemos é um ambiente de trabalho cheio de pessoas criativas, otimistas e multifacetadas que não desenham uma linha rígida entre o que fazem por amor e o que fazem por dinheiro”, completa Katz.
Já para Elatia Abate, empreendedora, estrategista voltada para o futuro e criadora do Future of Now & Mosaic Career, a grande justificativa para que as empresas invistam em profissionais T-shaped é a volatilidade do mercado. “O mundo hoje exige mais agilidade. Ter um profissional que se aprofunda em algo e consegue traduzir isso para outras áreas, vinculando-as, é positivo para as empresas”, analisa.
Aprofundar. Está aí o ponto que, para alguns especialistas, levanta dúvidas sobre a efetividade desse profissional. “A professora Lynda Gratton, da London Business School, em seu livro The Shift, afirma que a era do generalista raso acabou. As empresas não precisam mais de funcionários que sabem um pouco de vários tópicos diferentes. Afinal, uma empresa que precisa de uma habilidade específica em um determinado momento pode contratar um freelancer”, contrapõe Nick van Dam, board member e professor da IE University, e consultor externo da McKinsey & Company.
Segundo van Dam, “as empresas precisam de profundidade em diferentes áreas de expertise, suplementadas com desenvolvimento on-the-job focado, para permanecer relevantes. Hoje, o conhecimento deveria lembrar um M”. Em outras palavras, para van Dam, diferentemente do T, que tem uma única área de especialização, o profissional do presente e do futuro deveria se aprofundar em diferentes saberes, representados por cada “perna” da letra M.
Mais do que cravar a letra que melhor representa esse profissional multidisciplinar e cada vez mais requisitado pelas empresas, HSM Managament buscou entender e abordar neste dossiê os conceitos que orbitam ao redor dessa tendência. Assim, termos como intraempreendedor, T-shaped, multicarreirista, anticarreirista, líder que queima os barcos ou adepto da carreira mosaico aparecerão nas próximas páginas, menos como sinônimos, e mais como peças de um mesmo quebra-cabeças que devem se encaixar nos próximos anos.
## carreira mosaico
Reconhecer um profissional T-shaped em sua rede ou empresa não é tão difícil. Basta olhar para os colaboradores que desenvolveram trajetórias não lineares, mais parecidas com um mosaico, do que com uma escada. “O mosaico é um retorno ao ato de criação, e uma carreira assim traz conhecimento, criatividade e impacto no mundo. Como num mosaico, pedacinho por pedacinho, tudo vai se encaixando”, explica Abate, que cunhou o termo.
Para ela, a estratégia de carreira escada não funciona mais e pode até ser a raiz do que tem sido comprovado em pesquisas sobre felicidade no trabalho. Ou infelicidade, já que a maior parte dos colaboradores diz estar parcialmente (49%) ou nada (4%) engajados em suas atividades no mundo laboral, segundo pesquisa conduzida em 2018 pela DecisionWise com mais de 20 milhões de indivíduos, em 70 países diferentes.
“Se a pessoa toma uma decisão inicial desconectada do que é importante para ela, de seus valores, ela se afasta do que é felicidade. A alternativa é dar um passo para trás, analisar o que deseja criar, qual impacto quer causar, para então traçar uma estratégia para chegar onde deseja”, ensina Abate, que já foi diretora global de aquisição de talentos da Anheuser-Busch InBev e vice-presidente de recursos humanos da Dow Jones & Company.
Abate, entretanto, sugere que o networking deve ser substituído por uma comunidade. “O networking é transacional. O que eu consigo tirar do outro? Já construir uma comunidade pressupõe entender o que consigo agregar de valor em cima do que o outro precisa. É mais sobre contribuir”, explica.
Então, para mudar para uma carreira mosaico, a especialista diz que a base é um tripé: compromisso, criação e contribuição. E, para chegar lá, ela dá quatro dicas:
__1. Autoconhecimento:__ saber o que é, de fato, importante para você e, assim, aprender a conectar os pontos.
__2. Construção de comunidade:__ as movimentações ao longo da jornada precisarão ser suportadas por uma rede que vá além do networking transacional.
__3. Plano tático:__ como contar essa história em plataformas diferentes, como currículo, LinkedIn e entrevistas? Trace um plano.
__4. Coragem:__ como os caminhos não são claros, o profissional precisará enfrentar desafios e questionamentos, e superar os medos para chegar ao destino.
O momento atual, com as mudanças de paradigmas que vêm ocorrendo, é uma oportunidade para as empresas se abrirem a profissionais que querem construir suas carreiras mosaico.
## adeus caminho estreito
Para ter uma carreira próspera, a melhor dica é não ter uma. Pelo menos é o que acredita Joseph Teperman, fundador da Inniti, consultoria de executive search, sucessão de CEO e leadership advisory, e autor do livro Anticarreira. “A origem da palavra carreira vem do latim carraria, que quer dizer ‘caminho estreito’. E a ilustração de uma carraria é aquela trilha feita por carroças em mata fechada. Diante de um obstáculo, elas ficavam sem saída”, explica Teperman.
Não demorou para o autor, ou anticarreirista, como prefere, conectar a carreira com o perfil I-shaped – apesar de profunda experiência e competência, quando precisa dar uma guinada em sua carreira, por desejo ou pressão do mercado, esse profissional se depara com vários obstáculos. Já o T-shaped está um passo adiante, justamente por trafegar bem por outros temas e áreas da empresa.
Entretanto, para construir uma anticarreira, a pessoa tem de ampliar suas frentes de trabalho. “Em vez de T, o desenho deveria ser mais parecido com um pente com diversos dentes. O anticarreirista se caracteriza por alguém que, além do seu trabalho ‘oficial’, é mentor, professor, participa de conselhos, dedica-se a um trabalho voluntário, transforma hobby em negócio, repassa seu conhecimento para os demais, dá palestras etc. Não é um ou outro, mas a junção de várias atividades, com e sem fins lucrativos”, complementa Teperman.
O resultado é compensador: “Descobri que as pessoas felizes e plenas não são carreiristas”, diz ele, com base nas 10 mil entrevistas feitas como headhunter e outras tantas para escrever seu livro. O especialista chegou a outras conclusões: “Os anticarreiristas são mais criativos, e estão fazendo a diferença nas empresas, ainda mais neste momento de pandemia. Não é pensar dentro ou fora da caixa, e sim perguntar que caixa é essa e explodi-la”. Para ele, o anticarreirista pensa de forma mais ampla, traz soluções, intercepta o futuro e cria novas formas de resolver problemas existentes, além de criar coisas inéditas.
## O desencaixe
Com tantas habilidades, o que aconteceria com Leonardo da Vinci se ele se candidatasse a uma vaga de engenheiro em uma empresa tradicional? Fizemos essa pergunta a Murilo Gun, empreendedor, professor e palestrante, e a resposta do fundador da Keep Learning School poderia ter dado fim à entrevista: “Não aconteceria nada, porque Da Vinci provavelmente não aplicaria a uma vaga como essa”. Mas Gun, sempre irreverente em suas explanações, continuou: “Quem tem tanta visão da vida, sabedoria e expansão de consciência entende que existem alternativas, como trilhar sozinho outros caminhos ou escolher empresas ‘não comuns’, como as startups”.
Gun defende a ideia de que tudo começa no indivíduo e que ele não pode esperar da empresa um programa estruturado para desenvolver outras habilidades. “O nome disso é terceirizar. Não dá para esperar que tudo ocorra sem desconfortos e sem riscos”, complementa. Porém, a provocação de Gun levanta outro ponto importante: se empreender ou trabalhar em uma startup forem as únicas opções desses profissionais, então as empresas deveriam assistir à fuga de talentos de braços cruzados?
“Muitos profissionais que estão empregados, ao se aventurarem em outras carreiras, optam por não contar na empresa por receio de não serem bem-vistos, de parecerem que estão abandonando o barco ou dedicando menos tempo para suas atividades corporativas”, explica Patricia Paniquar, gerente de operações de transição de carreira da LHH. (Veja mais sobre esse ponto de vista no quadro acima.) Paniquar complementa: “Na verdade é o oposto: pessoas que se dedicam a algo que faz sentido para elas sentem-se mais motivadas, felizes e produtivas”.
Para Paniquar, o mundo corporativo tradicional não atrai tantos profissionais talentosos como nas décadas passadas por uma série de razões: falta de interesse no modelo de trabalho CLT padrão, desejo de empreender ou atuar de forma autônoma, ter mais liberdade e qualidade de vida, falta de conexão entre propósito pessoal e o da empresa etc.
Para tratar esse desencaixe entre o que as empresas oferecem e o que as pessoas buscam, algumas organizações estão oferecendo jornadas de trabalho mais flexíveis e investindo em programas de intraempreendedorismo, que é a oportunidade de empreender novos negócios dentro da própria empresa. (Veja mais na reportagem da página 38.) “Penso que muitas empresas já estão adotando esse discurso, mas leva tempo para transformar a intenção em prática. Foi preciso uma pandemia para entender que o home office é possível e produtivo”, explica Paniquar.
A especialista ainda alerta que há outras mudanças necessárias para que as peças se encaixem. “O foco deve estar em concentrar-se mais no controle dos resultados do que no controle da agenda do profissional, além de engajar pelo propósito e não pelo pacote de remuneração.”
## afinal, talentos acabam?
Para Juliana Fiuza, chief people officer na Mesttra, aceleradora de pessoas em tecnologia e inovação, a resposta é sim. Por isso que, além de estratégias de atração, a especialista sugere que as empresas invistam na formação e no desenvolvimento das pessoas de maneira ainda mais expressiva. “Existe uma desconexão entre a academia e os reais desafios das empresas. Precisamos, como organizações, compreender a nossa responsabilidade social para que possamos modernizar o ensino, torná-lo mais acessível e darmos mais espaço para um número ainda maior de profissionais se desenvolverem no contexto multidisciplinar e tecnológico”, explica Fiuza.
Para isso, a especialista recomenda que as empresas promovam uma a cultura de aprendizagem e crescimento. “A formação e o desenvolvimento do profissional T-shaped não devem acontecer de forma pontual e sim contínua, ao longo da jornada. Promover a cultura do eterno aprendiz, de rápido crescimento e com olhar para o futuro. O famoso aprender a aprender, aprender a desaprender e reaprender. Essa pode até parecer uma tarefa fácil, mas na execução não é tão simples assim.”
Já Conrado Schlochauer, fundador e membro da nōvi, consultoria de lifewide learning, agrega esse olhar do ponto de vista do próprio colaborador. Segundo ele, hoje qualquer um pode aprender o que quiser e há quatro fontes disponíveis para tal:
1. acesso a conteúdo de uma forma geral;
2. experiências práticas;
3. pessoas que ajudem no processo (mentores informais), e
4. redes que podem reforçar o aprendizado.
Se havia dúvidas quanto ao processo de autonomia nessa seara, não há mais. Ele foi testado nos últimos meses e funcionou. “Com a pandemia, aprendemos sem alguém para ensinar. Isso mostra que temos uma capacidade nata de aprendizado”, reforça Schlochauer.
O desafio, para alguns, será fazer o aprendizado se tornar hábito, abrindo os olhos, de forma consciente, para tudo ao redor no dia a dia, onde há sempre algo novo para aprender. “No mundo VUCA não basta mais ser engenheiro. Preciso também ser psicólogo, ambientalista, transitar por gastronomia, música etc. São diferentes saberes que ajudam a encontrar soluções para esse mundo complexo e sem respostas prontas”, explica Marco Ornellas, consultor de desenvolvimento organizacional e autor dos livros DesigneRHs para um novo mundo e Nova (des)ordem organizacional.
Para Ornellas, esse desencaixe entre o profissional T-shaped e o universo corporativo pode estar com seus dias contados. “No futuro os organogramas darão lugar a círculos de conhecimento, separados por entregas, não por departamentos e áreas. Serão estruturas mais orgânicas, em que as pessoas serão contratadas por suas competências e não para uma área ou função específica”, explica.
Com as oportunidades de atuação sendo ampliadas nas empresas, a futurista Elatia Abate diz que é a hora de cada um deixar de ser “atirador” com um alvo só para virar “cientista” com disposição a mudar de rumo, testando e indo adiante. Em uma ou duas décadas à frente, ela visualiza mais flexibilidade, com o tão buscado equilíbrio sendo substituído por integração de vida, e o trabalho como expressão de nossa humanidade.
Para atrair e engajar profissionais T-shaped
Barry Katz, professor da Stanford University e membro do time da Ideo desde 1998, dá dicas:
1. Dê autonômia e responsabilidade para seu pessoal, não só ordens e instruções.
2. Mais do que tolerar riscos, encoraje as pessoas a tomá-los.
3. Não puna o fracasso, comemore ou pelo menos redefina a medida do sucesso.
4. Certifique-se de que as pessoas tenham oportunidades de aprofundar suas habilidades e aperfeiçoar sua prática.
5. Permita que as equipes se auto-organizem em torno de projetos que envolvem as paixões de seus membros. Se o time estiver trabalhando em algo que detesta, para um cliente que não respeita, ou fazendo uma tarefa para a qual simplesmente não dá importância, provavelmente não investirá seus melhores esforços.
Como planejar sua anticarreira
“Não há respostas prontas”, avisa Joseph Teperman, autor do livro Anticarreira. Mas, com boas provocações, cada um pode traçar a melhor estratégia para planejar e desplanejar sua anticarreira. Especialmente para este dossiê, ele fez um quadro comparativo entre ideias carreiristas e anticarreiristas.
Como planejar sua anticarreira
“Não há respostas prontas”, avisa Joseph Teperman, autor do livro Anticarreira. Mas, com boas provocações, cada um pode traçar a melhor estratégia para planejar e desplanejar sua anticarreira. Especialmente para este dossiê, ele fez um quadro comparativo entre ideias carreiristas e anticarreiristas.
O outro lado da moeda
Nem tudo são flores para quem busca uma carreira múltipla. Para as mulheres, então, os desafios se mostram ainda maiores. A seguir dois depoimentos que ilustram algumas dessas dificuldades.
Ana Fontes, fundadora da Rede Mulher Empreendedora
A maior parte do trabalho não remunerado do mundo é feito por mulheres, 75% segundo a OXFAM. Elas são a maioria quando o assunto é responsabilidade com a casa, os filhos, os doentes e os idosos. Além da sobrecarga física e emocional, isso tira delas as oportunidades de buscarem outros caminhos de carreira. Diante do cenário desanimador, algumas nem chegam a tentar. Em uma pesquisa realizada pela Rede Mulher Empreendedora, a palavra flexibilidade está sempre nos primeiros tópicos das motivações para empreender das mulheres, e nem aparece quando a mesma pergunta é feita aos homens. Essas diferenças geram um impacto brutal nas escolhas que poderiam levar equidade ao mercado de trabalho. Enquanto os homens se sentem confortáveis em atuar em várias frentes, as mulheres, mesmo sendo multitarefas, não têm as mesmas oportunidades.”
Viviane Mansi, diretora de comunicação e sustentabilidade da Toyota
Sempre tive um pé no mercado e outro na academia. Acredito que isso me faz uma profissional melhor para os dois lados – na empresa, por estar na fronteira da teoria e traduzi-la na prática; na universidade, para dar aos alunos uma visão condizente com os desafios reais da nossa profissão. Mas embora conciliar essas duas vidas traga uma satisfação pessoal enorme, está longe de ser simples. Exige mais disciplina, as horas de sono diminuem, e passamos a conviver com uma quantidade enorme de olhares duvidosos sobre a nossa capacidade de conciliação. Mudei de empresa mais de uma vez quando percebi que não havia essa confiança. Então, passei a escolher com ainda mais cuidado os meus empregadores, deixando claro que as duas carreiras são importantes para mim. Não é fácil, restringe as opções, dá mais trabalho, mas sigo acreditando que vale a pena.”