Artigo

É hora de encarar as fragilidades do Ocidente

A pandemia expôs pontos vulneráveis do mundo ocidental, mas também nos deu a chance de repensar o governo

John Micklethwait e Adrian Wooldridge

John Micklethwait é editor-chefe da Bloomberg News. Entre 2005 e 2013, foi editor chefe de...

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Um dos pontos fortes do Ocidente é o talento para a reinvenção. Quando tudo parece dar errado, vem a regeneração, impulsionada por ideias e tecnologias. Assim, a esperança é que a pandemia de covid-19, ao expor tantas fraquezas, force os governos ocidentais a enfrentar suas fragilidades com reformas profundas.
Para isso, o Estado precisa de três intervenções: modernização, atração de pessoas talentosas e concentração no que faz bem. Um Estado antiquado, que tenta fazer “tudo”, não consegue que pessoas boas trabalhem para ele, o que o impede de fazer reformas bem-sucedidas.

O desafio atual se parece com o enfrentado no século 19, quando a ordem liberal de concorrência e eficiência varreu a velha ordem de clientelismo e corrupção. Dois políticos, o presidente americano Abraham Lincoln e o primeiro-ministro britânico William Gladstone, acreditavam em melhorar a vida das pessoas comuns. Gladstone empenhou-se em tirar recursos do esquema de corrupção e direcioná-los a quem precisava. Lincoln desejava unir seu país e livrá-lo da injustiça racial.
Juntando os ideais desses dois homens, sugerimos reformas que podem ser aplicadas nos Estados Unidos de hoje. Todas se baseiam no que já funciona em muitos lugares do mundo, portanto as barreiras para implementá-las são políticas, não práticas. Escolhemos os EUA porque são o maior país do Ocidente, e o mais reprovado no teste da covid-19. Essas reformas, porém, podem ser aplicadas também a outros países.

## Construir resiliência
A total falta de preparo para lidar com o Sars-Cov-2 foi uma grande falha do setor público, pois o papel mais importante de qualquer governo é proteger seus cidadãos de ameaças à sua vida e integridade física.

Os EUA já deveriam estar em alerta, afinal, a pandemia de covid-19 foi a terceira explosão de um coronavírus no século 21, depois da Sars (2003) e da Mers (2012) – sem mencionar a H1N1 (2009), o ebola (2014) e o zika (2016). Desde 2010, o orçamento do Centre for Disease Control só diminuiu – ou permaneceu estável, a depender da fonte.

O país estava tão dominado pelo mundo paralelo de Donald Trump que perdeu a capacidade de se concentrar em perigos mais importantes e reais. E, quando o vírus atacou, Washington havia perdido a capacidade de aprender – não só em comparação com os governos asiáticos, mas também com o próprio setor privado dos EUA.

O CEO de um dos maiores empregadores do país admite que, no início de 2020, também subestimou a covid-19, considerando-a um “fenômeno do leste asiático”. Mas, em fevereiro, quando ficou óbvio que o vírus se espalhava pelo mundo, ele e sua equipe estudaram como outros países estavam lidando com o problema. O executivo ainda se irrita por não ter agido rápido o bastante e tenta comparar seu desempenho com o de colegas, mas diz que ficou atônito ao ver que os funcionários públicos americanos sequer telefonavam para descobrir que medidas estavam funcionando na Ásia.

É hora de reformular o sistema de saúde, com o objetivo de torná-lo mais barato e justo. Em vez de criar um estoque central de suprimentos médicos, uma possibilidade é copiar o sistema suíço, mais barato e flexível, no qual cada empregador é responsável pela atualização de equipamentos de proteção para seus trabalhadores. Ser membro da Organização Mundial da Saúde, porque uma pandemia é um problema global: não trabalhar com outros países tem consequências políticas e custa vidas, além de dinheiro.

## Proteger e unir
O assassinato de George Floyd mostra como um país pode fazer mal a seus cidadãos. Os avisos sobre vírus que atingiriam os EUA eram abstratos e esporádicos. Os avisos sobre policiamento racista eram reais e constantes. Quase 30 anos após o espancamento de Rodney King em Los Angeles, os negros ainda têm três vezes mais probabilidade do que os brancos de serem mortos pela polícia.

Dois problemas constitucionais atrapalham a reforma da polícia nos EUA: o primeiro é que o policiamento é, em sua maioria, local. Há mais de 18 mil agências policiais no país e, em grandes cidades como Los Angeles, várias forças se sobrepõem. O segundo, que a Segunda Emenda garante que os cidadãos possam andar armados – e as armas matam 40 mil pessoas por ano. No curto prazo, deveria ser feito o possível para desarmar os cidadãos e reforçar a checagem de antecedentes. O programa do Pentágono que distribui seu excedente de armas para a polícia deveria ser cancelado.

E os maus policiais tinham de ser demitidos. Quando se trata de racismo e violência, oficiais armados deveriam seguir padrões mais altos do que a população como um todo. Os EUA deveriam formar melhor seus policiais, para que não pudessem usar força letal com apenas 300 horas de treinamento, e dar a eles cursos de gestão de conflitos para reduzir a violência.

Mais amplamente, o escopo do trabalho precisa ser redefinido. A polícia é um exemplo clássico de Estado sobrecarregado, com os oficiais tendo de lidar com problemas como saúde mental, ruptura familiar e delinquência juvenil. A polícia precisa ser descontruída, com certas funções entregues a assistentes sociais treinados – e desarmados.

A reforma policial por si só não corrigirá o sistema que matou George Floyd. A criação de comissões para discutir problemas sociais e a justiça criminal também deveria ser considerada, pois a taxa total de encarceramento nos EUA é quase o dobro da turca, a mais alta da Europa, e oito vezes a de Escandinávia, Holanda e Irlanda. Há mais negros do que brancos nas prisões, embora eles representem apenas um sexto da população.

Outras comissões analisariam a pobreza. Os negros americanos recebem o pior do Estado: maternidade mal assistida, péssima educação pré-escolar, escolas precárias, universidades caras, remuneração zero em caso de doença e um sistema de saúde projetado para gente rica.

Corrigir esses erros envolve mais gastos públicos, mas mais verba deveria ser condicionada à aceitação da reforma pelos lobbies dos produtores e pelo sindicato dos professores. O relativo sucesso das charter schools, escolas mantidas com verba pública e gestão privada, e dos programas de vouchers proporcionaria aos negros mais controle sobre a própria vida.

## Deixar de subsidiar ricos e idosos
Em 1935, Franklin Delano Roosevelt criou um programa de pensão estatal para garantir a seguridade social a todos. Mas o maior perigo de qualquer rede de seguridade é esticá-la demais. Os pobres dos EUA recebem menos do que precisam porque os principais benefícios sociais são universais. Uma avaliação dos rendimentos dos pensionistas e a elevação da idade de aposentadoria para 70 anos ajudaria a equilibrar o orçamento.

Essa é uma decisão política explosiva. Mas, de novo, basta criar uma comissão independente encarregada de reformar o sistema de benefícios. A Suécia fez isso nos anos 1990 para equilibrar seu sistema. Os suecos ainda recebem pensão do Estado, mas o valor não aumenta de modo automático, está atrelado à capacidade de pagamento do país.

Decisão radical demais para os EUA? Este é o país que criou um banco central independente em 1913 para não repetir a crise dos anos 1890, quando a bolsa quase quebrou e o tesouro quase faliu. O poder dado ao banco central reduziu a inflação – e salvou os políticos de tomar decisões impopulares. Fazer o mesmo com os benefícios tem sentido.

## Um sistema de saúde mais justo
O sistema de saúde americano é caríssimo. A pandemia deu um argumento convincente para uma reforma radical dele, tanto para remover a principal fonte de insegurança para os pobres, como para economizar. O atual sistema, com subsídios ocultos, complicadas exigências e incentivos descabidos, faz com que os EUA gastem cerca de 18% do PIB em saúde, enquanto deixa sem atendimento uma em cada cinco pessoas não idosas. E não importa o quanto a indústria da saúde e os republicanos gritem contra a medicina socializada, não há nada de “mercado livre” num sistema que gasta proporcionalmente mais dinheiro público em saúde do que a Suécia “socialista”.

Uma solução seria expandir o Medicare, sistema público para idosos, para que também cobrisse os mais jovens. Isso aumentaria os custos, mas o modelo alemão poderia ser seguido: nele, o seguro saúde é obrigatório, com 90% das pessoas utilizando seguro público subsidiado e as 10% mais ricas usando seguro privado. O prazo para atendimento das pessoas é rápido; com mais de uma centena de fundos a escolher, contudo, a Alemanha tem algumas das complexidades que atormentam os EUA.

Empresas farmacêuticas e seguradoras têm trabalhado para convencer os americanos de que sistemas de pagamento único, como o do Canadá, no qual o Estado paga a conta, implicam longa espera nos hospitais. Porém, ter um único pagador com taxas fixas para os procedimentos evita burocracias para seguradoras, pacientes e hospitais. Os custos administrativos dos EUA são quase o dobro do dos canadenses. Além disso, no Canadá o poder de barganha sobre as empresas farmacêuticas é maior, então lá os remédios são mais baratos.

Já em Singapura, o Central Provident Fund torna as pessoas mais responsáveis pela própria saúde. E exige que os usuários paguem uma pequena taxa quando vão ao médico, a fim de desencorajar as visitas desnecessárias que afligem sistemas como o National Health System, da Grã-Bretanha.

Um sistema de saúde melhor combinaria três características. Cada cidadão teria um certo padrão de saúde gratuito, pago pelo governo, mas fornecido por hospitais públicos e privados. Haveria um imposto de saúde para que cada americano pudesse ver na sua declaração de renda o quanto o sistema público custa em seu bolso. Haveria um imposto-saúde obrigatório e o seguro-saúde privado continuaria subsidiado, pois alguns gastos privados economizam dinheiro estatal. Haveria incentivos para quem cuidasse da saúde e tomasse vacinas. Como em alguns países, o açúcar e o fast-food teriam taxação maior, para reduzir obesidade e diabetes. A medicina privada sobreviveria mesmo assim.

## Liberar a tecnologia
A liderança tecnológica dos EUA sobre a China talvez seja seu ativo mais importante. Porém, pouco dessa inventividade é aplicada no setor público. Que chance havia de combater a covid-19 quando cerca de 40% dos sistemas de TI do Department of Health and Human Services são obsoletos e não têm mais suporte dos fabricantes?

Os governos asiáticos levam vantagem sobre os EUA ao usar a internet das coisas para monitorar infraestruturas inteligentes. Em Singapura, as tubulações de água informam às autoridades se há vazamentos, e os postes de iluminação coletam dados sobre temperatura, umidade do ar e fluxo de tráfego.

Alguns estados americanos comunicam-se bem com os cidadãos por meio de celulares e aplicativos; mas, de novo, a covid-19 mostrou o quanto a Ásia Oriental está na frente. Em Xangai, cada vagão de metrô tem um QR code ou código de barras próprio, que você escaneia ao entrar; assim, se um dos passageiros adoece, apenas as pessoas que viajaram naquele vagão são contactadas. Há preocupação com a privacidade, sim, mas a maior barreira para que isso ocorra nos Estados Unidos é tecnológica: o metrô de Nova York só passou a receber pagamento sem dinheiro, ao estilo asiático, em 2019. E, falando em sistemas desse tipo, a China está criando infraestrutura para uma moeda digital que algumas pessoas acreditam que pode desbancar o dólar.

Os EUA têm limitado sua infraestrutura de alta tecnologia porque os benefícios estatais absorvem dinheiro demais. O orçamento tecnológico é consumido pelo custo do suporte a sistemas antigos, já que ninguém teve coragem de pagar pela atualização deles. O passado americano deveria inspirar o presente. Roosevelt construiu represas. Eisenhower construiu autoestradas. Os EUA atuais deveriam aproveitar o fato de poderem pegar dinheiro emprestado a juros baixíssimos para construir a infraestrutura que a economia do conhecimento necessita. Isso inclui internet subsidiada, mas também atualização tecnológica em geral.

## Revigorar talentos
Reformas governamentais devem incluir a melhora da qualidade dos funcionários do setor público, considerando a meritocracia e realizando concursos.
Além disso, seria necessário reduzir maciçamente as nomeações políticas. Em vez de “vender” embaixadas, entregá-las a diplomatas. Pagar aos chefes de departamentos do governo o mesmo que o setor privado paga, e impor-lhes limites quanto ao que podem fazer após o serviço público. Fazer como em Singapura: pagar integralmente bolsas de estudo para estudantes pobres em universidades de elite; em troca, eles trabalhariam por, digamos, cinco anos no setor público.

É POSSÍVEL APLICAR ESSAS MESMAS REFORMAS EM QUALQUER CAPITAL OCIDENTAL, obtendo melhoras por meio da modernização pragmática. Pode-se chegar longe assim, ainda mais porque a covid-19 nos dá uma chance de repensar nossos sistemas – algo que não acontecia há décadas.

© Rotman Management
Editado com autorização da Rotman School of Management, ligada à University of Toronto. Todos os direitos reservados.

O que o mundo vê como benchmark

O SUS, sistema de saúde brasileiro, é universal, gratuito e 75% da população depende apenas dele. E custa relativamente pouco

Até o fim da década de 1980, trabalhadores rurais, aposentados, indígenas, quilombolas, caiçaras, desempregados e pessoas com deficiência não tinham acesso à saúde pública e gratuita. Eram chamados de indigentes. Em caso de necessidade extrema, procuravam Santas Casas de Misericórdia ou faculdades de medicina para um atendimento humanitário. Naquela ocasião, o direito à saúde pública era restrito aos trabalhadores com carteira assinada que podiam contar com o Inamps.

Com a redemocratização, ganhou força o Movimento Sanitário que reivindicava a saúde como direito, com garantia de atendimento universal e gratuito para todas as pessoas em território brasileiro. A demanda foi incorporada à Constituição de 1988, e em 1990 surgiu o SUS, com a Lei nº 8.080. E com ele uma das mais arrojadas e bem-sucedidas políticas públicas do mundo.

O projeto era ambicioso: atendimento integral, incluindo prevenção, proteção, promoção, recuperação e reabilitação da saúde em um país continental e com a sexta maior população do mundo. Além do Brasil, Canadá, Dinamarca, Suécia, Espanha, Portugal, Cuba e Reino Unido são países com sistemas públicos de saúde e pretensões semelhantes, mas com desafios muito diferentes. Seja no tamanho do território, o que traz dificuldades logísticas, seja no perfil populacional.

O Sistem Único de Saúde (SUS) nasceu com a missão não só de cuidar do maior contingente humano em um projeto de saúde pública do mundo; tem de cuidar de um contingente empobrecido, adoecido, sem saneamento básico, sem dentes, mal alimentado. A mortalidade infantil era muito alta, causada em geral por doenças evitáveis e desnutrição. Com vários indicadores preocupantes e sem previsão orçamentária inicial, o SUS era mais um projeto que não daria certo aos olhos dos críticos. Porém, com sorte e perseverança, é realidade.

Hoje, 75% da população brasileira depende exclusivamente do SUS para qualquer atendimento à saúde. São consultas, exames, remédios, tratamento odontológico, órteses, próteses, cirurgias, reabilitação, transplantes, prontos-socorros, atendimento emergencial pelas ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), saúde mental, tratamentos integrais para HIV (incluindo profilaxias pré e pós-exposição ao vírus), unidades especializadas em hepatite e infecções sexualmente transmissíveis (IST), planejamento familiar, preservativos, vacinação, acompanhamentos de pré-natal e do desenvolvimento infantil, remédios de alto custo e atendimento a doenças raras.

A cobertura do SUS é maior do que a de qualquer plano de saúde, uma vez que é irrestrita. Não se limita a um rol de procedimentos, nem restringe atendimentos por carência ou doença preexistente. Desde que o tratamento seja reconhecido como eficaz, qualquer cidadão pode ter acesso a ele pelo SUS por meio de requisição judicial, caso não esteja ainda incorporado na rotina de atendimento.

Além do atendimento individual, o SUS também é responsável pela fiscalização de todos os estabelecimentos de saúde (públicos ou privados) por meio da vigilância sanitária. Responde ainda, e de modo exclusivo, pela gestão dos hemoderivados e dos transplantes. Cuida do monitoramento epidemiológico em todo o País, controle de portos e aeroportos, fiscalização de restaurantes, açougues, mercados, abatedouros.

Ainda que longe de ser um sistema perfeito, é preciso reconhecer que são grandes feitos para um projeto que tem pouco mais de 30 anos.

Hoje o maior desafio do sistema é seu financiamento insuficiente. O orçamento do SUS para 2021 foi de R$ 125 bilhões, o que significa R$1,70 (sim, você leu certo: um real e setenta centavos) por dia por habitante para oferecer todo o serviço que você acabou de ler. Seiscentos reais por ano por habitante.

Daí o esforço para revogar a emenda constitucional 95, de 2016, que congelou as verbas de saúde e educação até 2036. Precisamos de um povo saudável para enfrentar os desafios que aguardam nosso País.

Raquel Marques é sanitarista, presidente da Associação Artemis e codeputada no mandato coletivo da Bancada Ativista.

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