Entrevista – Planejamento Estratégico

É preciso acabar com a miopia digital

Mohan Subramaniam, professor de estratégia e transformação digital do IMD, tem sugestões do que se pode fazer em relação à “miopia digital”
__Martin Reeves__ é diretor global do Bruce Henderson Institute, o think tank do Boston Consulting Group (BCG) dedicado a gerar novas ideias em estratégia e gestão para a empresa. Sócio do BCG desde 2008, é especialista em estratégia e coautor do livro Your Strategy Needs a Strategy.

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### Você fala em seu livro sobre a miopia digital das empresas estabelecidas. O que é isso?
A miopia digital se refere à incapacidade que muitas empresas têm hoje em dia de visualizar as possibilidades de valor que as modernas tecnologias digitais podem oferecer. A causa, acredito, é a nossa longa dependência de premissas predominantes para a estratégia competitiva, tal como “todas as nossas receitas têm que vir de nossos produtos ou serviços”. Tais premissas são importantes, mas não são suficientes, porque, hoje, receitas podem vir de dados, não só de produtos. O escopo do negócio pode ser expandido por meio de ecossistemas digitais – são eles, e não as indústrias, que amplificam o valor dos dados. A miopia vem da incapacidade das empresas de expandir sua visão de produtos, cadeias de valor e indústrias.

### Seu livro explora os fatores de sucesso das gigantes da tecnologia e dá muita ênfase aos dados e ecossistemas como sendo elementos centrais que definem o digital. Por quê?
Se a competição for principalmente em termos de produtos, então o ambiente de negócios das indústrias faz sentido. Mas se você olhar para esses gigantes, eles geram valor não a partir de produtos, mas de dados. Para competir com eles, as indústrias não são suficientes. Você tem que pensar no seu ambiente de negócios como ecossistemas digitais. Para empresas que existem há muito tempo e têm um grande legado por trás delas, isso é novo.

### Em geral, as empresas nativas digitais estão se concentrando em dados e ecossistemas. E quanto às estabelecidas sobreviventes? Como estão garantindo sua continuidade?
Não estava muito claro nem mesmo para elas – e também não chegaram aonde estão em um dia. Demorou. Por anos todos nos perguntamos sobre quando o Facebook iria monetizar. Agora, as empresas estabelecidas não precisam passar por esse processo de aprendizado. Podem aprender com as companhias tech mais bem-sucedidas. A questão agora é encontrar maneiras pelas quais elas possam aplicar isso.

#### Você distingue dois tipos de ecossistema digital: um de produção e um de consumo. Qual é a diferença?
Ecossistemas digitais são uma rede receptora e geradora de dados. Todos nós estamos familiarizados com isso de alguma forma, porque usamos nossos celulares. A questão para as empresas tradicionais é que elas são negócios baseados na cadeia de valor. Os ecossistemas digitais delas precisam ser diferentes. É aí que entra o ecossistema de consumo-produção. Se você olhar para as companhias de produtos, muitas delas têm redes enormes e intrincadas de uma variedade de atividades diferentes, desde fornecedores até pontos de venda. Se você pensar nessa rede como uma receptora-geradora de dados, isso se torna o que eu chamo de ecossistema de produção. São os ecossistemas digitais nos quais uma empresa pode produzir e vender. Esses ecossistemas começaram há algum tempo com a TI, em que muitas das atividades foram digitalizadas, seja para fins de automação ou eficiência. Se você trouxer tecnologias digitais modernas para essa rede, poderá obter muito mais do que somente eficiência operacional. Se um motor de aeronave é capaz de gerar novas receitas dizendo aos pilotos como pilotar aviões e reduzir seus custos de combustível, isso é dinheiro proveniente de dados, que vai além do que o produto oferecia.

Os ecossistemas de consumo são diferentes. A maioria dos produtos tem complementos. Os carros precisam de estradas, postos de gasolina. Lâmpadas precisam de tomadas, fiação e eletricidade. Mas as empresas nunca se importaram com esses adendos, porque eles não geravam nenhum negócio. Você não encontrará uma empresa de lâmpadas no negócio de eletricidade. Mas, com a internet das coisas, muitos desses itens podem ser conectados. É o ecossistema de consumo.

### Será que a maneira mais inteligente de competir com nativas digitais é adotar a receita delas nos negócios?
Isso não é muito viável hoje. Mas a boa notícia é que, se uma empresa convencional constrói um ecossistema digital, ela não precisa necessariamente competir com os titãs digitais. E quanto a ser híbrido? A Amazon está fazendo incursões em supermercados. Mas a grande maioria das empresas pode construir seus ecossistemas digitais para expandir o próprio escopo, sem precisar necessariamente cruzar o caminho com os gigantes da tecnologia. Você já deve ter ouvido falar da Lululemon, que fabrica roupas esportivas para ioga. Sua mais nova aquisição é a Mirror, uma plataforma interativa de treinos. É um complemento que abre um novo caminho para as receitas. Se você o vir como parte do ecossistema de consumo, verá mais e mais possibilidades surgindo e começa a se comportar como uma plataforma digital. Você não precisa competir com as Amazons da vida, você ainda está em um ecossistema de consumo, baseado no seu modelo de negócios.

### Quais os limites naturais da concorrência para um negócio não digital?
Quem chamamos de concorrente? Quem tem produtos semelhantes. No mundo de dados e ecossistemas digitais, os concorrentes podem ser os que têm acesso a dados semelhantes.

### Uma empresa convencional, no mundo digital, compete não apenas com seus concorrentes, mas com aqueles que dispõem dos mesmos dados. Digamos que uma empresa de escovas de dentes inteligentes decide ficar dentro do seu ecossistema de produção, com seu produto de prever cáries. O que acontece se um concorrente oferecer isso e mais uma rede de dentistas e companhias de seguros conectada ao usuário?
Isso é ecossistema de consumo. Se seus concorrentes começarem a ir para o outro espaço, ou você estiver encontrando novos concorrentes chegando em seu espaço, precisa tomar cuidado. Eles podem até entrar no espaço do ecossistema de consumo, mas podem contratar fabricantes de escovas de dentes e, em seguida, começar a entrar no espaço do ecossistema de produção. Em todo caso, se você ficar dentro dos limites da indústria, não poderá ver esse jogo se desenrolar

### Estamos vendo um abalo no setor de tecnologia. Talvez essas mudanças afetem os ecossistemas de consumo – vamos ver menos disso porque não podemos suportar os incríveis investimentos que isso exige?
Sim. Com uma ressalva: em certos setores, se você não se concentrar nos ecossistemas de consumo, poderá ter problemas, uma vez que o valor que os dados fornecem se moverá para esse ecossistema. Se os carros sem motorista se tornarem padrão, não é exagero pensar que haveria plataformas gerenciando passeios. Isso são ecossistemas de consumo. Uma empresa automobilística que não se interessar por isso pode até não desaparecer, mas pode ser “comoditizada” – o Google pode chegar e pegar suas fábricas. O valor está nos dados, não no produto, por assim dizer.

Por quanto tempo você vai continuar desenvolvendo novo produtos? Por que você não pensa em um caminho novo? É o que os dados fornecem.

*© BCG Henderson Institute
Editado com autorização do BCG Henderson Institute. Todos os direitos reservados.*

Artigo publicado na HSM Management nº 155

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