Eles não param. Ricardo Vargas está estudando a inteligência artificial. Ele, que é um dos maiores experts em gerenciamento de projetos no Brasil, está convencido de que pessoas que tratam essa atividade como fazer relatório e atualizar cronograma – ainda são muitas – estão condenadas ao desemprego, porque as máquinas vão fazer isso. A seu ver, o foco de qualquer profissional só pode ser na habilidade cognitiva humana – a capacidade de olhar um problema de diferentes ângulos e perceber qual a melhor forma de resolvê-lo. Michelle Sampaio, diretora e sócia da Deloitte Brasil, e também uma referência na área, é uma leitora voraz de livros técnicos, de soft skills e de ficção – agora está lendo 1984, de George Orwell. Vargas e Sampaio são role models de gestores de projeto.
__HSM Management__ fez as mesmas perguntas aos dois – a maioria delas vindas de leitores –, separadamente, em busca do pensamento de vanguarda na área.
### O que tem mudado na gestão de projetos neste mundo cada vez mais VUCA?
__Ricardo Vargas:__ Percebo que esse conceito de planejar, com as coisas estabilizadas antes de executar, não existe mais, porque nesse ambiente VUCA a mudança e a nossa adaptabilidade à mudança é basicamente um fator central da gestão de projetos. Ela deixa de ser “planeja, executa e controla” para algo como “adapta, implementa, adapta, implementa”. É outra dinâmica. Isso exige outro tipo de preparo mental, de habilidade, de pensamento sistêmico vindo do gestor de projetos que é muito diferente daquele tradicional.
__Michelle Sampaio:__ A gestão de projetos tradicional não acaba; certas coisas precisam ser feitas sob um ponto de vista tradicional. Mas o mundo VUCA trouxe o ágil como tendência. O ágil muda o modo como uma empresa se locomove do ponto A ao B, para atender ao anseio do cliente, entregando valor num tempo mais curto. Com a lógica ágil, primeiro se faz um skate. Depois, tendo mais prazo, faz um carro. Se houver mais prazo ainda, faz um avião, um foguete…
### Todos sabem o que é gestão de projeto?
__Sampaio:__ Uns dez anos atrás, algumas áreas mais relacionadas ao administrativo não sabiam a diferença entre gestão de projetos e o que era rotina. Hoje, todo mundo está ciente da diferença, por causa da tecnologia – toda empresa é uma empresa de tecnologia. E tecnologia é o berço do ágil. Ótimo. O que existe ainda é uma dificuldade de entender os diferentes métodos, entender o que eu tenho e o que me atende. Nem todos conseguem fazer essa cola.
__Vargas:__ Falando da forma o mais holística possível, todo tipo de esforço que se faz para transformar uma ideia em realidade, em algo concreto e tangível, passa pela gestão de projetos. Tudo que não é rotina, ou seja, tudo que não fazemos várias vezes até atingir a excelência, é projeto. O desafio existe porque nós somos criados e educados para a rotina, para repetir, padronizar.
### Falando de desafios da gestão de projetos no brasil, quais são os principais?
__Vargas:__ No topo do ranking está a habilidade humana de lidar com as instabilidades. Temos a visão de estar sempre querendo lidar em um ambiente estável. Então, quando os imprevistos aparecem e as coisas se complicam, o gestor precisa se superar para fazer o que deve – e entender de uma forma holística como tudo se conecta. Todos os demais desafios são, digamos, spin-off desse primeiro: a imprevisibilidade financeira, o risco etc. Hoje, passo a maior parte do tempo voltado a criar um pensamento sistêmico. Desenvolver esse pensamento sistêmico é um grande desafio.
__Sampaio:__ É a comunicação. Para todo o resto, temos métodos. Os executivos devem gastar uns 80% do seu tempo focando comunicação. A comunicação é algo intrínseco da pessoa e, sobretudo nesse momento de pandemia, com o trabalho remoto, há o conflito de comunicação síncrona e assíncrona. É muita mensagem de um lado para o outro, uma profusão de informações, muitas vezes uma comunicação malfeita.
### Qual a melhor forma de fazer a comunicação com as partes interessadas?
__Vargas:__ Devemos usar diferentes meios de comunicação, diferentes abordagens, para validar o entendimento. Não basta somente mandar um e-mail para os stakeholders avisando que algo vai acontecer no seu projeto, ou fazer um relatório e botar na parede. Tem que usar uma alternância de meios de linguagem, e esta é diferente para falar com o executivo da empresa, com o fornecedor ou com um órgão público. É preciso criar uma cadeia de comunicação: liga, conversa, explica de um jeito, explica de outro, muda o sentido…
__Sampaio:__ A comunicação tem de fluir em todos os níveis. Essa fluidez exige, principalmente, dar a informação certa para o público certo (e não a errada ao errado), além de ferramentas e habilidade pessoal: as empresas dão as ferramentas, mas é o próprio profissional que tem de se autodesenvolver no dia a dia como emissor e receptor – sempre indico a leitura de artigos relacionados ao tema e a participação em grupos de discussão, e também alguns dos milhares de cursos disponíveis. Vejo o gerente de projetos hoje como grande maestro dessa orquestra de comunicação. Antes, ele era mais controlador.
### É possível falar de prazo e escopo num ambiente de incertezas constantes?
__Vargas:__ Sim, é possível, mas é preciso transformar prazo e escopo não em um ponto, mas em uma faixa. Uma coisa é eu falar que vou te entregar em 14 dias, outra que a entrega será entre 10 e 20 dias. Quanto ao escopo, ele deve ser básico e, se der, vamos fazer mais isso e mais aquilo… É uma faixa, não mais uma caixa fechada. Para definir a faixa, podemos fazer uma análise de três pontos, uma simulação, para obter cenários mais otimistas e mais pessimistas.
__Sampaio:__ Como tudo é muito incerto, às vezes começa-se um projeto sem saber aonde se quer chegar, qual a missão. No ágil, mantemos a centralidade no cliente e falamos sobre aonde queremos chegar. Então, levantamos a capacidade de fazer isso – em pessoas, recursos, conhecimentos para fazer acontecer. E a gestão disso, em parceria com o cliente, é o ponto ótimo. A equipe faz pequenas entregas, em ciclos incrementais de melhoria.
### Que elementos favorecem a formação e a gestão dos times?
__Vargas:__ Vemos as grandes organizações tentando entender o que está na cabeça dos seus colaboradores para tentar escolher quais são os projetos que os tornam mais interessados. As pessoas são como sementes. Pode pôr adubo, água, mas, se a semente é ruim, é difícil dar frutos. Se você faz tudo errado, mesmo tendo uma semente boa, também não vai colher nada. Você tem de escolher a semente boa – a pessoa que se interessa por um projeto – e estruturar um processo para manter esse interesse. O primeiro passo é reconhecer e valorizar atrelado ao resultado do projeto.
Tem que criar elementos que estimulem o time a trabalhar como um time, como um bônus financeiro por meta. Mas não é só dinheiro. Um dos segredos, tenho estudado, é associar as metas individuais das pessoas às metas dos projetos. Já percebi que quando eu tenho uma pessoa com um objetivo estratégico pessoal alinhado ao objetivo do projeto, tem-se ali uma mistura perfeita.
__Sampaio:__ Um bom gestor e um bom ambiente fazem a diferença. É preciso ter um ambiente propício para as ideias emergirem, onde as pessoas se sintam seguras para criar, errar e aprender. O gestor deve dar autonomia às pessoas, ser mentor delas e criar o ambiente propício.
### Ainda sobre pessoas, como incentivar a autonomia E A autorresponsabilidade?
__Sampaio:__ Isso acontece com o gerente mentor, e com a colaboração entre os times, um ajudando o outro, um ensinando o outro.
__Vargas:__ Em 2018, publiquei o People manifesto, onde se lê “as pessoas agem de acordo com o seu próprio interesse”. Causou polêmica. Mas, na essência, as pessoas são egoístas mesmo; até o ato de ajudar o outro é um ato em defesa do seu próprio interesse. Por exemplo, estava trabalhando numa empresa de sucesso e larguei tudo para ficar cinco anos na ONU [Organização das Nações Unidas] ganhando 90% a menos do que ganhava, porque era aquilo que me interessava.
Admitindo esse “egoísmo”, fica mais fácil responder à pergunta: o gestor tem que acionar o que é de interesse das pessoas, com o intuito de que desenvolvam mentalidade de fundador. Há um livro maravilhoso sobre isso: A mentalidade do fundador [de James Allen e Chris Zook]. Se eu tenho essa mentalidade e o projeto dá errado, o problema não é da empresa, mas meu.
### A gestão de risco é um dos desafios. o que vocês recomendam fazer para vencê-lo?
__Sampaio:__ Vem emergindo uma ideia de ressignificar o que é a gestão de riscos, porque vemos que precisamos ser mais eficientes nesse tema. Metodologicamente, a gestão de riscos traz algumas práticas que não necessariamente dão resultado no curto prazo. Então, é algo que precisa ser otimizado. Otimizar significa olhar onde os maiores riscos acontecem, em que atividades, e gerenciá-los. Não é só dizer que os riscos existem e que há um plano para mitigá-los, que é o que vemos na maioria das empresas; é gerenciá-los.
__Vargas:__ Risco costuma ser interpretado pelos gestores como incerteza, como não saber a maneira de seguir. Minha recomendação é ter pensamento sistêmico. O último PMBOK falou demais sobre o pensamento sistêmico ser a melhor forma de mitigar risco. Sem ele, na maior parte das vezes, um risco não é um risco; já é um problema instalado. É muito comum um gestor só olhar para dentro do ambiente de projeto, sem levantar a cabeça para perceber o que tem em volta. Tem de ver o jogo todo.
O ágil tem uma vantagem quando lidamos com incertezas. É um modelo em que nada é definitivo. Nele, você aprende e reage, aprende e reage. Agora, não pode ser usado sempre. Não posso fazer um processo ágil de tentativa e erro numa usina nuclear: “Vamos ligar e ver se funciona e, se não funcionar, a gente desliga”.
### Controle financeiro é fator-chave. Quais as melhores práticas?
__Vargas:__ Você faz o orçamento baseado na cadeia de valor que está produzindo para o seu cliente, e não nos insumos. Precisa ver quais benefícios serão produzidos, ou quanto vai faturar mais, ou quantos views a mais vai gerar, ou quanto será reduzido de erros, o que for. E o controle é perguntar: se tinha de aumentar
views em 10% e aumentou zero, deve continuar?
__Sampaio:__ Tem que colocar dinheiro onde você vê que está entregando valor para o cliente final (o modelo de startups é diferente; vê-se depois). No atual cenário, ver e tomar a decisão ocorre cada vez mais rápido. Antes, era um ciclo anual; hoje já temos as empresas fazendo a revisão e decidindo se suspende ou continua trimestralmente. Se vejo que o projeto não vai dar o resultado esperado, transfiro o dinheiro para outro projeto, seja uma gestão de projetos tradicional ou ágil. A diferença é que na ágil é mais rápido checar e realocar o investimento.
### Quais as melhores práticas de governança e compliance na gestão de projetos?
__Vargas:__ Compliance fica mais importante quando você começa a utilizar mecanismos mais ágeis. Tem menos foco no planejamento, mais foco nessas execuções sucessivas, existe mais margem para que ações não éticas ou ilegais tomem lugar, porque você documenta menos e tem uma turbulência maior. Como prática, recomendo ter um grupo maduro, desenvolvido e responsável, e um compliance que faz a supervisão disso. Eu dou liberdade extrema para as minhas equipes, não supervisiono dia a dia, mas, se pisar na bola, a punição vai ser na mesma proporção da liberdade dada.
__Sampaio:__ O ágil precisa ter governança e compliance embarcadas. Tem até slogan em inglês para isso: “agile not fragile” (ágil, não frágil). Fala-se de compliance ágil, inclusive, de não vir só no final do processo, mas que faça parte de todo o desenvolvimento – garantindo que o projeto, ao ser entregue, esteja em conformidade com as normas. O compliance, principalmente para projetos afetados por regulação, tem que andar com a gestão automaticamente. E, quando se fala de governança, a gestão de projetos e de portfólios deve ser integrada na governança da empresa.
__Vargas:__ Quase não existe agenda de governança de empresa que não seja por projeto. A maior parte dos compromissos ESG, por exemplo, passa, direta ou indiretamente, por projetos. Tanto que, hoje, 70% ou 80% do meu contato é com C-level. Porque eles começaram a pensar no seguinte: se eu não me preocupar com projeto, não sai nada lá do outro lado. Antes se pensava que tudo ficava lá no porão do gerenciamento de projetos; hoje está distribuído; é infinitamente mais complexo.
### Como fazer o match de abordagem e projeto?
__Sampaio:__ Eu brinco que já nasci agilista, uso a filosofia até na minha vida pessoal, mas é importante para um gerente de projeto de sucesso saber navegar nos dois ambientes. Na mesma empresa, você vai ver projetos repetitivos com método tradicional e outros, de inovação, com ágil. Além disso há adaptações, até quando o método é apropriado. Eu digo que chegamos no cliente com uma caixinha de ferramentas. Vamos tirando as ferramentas da caixinha juntando isso e aquilo, o que for preciso para entregar valor para o cliente.
__Vargas:__ Imagina eu falar hoje que quero mudar a urna eletrônica brasileira, já pensou na complexidade disso? Em geral, como projeto complexo, a mudança deveria seguir o método preditivo. A escolha da abordagem tem a ver com a complexidade do projeto e a dificuldade de mudá-lo. Em geral, se você conhece bem o produto que quer desenvolver, isso te joga um pouco mais para o preditivo. E, se conhece mal, para o ágil. Não foi à toa que o ágil cresceu; cada vez mais temos menos certeza de qual é a direção. Quanto mais difícil mudar – por exemplo, quando mudanças são caríssimas –, mais eu vou para o preditivo. Por exemplo, estou construindo um aeroporto e preciso mudar a pista de lugar; essa mudança vai custar US$ 500 milhões.
### Por fim, como se manter atualizado?
__Sampaio:__ Sou lifelong learner na veia, procuro fazer um mix de conteúdo de soft skills e de conhecimento técnico. Faço uma listinha de coisas a aprender e vou ticando. Na minha lista de leitura, também incluo ficção.
Como dica, principalmente para iniciantes sem muitos recursos, digo que tem muita coisa legal na internet, como resumos escritos ou audiobooks, dependendo de como cada um aprende mais. Começando por essas pílulas, todo mundo encontra um assunto que considera que vale a pena a progressão.
__Vargas:__ Atuo na área há 25 anos, e a única coisa que eu mantenho é o nome. Sou uma pessoa completamente diferente. Continuo apaixonado por projetos, e gasto 10% do meu tempo e 10% do meu dinheiro, todo ano, em desenvolvimento pessoal. Acordo todos os dias como se eu fosse um estagiário que vai passar o dia aprendendo. Agora tenho estudado muito inteligência artificial.