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Empresas devem tirar o futuro do papel

Existe ainda uma grande distância entre as tendências do mundo do trabalho e a realidade praticada pelas empresas. Saiba por que isso ocorre e como fazer com que o futuro – de fato – aconteça
Jornalista, com MBA em Recursos Humanos, acumula mais de 20 anos de experiência profissional. Trabalhou na Editora Abril por 15 anos, nas revistas Exame, Você S/A e Você RH. Ingressou no Great Place to Work em 2016 e, desde Janeiro de 2023 faz parte do Ecossistema Great People, parceiro do GPTW no Brasil, como diretora de Conteúdo e Relações Institucionais. Faz palestras em todo o País, traçando análises históricas e tendências sobre a evolução nas relações de trabalho e seu impacto na gestão de pessoas. Autora dos livros: *Grandes líderes de lessoas*, *25 anos de história da gestão de pessoas* e *Negócios nas melhores empresas para trabalhar*, já visitou mais de 200 empresas analisando ambientes de trabalho.

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Durante um almoço no início de 2010, o presidente de uma gigante farmacêutica que havia acabado de assumir a operação brasileira me disse que sua empresa estava pautando todo seu planejamento não no próximo trimestre, semestre ou ano fiscal – mas em 2020. Todas as reuniões visavam a empresa dez anos na frente porque eles precisam começar a fazer as perguntas logo para obter as respostas certas. 

Ele não era (nem será) o único a fazer exercícios de longuíssimo prazo. Começamos a falar de futuro desde há muito tempo.  A preocupação com o que vai acontecer, quando vai acontecer e como vai acontecer sempre rondou as mesas corporativas. De reuniões pontuais a semanas em um hotel para “desenhar o futuro”, todo executivo já sentiu o que é passar parte do seu tempo idealizando o impacto do novo no seu negócio atual e fazendo lista de prioridades de ações. Doze meses depois, porém, ele está se matando para apagar os últimos incêndios, bater suas metas e garantir o presente – sem tempo de pensar no futuro. 

Essa é realidade de boa parte das empresas no Brasil quando falamos sobre futuro do trabalho. Numa recente pesquisa realizada pelo Great Place to Work Brasil em parceria com a Cia. de Talentos, com 246 empresas, descobrimos que há um gap enorme entre as teorias sobre o futuro do trabalho e a realidade das organizações. Percebemos que mesmo as empresas mais novas e mais enxutas – portanto, que têm um perfil mais dinâmico e menos hierárquico – se acomodam às velhas práticas de gestão de pessoas e repetem modelos antigos que inspiram segurança. Isso significa que, por mais que leiamos, saibamos e até nos planejemos sobre as novas formas de trabalhar – aqueles temas sobre flexibilizar jornada, derrubar paredes, diminuir distâncias, promover a diversidade, praticar a inclusão e por aí vai –, seguimos ainda a velha cartilha do mundo do trabalho. 

Os símbolos de poder, por exemplo, tão “mal vistos” no mundo moderno da gestão de pessoas seguem firmes e fortes. Na teoria, salas latifúndio de diretores, benefícios diferenciados da liderança e carros luxuosos não têm mais espaço no que consideramos futuro do trabalho – afinal, estamos há algum tempo prevendo empresas mais horizontais e com modelos mais democráticos de liderança. Na prática, o que provou nossa pesquisa é que esses chamados símbolos de privilégio não só existem como são desejados.  

Outro ponto que nos chamou a atenção está relacionado com o desenvolvimento das equipes. Num mundo em que a transformação digital vem derrubando funções e exigindo novas competências ligadas a soluções de problema complexos, adaptabilidade e constante aprendizado, nosso estudo mostrou que a maioria das empresas ainda está olhando para as habilidades técnicas – aquelas que a automação já está dando conta de realizar. A pensar. 

A provocação que fazemos às empresas, portanto, é: você está participando ou apenas assistindo à transformação do mundo do trabalho? 

**AS PESSOAS VÊM ANTES DA TECNOLOGIA**

A resposta certamente não está relacionada ao quão tecnológico você é ou quanto sua empresa está investindo em tecnologia. E esse talvez seja o primeiro grande erro (e um dos entraves) quando falamos de transformação digital e futuro do trabalho: pensar que tudo se resume à tecnologia. Na verdade, tudo se resume a pessoas. É por meio delas que a tal quarta revolução industrial acontece. É por meio delas que sua empresa dará o salto exponencial. É por meio delas que você terá capacidade de se tornar mais ágil. Sabe por quê? Porque se elas não quiserem, não entenderem – ou pior – temerem o novo, nada do que você planeja irá acontecer. Portanto, antes de pensar em comprar tecnologia ou criar planos para 2025, converse com as pessoas. E converse muito.     Segundo o americano Dave Ulrich, um dos maiores especialistas do mundo em recursos humanos, a regra básica é que alguém ouça uma mensagem pelo menos dez vezes para poder realmente assimilá-la. Especialmente, quando se trata de um assunto mais complexo, que gera dúvida e insegurança. 

O que seu time sabe sobre Futuro do Trabalho? Possivelmente, a parte mais sombria da história: que seus empregos estão ameaçados, que os robôs já estão dominando várias funções e que as organizações estão ficando cada vez mais enxutas, sem espaço para mais pessoas. O que você tem feito para convocá-las a esta nova etapa da sua empresa e acalmá-las em relação ao futuro? Provavelmente, não muito. É preciso – em primeiro lugar – informar seu time. Dizer que a principal função da inteligência artificial não é roubar empregos. Até porque – embora haja inúmeras pesquisas, estudos e análises com previsões pessimistas em relação à empregabilidade no futuro –, segundo especialistas no assunto, a história não é bem assim. 

Num recente artigo publicado pela revista norte-americana Time, o chinês Kai-Fu Lee, especialista em inteligência artificial e autor de “AI Superpowers: China, Silicon Valley and the New World”, disse que não devemos nos preocupar com os alertas febris de que a inteligência artificial tornará os humanos obsoletos. Segundo Lee, há dois grupos de alarmistas neste assunto: o primeiro prevê que nós seremos assimilados e evoluiremos para ciborgues humanos; o segundo, que o mundo será dominado por robôs. “Nenhum deles está mostrando muito o caminho da inteligência real. A era da inteligência artificial ou quando a IA será capaz de realizar tarefas intelectuais melhor que os humanos está muito distante. A IA requer recursos avançados, como raciocínio, aprendizado conceitual, senso comum, planejamento, criatividade e até autoconsciência e emoções, que permanecem além de nosso alcance científico. Não há caminhos de engenharia para se engajar nessas capacidades gerais. E grandes avanços não virão fácil ou rapidamente”, escreveu Lee. 

Informar devidamente seu time sobre a realidade, o impacto da inteligência artificial e quais planos sua empresa está traçando rumo a esse futuro é o primeiro passo para avançar sua agenda. O segundo é envolvê-lo de fato nessa discussão, pois outro pecado que as empresas cometem é criar silos ou departamentos responsáveis pela “virada” digital da empresa – esquecendo de envolver o restante da equipe. É importante e vital para a organização que todos saibam em que barco estão no momento e para qual direção navegam. Conhecemos companhias que colocam seus líderes e os “envolvidos diretos” para discutir a estratégia e o planejamento nas salas de hotéis e essa parte do “futuro” fica reservada a uns 30% da organização apenas. O restante fica de fora. Como você vai ganhar o jogo com menos da metade do time em campo? Impossível. 

**A ESTRATÉGIA (TAMBÉM) VEM ANTES DA TECNOLOGIA**

Recentemente Steven ZoBell, chief technology and product office da Workfront, uma empresa americana que desenvolve software de gerenciamento de projetos e de trabalho, afirmou que as empresas devem investir neste ano US$ 1,3 trilhão em iniciativas de transformação digital para aplicar recursos digitais a fim de melhorar a eficiência, aumentar o valor para o cliente e criar novas oportunidades de monetização. Segundo ele, “tragicamente” 70% dessas iniciativas não atingirão seus objetivos, o que equivale a mais de US$ 900 bilhões de desperdício. Por que isso acontece? Porque as pessoas enxergam necessidades antes mesmo de desenhar a estratégia. E esse é o segundo erro (e outro entrave) no avanço em direção ao futuro. Afinal, a tecnologia seduz e nos induz a acreditar que tiraremos soluções mágicas da cartola (ou de um novo aplicativo) a ponto de pagarmos milhões por ela. Numa metáfora bem doméstica é como comprar uma roupa nova e cara sem saber bem se você precisa dela. No fundo, você até sabe que vai ser difícil usá-la, mas e se? E aí o desperdício já aconteceu. 

Segundo Ulrich, as soluções tecnológicas são tão empolgantes que parecem ser o “fim” e não o “meio”.  Esquecemos que elas devem ser encaradas como parceiras e não a estratégia em si. “Ao entrar em uma rodovia movimentada, os carros não criam sua própria pista, mas se fundem em uma faixa existente de tráfego. Da mesma forma, as novas tecnologias geralmente não devem criar abordagens estratégicas completamente novas, mas ajudar a impulsionar as agendas estratégicas já existentes”, diz Ulrich. 

Portanto, antes de sair por aí comprando qualquer coisa, identifique qual sua estratégia de negócio. Percebemos muitas empresas afobadas, com medo de perder o timing e desesperadas com os saltos da concorrência. Na ânsia por traçar soluções, a estratégia é atropelada, as pessoas não são envolvidas e o investimento acaba indo para o lado errado. 

**ADIVINHA? CULTURA & MINDSET VÊM ANTES DA TECNOLOGIA**

Você pode até fazer seu planejamento pensando cinco a dez anos para frente. Conversar com o time, envolvê-lo e trazê-lo para dentro do plano de ação. Traçar seu plano de negócios e, de acordo com ele, adequar as novas tecnologias para apoiá-lo na transformação e facilitar seu trabalho. Mas nada vai acontecer se sua cultura e seu modelo mental não permitirem a revolução que seu planejamento (e seus negócios) pedem – especialmente quando falamos de inovar em políticas e práticas de trabalho. 

Nossa pesquisa sobre Empresas do futuro, realizada com a Cia. de Talentos, revelou não apenas que existe um gap enorme entre o que percebemos de tendência sobre futuro do trabalho e a realidade. Ela nos indicou também que adotar novos modelos, novas estruturas organizacionais e novas práticas requer, acima de tudo, mudança de comportamento. E aí não há planejamento de longo prazo ou tecnologia milagrosa que vão fazer sua empresa sair do passado. 

Se a liderança não entende que, para ser mais ágil, sua empresa deverá ser mais flexível – oferecendo novos contratos de trabalho, eliminando símbolos de privilégio, mudando a forma como seleciona –, o futuro não vai chegar nunca. E essa é a parte mais difícil de entender. Porque estamos falando da base, dos alicerces da organização. 

Preparar-se para o futuro dos negócios e do trabalho requer uma autoanálise dos seus princípios e valores. Se o novo mundo – com seus contratos de trabalho mais fluidos, menos hierárquico, mais flexibilidade, menos silos, menos paredes, menos símbolos de poder, mais inclusão, mais diversidade, mais comportamento no lugar de habilidades – não condiz com seu modelo mental, esse mundo jamais ganhará espaço na sua empresa. Mesmo que você inclua isso no seu planejamento para 2020. Será mais uma ideia fracassada que consumirá a energia do time e alguns milhões do seu cofre.

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