Sustentabilidade

Enxergue seu mercado pelos óculos das comunidades

É preciso usar a tecnologia para ir além das árvores, analisando as florestas que agora estão ditando os rumos para as marcas e, depois, respondendo a elas; as florestas são os conjuntos de consumidores hiperconectados

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Eu me formei em gestão, mas – e talvez esse também seja o seu caso – sempre quis empreender em tecnologia. Só no caminho para isso, encontrei um conceito que é ainda maior: comunidade. Creio que seja um tesouro de que a maioria dos gestores não se deu conta. Porém, para contar essa história, preciso narrar um pouco da minha busca.

Primeiro, eu trabalhava em uma consultoria de gestão, quando fundei a Samurai, uma agência de publicidade, em sociedade com meus empregadores. Fiz isso quando ninguém ainda via link entre consultoria e publicidade. Vendemos a Samurai para um grande grupo. Havia tecnologia ali, mas na essência era de prestação de serviços. Depois empreendi um e-commerce de comidas faça-você-mesmo (o Gula-lá), mas o mercado brasileiro não estava pronto para ele – e e-commerces estão mais próximos de gestão logística do que de tecnologia. Eu queria tecnologia. 

Meu sonho só começou a se materializar em janeiro de 2014, quando conheci dois rapazes da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) na Campus Party. Eles eram brilhantes; tinham feito um aplicativo que agregava e resumia notícias com inteligência artificial (IA). Eu os desafiei: Qual a distância que os estrangeiros estão de fazer o computador entender a língua portuguesa? A resposta foi: “Longe”. Então, vi que havia nesse encontro um grande futuro. 

Como um bom consultor que gosta de pesquisar, fui escanear o mercado e descobri quatro coisas. A primeira foi o início de uma corrida sobre como aproveitar o oceano de dados de consumidores, o tal “big data”. A segunda: diversos analistas (Gartner Group, IDC, Merrill-Lynch) destacavam o fato de 85% desse “oceano” serem os tais “dados não estruturados”, ou seja, um tesouro – perdido em posts, comentários, pesquisas, áudios e protocolos de contact centers, vídeos e outros formatos em texto, som e imagem – que o computador não decifraria sem a ajuda da IA. Em seguida, descobri que a chave desse tesouro estava em um importante ingrediente chamado “processamento de linguagem natural” (NLP, na sigla em inglês). E, por fim, percebi que, pelo fato de os sistemas comerciais de NLP estarem programados para o inglês, os dados não estruturados em português representavam um gigantesco problema – ou melhor, uma gigantesca oportunidade. (Hoje, um estudo da McKinsey já confirmou que eu estava certo: segundo ele, o uso da IA sobre dados não estruturados só na área de customer service traz uma oportunidade superior a US$ 500 bilhões.) 

Então, em 2014, voltei aos rapazes de Ouro Preto, Milton e Brayan (Milton Stiilpen Jr. e Brayan Neves), com várias perguntas e, algumas respostas depois, decidimos montar um negócio juntos: a Stilingue, acrônimo de “sábias tecnologias de imagem e linguagem”. Fundamos a empresa com três missões claras: inserir o Brasil no mercado mundial de inteligência artificial ao incluir o português falado aqui; ajudar a impulsionar a transformação digital das companhias brasileiras (pelo #Cia, outro acrônimo; refere-se a “Cuidar dos clientes, creators e comunidades”, a “Inteligência de dados não estruturados” e “a Agilidade”); e dar oportunidade à moçada de Ouro Preto – a cidade histórica mineira, cheia de talentos, que virou nosso quartel-general. 

Trabalhando com executivos-chefes de informação e marketing (CIOs como facilitadores em geral e CMOs como tomadores de decisão), aplicamos nossa inteligência artificial no marketing, no customer service e na comunicação corporativa. Nós a usamos para melhorar a experiência do cliente, dar mais produtividade para atendentes (com automatizações), antecipar crises e tendências, e possibilitar que diversas decisões de marketing e atendimento sejam guiadas por dados e evidências. 

Nesse mundo, percebemos que a relação das empresas com o consumidor mudou. O consumidor hoje não busca mais as marcas e sim outros consumidores. Juntos, eles formam uma comunidade poderosa, com poder para promover o sucesso ou o fiasco das marcas. Sim, chegamos às comunidades. Nelas habitam consumidores, criadores (os tais influenciadores digitais) e diversos outros personagens. É uma nova arena, uma nova dimensão na forma como formamos opiniões, compramos produtos, buscamos atendimento, damos feedbacks. 

O foco dos CMOs, portanto, deve mudar: a interação das marcas não deve apenas ser com o consumidor, mas com as comunidades – eles devem privilegiar a conexão e a integração com elas. Trata-se de um movimento de “pertencer” e não mais de “targetear”. Olhar o consumidor é olhar as árvores; a comunidade é a floresta. Isso requer um esforço para mudar a cabeça, porque associamos tecnologia ao caminho da personalização, do relacionamento one-to-one, sem dar o peso devido à importância das comunidades. 

Cada influenciador também é árvore, aliás, uma árvore da floresta comunidade. Inclusive, os influenciadores não seriam nada sem uma comunidade que os admirasse, os aplaudisse, os seguisse. Não conheço cantor que faça sucesso cantando no banheiro, sem plateia. As comunidades oferecem grandes oportunidades às marcas que genuinamente as abraçam: conferem respeito, aumentam retenção, elevam vendas e defendem quem as ataque. Do mesmo modo, as comunidades oferecem riscos às marcas que as ignoram ou as miram como um simples objeto de interesse, um “target”. Sua empresa esqueceu a comunidade? Que aceite o risco de ser esquecida por ela também. E de perder mercado para a concorrência mais disposta a criar laços com ela. 

Em relação a tudo o que falamos, há um problema: não investimos devidamente em óculos para enxergar as comunidades. Para ilustrar isso, considere uma situação de gestão de crise. Quem começa uma crise hoje é um consumidor? Ou consumidores organizados em comunidades? Quem começou a crise que parou o País no primeiro semestre foi “um caminhoneiro” ou foram “os caminhoneiros”? A polêmica em torno do pedido de desculpas do Neymar após a Copa do Mundo, patrocinado pela Gillette, foi promovida por uma pessoa ou uma comunidade? 

Achei marcante um caso que aconteceu no Canadá com o ketchup Heinz em 2016. Um post no Facebook de um usuário com somente 432 seguidores da cidade de Leamington tomou partido do ketchup concorrente French’s. E o que houve? Em apenas dois dias, 132 mil compartilhamentos e vendas triplicadas da French’s no varejo da região, acabando com seu estoque. Uma crise de anos para a Heinz Canadá. 

Esse caso seria identificado analisando-se somente os influenciadores, olhando só as “árvores”? Não. Mas como monitorar essa floresta, ou melhor, essas florestas – e antecipar a formação de movimentos contra a imagem das empresas? São centenas de milhares de comunidades de interesse por aí, dos veganos às mães blogueiras e aos economistas e fãs de Star Wars.

O CONCEITO EM PROFUNDIDADE

Antes de pensar em óculos específicos, precisamos entender que a articulação dos mercados em comunidades acontece em um nível muito profundo. E que nos traz novos problemas e dilemas com que lidar. Veja, por exemplo, a discussão das “notícias falsas”. O fenômeno “fake news” nada mais é do que uma consequência da nossa sociedade densamente conectada em rede. Notícia falsa é assunto velho, mas fake news, em toda a dimensão de seu impacto social, é novidade. É um novo problema de um mundo hiperconectado no qual o poder da informação mudou de mãos. Saiu das mãos de poucos para as de muitos. As notícias falsas de hoje também saíram da regulação dos grandes grupos de comunicação – que oferecem sistemas capazes de checar fatos e dados – para o vale de plataformas colaborativas de criação de conteúdo, com informação criada e compartilhada entre comunidades. 

Nessa “troca de poder”, há quem diga que nós – os cidadãos – ganhamos, por perdermos a velha “censura” dos grandes conglomerados. E há quem diga que empatamos, porque os algoritmos também enviesam o poder. Mas é nítido que perdemos o controle da precisão dos fatos. Pois é, tempos modernos. Benefícios modernos. Problemas modernos. 

E podemos ir muito além das fake news como sintoma da nova força das comunidades. As transformações associadas impactam diversos outros setores. A economia compartilhada tem em sua raiz essa descentralização, a Wikipedia (e Wikileaks idem), os movimentos Open Source e Creative Commons também. O blockchain não existiria se não houvesse valor no processamento descentralizado entre computadores de uma grande comunidade, essencial para sua existência. E a Europa não teria aprovado uma lei de direitos autorais com potencial para mudar a internet se essa questão não fosse tão premente. 

Em organizações empresariais, igualmente, a tensão é essa: a organização piramidal, inspirada nas forças armadas com seus comandos centralizados, clama por um novo formato, que dá mais autonomia a grupos menores interconectados. É coincidência a atual discussão sobre organogramas horizontais, em squads e cogestão em células? 

Todas as transformações sociais ao longo da história são definidas por palavras-chave. São termos que buscam concretizar em palavras o que sentimos quanto à transformação dos tempos. Estou convencido de que a transformação vivida agora (não só digital, mas socioeconômica) tem a palavra-chave “comunidade”. 

Sempre houve comunidade, você dirá, e tem razão. Mas nunca houve uma hiperconectividade social como a que vemos hoje. Blockchain, economia compartilhada ou fake news não surgem só em razão das “comunidades”, diriam alguns. Mas é fato que encontramos comunidade e descentralização de poder (ou, ao menos, poder mudando de mãos) na intersecção de todos esses assuntos. Basta ver o poder que tem quem detém os dados das comunidades – Alphabet e Facebook principalmente.

A história nos mostra que a ciência e a academia percebem os movimentos com antecedência. Eis que em 2009 a revista Science fez uma edição especial devotada ao estudo de redes, que é a base do comportamento de comunidades. A sociologia há décadas estuda “sociometria”, os “sociogramas” e a ciência de redes (ou SNA, na sigla em inglês). Nos MBAs norte-americanos, escutei que SNA já “figura na ementa”. Surpreendeu-me o fato de eu ter tomado contato com esse assunto somente em 2015. Em anos de carreira com profissionais e clientes brilhantes no Brasil, não me recordo de ter cruzado com nenhum conhecimento profundo, acadêmico e científico sobre “comunidades” e “redes” . 

Depois disso, fui a fundo. Comecei com livros do Albert-László Barabási e um curso fantástico do Matthew O. Jackson, professor de “social and economic networks” de Stanford. E quanto mais lia, mais enxergava a grande transformação – nos dias atuais e no que está por vir. 

Se o CMO precisa vender, defender a empresa, reter consumidores e não deixar a marca ser esquecida, ele precisa ter a seu lado sua comunidade – cada vez mais. E necessita dos óculos da inteligência artificial para conhecer essa comunidade e gerenciá-la melhor. A IA é, como toda tecnologia, a ferramenta (o meio), não a transformação desejada (o fim). As comunidades são o fim.

**OS ÓCULOS: WAR ROOM**

Se para trabalhar com comunidade é preciso de inteligência artificial, como se faz isso? Vou contar a receita que nós encontramos na Stilingue. Aqui criamos uma plataforma colaborativa cross-departamentos (marketing, customer service, comunicação corporativa e outros), chamada War-Room. 

É colaborativa por termos a certeza de que essa transformação não se faz em silos, e sim em times multidepartamentais. Na War-Room, aplicamos nossa IA “made in Ouro Preto” para o português brasileiro. Nossa IA resume, organiza, identifica padrões e facilita interações ao vivo sobre “zilhões” de conversas, opiniões e feedbacks de comunidades que movem marcas e mercados. Unifica dezena de canais digitais em uma fonte única de informação para decisões de negócio (imprensa, redes sociais, protocolos de contact center, CRM, surveys e outros). 

Com esse arsenal, nossos clientes corporativos cuidam melhor de suas comunidades, ganham inteligência sobre o tesouro de dados não estruturados e agem em tempo real quanto a oportunidades que nossa IA identifica juntamente com seus analistas internos. Assim, apoiamos hoje organizações como BRF, Hypera, BR Malls, Red Bull, DASA, AACD e outras . 

Toda IA hoje tem nome próprio, não é? Mas a nossa, não. Batizamos a nossa como“Energ.IA”. Não quisemos um nome humano, porque não queremos passar a mensagem de que o ser humano pode ser substituído pela tecnologia. Que fique claro: não acreditamos em robôs para ajudar as empresas a se relacionarem com as comunidades. Acreditamos no Homem de Ferro, que é uma pessoa pilotando uma armadura com tecnologia de ponta.

E, por falar em pilotar, quem seriam os pilotos dessa transformação? Mais do que um departamento – marketing, atendimento, TI ou outro qualquer –, vejo que vale discutir a função. Já existe nas empresas um cargo chamado “gestor de comunidades” (“community manager”), infelizmente ainda pouco valorizado nos desafios que o papel exige. 

Com a falta dos “óculos” de comunidade, diversas empresas tratam a função de gestão da comunidade como uma simples administradora de páginas em redes sociais. Ela não está incluída na agenda estratégica das lideranças e tampouco tem visão de carreira clara para níveis mais seniores. Isso é um desperdício e um problemão. Principalmente porque IA sozinha não resolve a transformação que temos pela frente. 

Precisamos mudar o mindset dessa função. Conheci profissionais de community management brilhantes. E tenho certeza de que, quando receberem o espaço, o respaldo e o assento que lhes cabe nas discussões estratégicas, serão os “Homens de Ferro” de que precisamos em “gestão de comunidades”. Quer entender melhor na prática o que a função deveria gerenciar? Conheça o “comunity canvas” e avalie o gap no seu caso: https://community-canvas.org/. 

Para terminar, uma breve analogia. Sabe aquele momento em que decidimos comprar um carro novo de determinado modelo e marca? Olhamos na rua e só vemos carros exatamente iguais ao que queremos comprar, não é? É que colocamos os óculos do carro novo. Faça a mesma coisa em sua empresa, e coloque os óculos de gestão de comunidades. Com tecnologia. É a tecnologia sendo usada não como fim, mas como meio, que vai transformar seu negócio.

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