Foi em uma tentativa de implantar um curso de programação no Complexo da Maré, um dos maiores agrupamentos de favelas do Rio de Janeiro, com mais de 200 mil pessoas, que o analista de sistemas Alexandre Albuquerque deparou com uma realidade que passa à margem do olhar de boa parte dos brasileiros. Embora residentes na capital, os habitantes da Maré não têm acesso a nenhuma agência bancária, casa lotérica ou caixa eletrônico para realizar suas transações financeiras. Para quitar os débitos é preciso se deslocar para outros bairros. “Ver o quanto a vida daquelas pessoas era mais difícil por conta da falta de inclusão financeira me incomodou muito”, afirma Albuquerque. “Eu estava estudando sobre o movimento das moedas virtuais e enxerguei ali uma oportunidade para desenvolver uma solução para o problema da comunidade.”
Com a ajuda de Maer Salal, engenheiro de segurança do Twitter, que passava férias no Brasil, Albuquerque desenvolveu um aplicativo por meio do qual os usuários pagam contas, transferem valores e fazem compras. A ferramenta começou a ser testada em agosto de 2016. Testes concluídos, era hora de colocar na rua. Em março de 2017, com um notebook nas mãos e uma placa onde se lia “Banco Maré, pague suas contas aqui”, ele literalmente esperou sentado durante 15 dias até que alguém se interessasse pela novidade. “Eu coloquei uma cadeira em um prédio de uma creche abandonada, onde o Correio deixava as correspondências dos moradores, e fiquei à espera de algum interessado”, lembra. “Duas semanas depois, uma senhora chamada Edna aceitou pagar uma conta. A novidade correu de boca em boca e o número de usuários foi aumentando.”
A solução proposta para a Maré usou tecnologia de blockchain e de moeda digital, batizada de Palafita. O sistema funciona por meio de app mobile com recarga feita de forma semelhante à usada nos celulares. Na média, o Banco Maré transaciona mais de R$ 2 milhões por mês com pagamento de boletos. Desde a sua criação o número de pessoas que paga contas atrasadas caiu 65%. A receita do banco vem da mensalidade cobrada pelo uso do cartão pré-pago Maré, com bandeira Mastercard, que custa R$ 10, dos percentuais sobre os boletos pagos e das transações feitas pelas maquininhas. Além da Maré, o banco já atua nas comunidades paulistas de Heliópolis e Vila Prudente, e em Arapiraca, interior de Alagoas.
O Banco Maré faz parte de um grupo de fintechs consideradas de impacto social, isto é, que aplicam alta tecnologia em soluções do setor financeiro para oferecer produtos e serviços a uma parcela da população que não é atendida pelo sistema tradicional. “Nascem com a intenção genuína de gerar resultados positivos à sociedade por meio de produtos e serviços, são concebidas para resolver um problema da sociedade”, diz Gabriela Reis, consultora de negócios de impacto social e professora convidada da Fundação Dom Cabral. “Enquanto o negócio tradicional nasce para maximizar o lucro dos acionistas, o de impacto usa o lucro como mecanismo para potencializar o seu impacto.”
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**EXPANSÃO**
Há pouco mais de três anos as fintechs de impacto social eram quase inexistentes. Hoje, já representam 10% das 504 em atividade no País, de acordo com o “Mapa de fintechs do Finnovation”. Ou das 498, no levantamento da Associação Brasileira de Startups (Abstartups). “Ainda são poucas, porém, em expansão e com grandes oportunidades de crescimento”, declara Bruno Diniz, diretor-presidente da Comissão de Fintechs da Abstartups. “Não só o Brasil, mas a América Latina como um todo tem problemas de bancarização. A concentração dos produtos e dos serviços na mão de grandes operadores deixa à margem uma parcela muito significativa da população.”
A realidade assusta. Pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, especializado em classe C, revela a existência no Brasil de 45 milhões de desbancarizados, o equivalente a 29% da população adulta do País. Um grupo mais concentrado nas classes C, D e E que, segundo o estudo, movimenta anualmente mais de R$ 800 bilhões. Levantamento feito pelo instituto de pesquisa Plano CDE ressalta que 57% das pessoas de baixa renda têm conta bancária, mas apenas 7% delas utilizam esse recurso mais de uma vez ao mês. Na prática, elas têm conta-corrente ou poupança apenas para sacar salário ou benefício. Soma-se a isso o fato de 34% da população receber salário em espécie.
O estudo aponta, ainda, que 80% das classes C, D e E nunca tiveram acesso a crédito, acabaram fazendo empréstimos informais ou recorrendo a financiamento de cartões de loja (16%) ou cartão de crédito (11%). O resultado desse comportamento é o endividamento. O número de brasileiros com dívidas atrasadas e CPF negativado chegou a 63,2 milhões em abril deste ano, o que representa 40,4% da população ativa do País, com alta de 3,3% em relação a 2018, segundo a Serasa Experian.
Na visão dos especialistas, as fintechs podem resolver esses gargalos porque dominam a evolução tecnológica para soluções de processos simples ou complexos, a exemplo do blockchain, e porque surgem na vigência da Agenda BC+, lançada pelo Banco Central em 2017, a qual reúne uma série de programas para desburocratizar o sistema financeiro, aumentar a competitividade com incentivo a essas startups e baratear o crédito. Por fim, especificamente as fintechs de impacto social têm capacidade para customizar produtos para públicos específicos.
É o caso da Noverde, especializada em crédito online para as classes C e D, aberta há dois anos pelo empresário Eduardo Teixeira. Analisando como o mercado de crédito tradicional trabalha, ele percebeu que existia uma oportunidade de inclusão, desde que a avaliação do tomador de crédito fosse feita a partir de outros dados, não apenas do nome negativado. A startup desenvolveu um produto que avalia continuamente o comportamento dos usuários e, à medida que as pessoas vão usando o aplicativo, novas linhas de crédito são ofertadas, em condições cada vez mais vantajosas ao cliente.
“Nós vamos além dos dados fornecidos por bureaus tradicionais”, diz Teixeira. “Muitas vezes, uma liberação de valores seria possível analisando dados não convencionais como informações disponíveis nos smartphones e formas de pagamento praticadas. Com isso, conseguimos liberar crédito até para negativados.” Segundo ele, a negativação é apenas um dos itens da avaliação. De 2017 para cá, mais de 1 milhão de empréstimos foram pedidos na plataforma, com valores entre R$ 500 e R$ 4 mil, num total de R$ 100 milhões. “Até 2022 a meta é chegar a uma carteira de R$ 1 bilhão em empréstimos”, revela.
Dar ao cliente devedor negativado um tratamento diferenciado, quebrando um comportamento de cobranças ostensivas praticado pelo mercado, foi a proposta de Marc Lahound ao criar, em 2015, a Queroquitar. Trata-se de uma plataforma de renegociação de crédito que aborda o devedor de forma positiva ao fazer com que a proposta de negociação venha dele, num processo simples e totalmente digital. “A recuperação de crédito é uma grande dor não só das empresas, mas também da sociedade”, diz o CEO. “Mais de 40% da população ativa do País está endividada, 53% das pessoas que fecham acordo quebram a negociação no primeiro mês.” Em quatro anos, a plataforma – que foi validada dentro do programa InovaBra do Bradesco e recebeu aportes da aceleradora Wyra e do fundo BR Startups –, somou 14 empresas credoras ativas, entre elas, Santander, Porto Seguro, BV Financeira e Algar. Totalizou 12 milhões de CPFs com dívidas a serem negociadas. “Nosso próximo passo será dar corpo ao projeto de educação financeira, com o objetivo de ajudar as pessoas a organizarem melhor suas finanças e, consequentemente, diminuírem o grau de endividamento”, afirma.
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**SINAL VERDE**
O Brasil é o país da América Latina com o maior número de fintechs, à frente do México e da Colômbia, segundo dados do Finnovista. Embora ocupe a liderança, revela um cenário ao mesmo tempo preocupante e de oportunidades. Os brasileiros mais vulneráveis não têm acesso à credito, olham os serviços financeiros com desconfiança, associam crédito a renda e poder aquisitivo, não têm o hábito de poupar e apresentam baixo nível de educação financeira. Temos no País 112,4 milhões de pessoas que vivem com até R$ 22 por dia, o equivalente a 60% da população. Um grupo batizado de “underserverd”, termo em inglês que designa “malservidos” pelo sistema financeiro tradicional, que foi o centro da Tese de Impacto Social em Serviços Financeiros, realizada pela aceleradora Artemísia, com apoio da Aspen Network for Development Entrepreneurs Catalyst Fund. Nesse contexto, dizem os pesquisadores, a bancarização não significa inclusão financeira, pelo contrário, bancarizar sem oferecer qualidade no serviço gera um público com acesso a produtos e serviços caros e pouco adequados à real necessidade.
Foi o que Fabio Hideki Takara visualizou ao fazer um curso de formação de líderes na Fundação Estudar. Saiu de lá com o objetivo claro de criar um negócio com propósito, que impactasse a vida das pessoas. Lançou a fintech social Firgun, plataforma de microcrédito coletivo, na qual os empreendedores podem levantar até R$ 15 mil para investir em seus negócios e do outro lado os investidores podem começar com valores a partir de R$ 25. “A missão é dar acesso a microcrédito justo para empreendedores de baixa renda, uma forma de conseguir crédito sem discriminação, barato e sem burocracia”, diz Takara. “Empréstimos de até R$ 1.000 não têm juros e nem taxa.” Os juros vão aumentando, até no máximo 1,8% ao mês, à medida que os valores vão subindo. Na média, são três vezes mais baixos que os do mercado tradicional.
Takara não demorou a perceber que a fintech social, assim como as demais modalidades, tem de ser sustentável. A ideia inicial de emprestar dinheiro sem cobrar juros não funcionou. Foi preciso criar patamares para a monetização da empresa. Nesse sentido, estabeleceram-se taxas sobre o valor captado pelo empreendedor, que variam de 2% para empréstimos entre R$ 1.000 e R$ 2.000 a 10% para montantes acima de R$ 12 mil. Até R$ 1.000, a taxa é zero.
“Esse é um dos grandes desafios das startups com esse perfil”, alerta Guilherme Horn, presidente da Associação Brasileira de Fintechs. “Precisam viabilizar a operação com custo bem baixo e muita eficiência, além de apresentar uma estratégia de aquisição de cliente alinhada. É preciso questionar com frequência: enquanto usar o serviço, quanto esse cliente gerará de renda? Vale a pena investir?” Na prática isso significa que não existe impacto social sem dinheiro. É preciso gerar recursos para contratar pessoas e manter o sistema trabalhando para solucionar os problemas demandados pela sociedade.
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Outro desafio apontado por Horn está ligado à geografia. Do total de desbancarizados, 62% moram no interior e quatro em cada dez moram no Nordeste (39%). “A maioria das fintechs está na região Sudeste, distante dessa realidade, o que exige um esforço ainda maior na oferta de ferramentas capazes de dar acesso aos produtos ou serviços para clientes de todo o País, respeitando a realidade de cada um”, afirma.
Ciente do desafio, Adriano Meirinho criou em 2016 um aplicativo que transforma o celular em uma máquina de recarga e pagamentos. Em três anos de operação, a Celcoin formou uma rede de 20 mil agentes, distribuídos em 2.000 cidades, que por meio do app oferecem serviços como recarga de celular, recebimento de contas, jogos, passagens de transporte, planos de TV pré-pagos e até venda de créditos para Uber, Google Play e Netflix. Em 2018, movimentou cerca de R$ 1 bilhão. “Com esse serviço, conseguimos aumentar em até 20% a renda familiar dos agentes e levar mais pessoas para dentro dos seus estabelecimentos por conta dos serviços oferecidos”, diz Meirinho. “Cerca de 75% deles garantem que o endereço se tornou o banco da cidade.”
A fintech lançou recentemente o Celcoin Financial Hub, que representa a desburocratização dos APIs do aplicativo para 47 bancos e fintechs usarem a sua tecnologia para oferecer aos clientes os mesmos serviços financeiros da startup. Com essa receita, a Celcoin foi a única fintech da América Latina a receber o prêmio global The Inclusive Fintech 50, figurando entre as 50 fintechs mais inclusivas do mundo.
“Com forte atuação nas regiões Norte e Nordeste, a Celcoin não só veio resolver um problema da população como transformar pessoas em correspondentes bancários, gerando renda”, diz Daniel Izzo, CEO da Vox Capital. Principal gestora de investimentos de impacto no Brasil, tem no portfólio nove empresas investidas, quatro delas fintechs com foco social, entre elas, a Celcoin. Segundo o executivo, a startup criada por Meirinho atende a três pontos fundamentais analisados pela gestora antes de investir: oferece solução para a população de baixa renda lidar com seu fluxo de caixa, ajuda as pessoas a serem mais resilientes à crise e auxilia na melhor forma de acumular mais ativos.
“O movimento está apenas começando”, afirma Izzo. “Há oportunidade em todas as áreas, meios de pagamento, educação financeira, concessão de crédito e várias outras, porque há ineficiência em todos os setores. Um oceano azul para as fintechs.”
Para Alberto Luz, coordenador do Centro de Tecnologia da Informação Aplicada da
FGV-Eaesp, as fintechs de impacto social vivem um momento de consolidação. “Ao chegarem ao mercado o desafio era dominar a tecnologia, torná-la usável de forma simples e driblar a desconfiança da população que não estava acostumada com serviço financeiro”, observa. “Agora, chegou a hora de viabilizar a operação de maneira enxuta e eficiente, de modo a tornar o negócio sustentável e escalável.”