A General Motors já foi um titã do setor automobilístico e a empresa mais respeitada dos Estados Unidos. Porém, após décadas de declínio, a ideia que prevalece é a de que a GM é uma companhia burocrática e antiquada. A presidente, Mary Barra, com seus terninhos clássicos, combina com essa imagem de certo modo. Com uma trajetória de 35 anos na companhia, parece ser o produto perfeito da cultura corporativa que foi encarregada de transformar.
Um olhar mais de perto, porém, mostra que a engenheira eletricista tradicional, que não tem o brilho dos líderes do mundo tecnológico, vem provocando mudanças profundas nessa cultura. Barra construiu sua carreira supervisionando fábricas, cadeias de fornecimento e o próprio portfólio de produtos da GM, o que lhe garantiu um senso prático que muitas vezes falta a outros presidentes de empresas.
Ela soa sincera quando diz que tem consciência de que 223 mil funcionários da GM terão um comportamento diferente se seus planos para o futuro não forem bem-sucedidos; que precisa substituir uma cultura de culpa e burocracia por outra, voltada para responsabilidade, velocidade e colaboração. “Nesse universo em transformação rápida, você precisa de uma cultura ágil”, diz. “Ainda temos muito trabalho pela frente.”
A GM poderia ter fechado as portas em 2009, mas ainda é uma máquina lucrativa, com cerca de US$ 20 bilhões em caixa. Já devolveu mais de dois terços dos empréstimos que recebeu do governo dos EUA e, nos últimos três trimestres, divulgou resultados sólidos. Ao longo de 2016, entrou de cabeça no transporte compartilhado, na tecnologia de direção autônoma e nos carros elétricos. Com uma profusão de acordos e lançamentos mais parecidos com os de seus concorrentes da indústria de tecnologia, construiu, em pouco tempo, um portfólio dedicado a revolucionar o próprio negócio, de dentro para fora.
Assim como Steve Jobs ao voltar à Apple em 1997, Barra priorizou a estabilização do fluxo de caixa, de modo a ter recursos para inovar. Outra prioridade de Jobs era garantir que teria a equipe certa a postos e a cultura certa sobre a qual construir. Barra tem as próprias obsessões – e são parecidas. Em Detroit, em uma apresentação apaixonada – e bem-sucedida – para 35 gestores de nível médio recém-promovidos, disse: “Repassando suas carreiras, o que vocês costumavam dizer? ‘Imagine se eu conseguisse…’; ‘E se eu pudesse fazer isso acontecer…’. Bem, vocês estão no lugar certo agora para fazer”.
**REVOLUÇÃO CULTURAL**
Barra sabe que não vai se dar bem se não virar do avesso a famosa burocracia da GM, uma cultura que não lhe permite concorrer com Google e Uber. Para enfrentar o problema, lançou várias iniciativas: o programa chamado GM 2020, com laboratórios colaborativos interfuncionais; um curso de “liderança transformacional” de um ano para executivos seniores; uma viagem trimestral de dois dias, liderada pessoalmente por ela, com seus 16 principais executivos, com foco não só em estratégia, mas também em relacionamento.
“Mary acredita que, se mudarmos o comportamento [da alta gestão], as pessoas vão seguir o exemplo”, diz o diretor de RH, John Quattrone. Em junho passado, Barra foi a San Francisco para o primeiro test drive de um dos novos carros elétricos Bolt da GM, equipado com a tecnologia de direção autônoma da Cruise Automation, empresa comprada em julho de 2016 pela GM por mais de US$ 1 bilhão. Barra sentou-se no banco de trás com o CEO da Cruise, Kyle Vogt, e mante ve seus olhos treinados em duas coisas: as ruas movimentadas de San Francisco e o técnico no banco da frente, que descansava levemente a ponta dos dedos sobre o volante, como exige a legislação da Califórnia.
No arejado escritório da Cruise, a diretoria se reunia em volta de um monitor de vídeo que mostrava o carro, marcado por uma luz verde piscante, que se movimentava em torno de um mapa digital da cidade. Se algo desse errado e o motorista precisasse assumir o controle, a luz ficaria vermelha, como acontecera em viagens anteriores. Estavam todos loucos para que isso não ocorresse de novo.
O teste foi um momento importante, simbólica e praticamente falando. Barra diz que a GM passou a percorrer “um caminho evolutivo” assim que começou a reimaginar a empresa, logo depois de sair da falência. Naquele momento, sob o comando do CEO Ed Whitacre, a GM parecia ter ficado parada no tempo. Mas, em 2010, lançou o Volt, seu primeiro carro elétrico, deixando para trás pioneiras como a Toyota. Nos anos seguintes, começou a incorporar aspectos da tecnologia autoguiada em modelos específicos, incluindo um software que alerta o motorista quando o veículo desvia da pista ou o freia se uma colisão iminente é detectada. Muitas outras companhias automobilísticas já vinham incorporando funcionalidades como essas, e finalmente a GM estava no jogo.
**MERGULHO NAS TENDÊNCIAS**
A evolução começou a tender para a revolução no fim de 2014. Barra tinha sido indicada CEO pouco antes e reunido um novo grupo de líderes: o ex-banqueiro de investimentos Dan Ammann, que ela nomeou presidente; o executivo de longa data da GM Mark Reuss, diretor de produto; e Chuck Stevens, diretor-financeiro. Juntos, mergulharam em dados sobre transporte compartilhado, ambivalência dos millennials urbanos em relação à propriedade do automóvel e carros totalmente elétricos. Todas essas tendências ameaçam o negócio tradicional de venda de veículos. Por mais que nenhum desses fatores aparecesse nos resultados em alta da GM, a equipe de Barra concluiu que, sem uma mudança radical, o caminho à frente seria difícil.
De lá para cá, a empresa investiu nas áreas de conectividade, compartilhamento, propulsão alternativa e tecnologia autônoma, e agora tem recursos confiáveis em cada pilar desse negócio cada vez mais chamado de mobilidade pessoal. A companhia, em curto prazo, construiu um portfólio que garante seu sucesso no futuro:
**1. A plataforma.** A maioria das pessoas considera a conectividade sem fio algo do âmbito do Vale do Silício, mas, no mundo automobilístico, o serviço da GM OnStar oferece um acesso a dados inédito. Criado para conectar motoristas com um operador real que pode oferecer diretrizes ou ajudar em emergências, no futuro a plataforma oferecerá diagnóstico remoto e atualizações de software e rastreará dados, além de gerir fretes autônomos.
**2. O parceiro.** Em 4 de janeiro de 2016, a GM anunciou a compra de uma participação na Lyft, segundo serviço de corridas compartilhadas dos Estados Unidos. O acordo garante uma posição que permite à montadora testar, aprender e tirar vantagem desse mercado, caso o compartilhamento decole ainda mais. As empresas já trabalharam juntas em um programa chamado Express Drive, que permite aos motoristas da Lyft em sete grandes cidades alugar carros da GM com desconto, e há outras vantagens a caminho.
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Bolt, o modelo elétrico e autônomo da GM, que concorrerá em preço com o Model 3, a versão mais acessível da Tesla
**3. A startup.** Onze dias depois que o investimento na Lyft foi divulgado, a GM anunciou que lançaria um serviço próprio de compartilhamento de veículos chamado Maven. Parecido com o Zipcar, o Maven prevê a substituição da propriedade pelo compartilhamento, mas essa startup dentro da GM tem novas funcionalidades, como um app que permite reservar, abrir e ligar o carro, além de Apple CarPlay, Android Auto, OnStar e conexão sem fio 4G gratuitos. Também já está funcionando em sete cidades, com planos de expansão em 2017. É um campo de testes que pode pivotar para acompanhar o mercado e ainda oferece uma segunda marca, que poderá ser acionada caso a Lyft feche ou seja comprada por um concorrente.
**4. O carro.** Barra acredita que o novo carro totalmente elétrico Bolt, lançado em 2016, será um produto decisivo. Quando ela e o então CEO Daniel Akerson deram início ao projeto em 2013, a meta era desenvolver um carro totalmente elétrico, divertido, acessível e prático, que percorresse pelo menos 320 quilômetros, o mínimo necessário para se tornar viável para quem vai ao trabalho, como mostram pesquisas. Ao custo de apenas US$ 30 mil (depois de um desconto de impostos federal de US$ 7,5 mil) e percorrendo cerca de 380 quilômetros com uma única carga, o novo carro vai ultrapassar de longe as especificações de concorrentes como Ford e Nissan. O Bolt é parecido em preço e alcance com o esperado Model 3, da Tesla, mas estará disponível aos consumidores muito antes.
**5. A tecnologia.** A abordagem inicial da GM à direção autônoma previa uma melhoria incremental das características dos veículos existentes. No entanto, quando Ammann fechou a aquisição da Cruise em março, esse investimento passou a ser a estratégia mais radical diante do que tem sido feito por pares como Google e Uber.
Lançada em 2013, a Cruise construiu uma gama complexa de software e hardware que usa inteligência artificial para pilotar um carro. Enquanto os engenheiros internos da GM trabalhavam em um sistema próprio, Ammann e Barra perceberam que a Cruise estava muito à frente. Agora a GM e a Cruise estão trabalhando juntas para implementar essa visão em grande escala.
Claro, a tecnologia da Cruise tem de funcionar, e é por isso que o test drive de Barra naquela manhã de junho era tão significativo. Dentro do quartel-general da Cruise, o clima era confiante, mas tenso. Conforme o carro se deslocava em um trecho particularmente congestionado, fez uma repentina mudança de faixa. Barra e Vogt observaram as mãos do motorista; a equipe da Cruise, o monitor telemétrico. O motorista agarrou o volante, e a luz permaneceu verde.
Depois que o carro se pilotou de volta para a garagem da Cruise, Barra e Vogt retornaram ao escritório, triunfantes. A CEO parou em frente à multidão reunida. “Se alguém [na GM] diz que você não vai conseguir uma coisa, ou que não consegue fazer, ou que vai levar muito tempo, ou que não faz sentido, desafie essa pessoa”, disse a eles.
**CETICISMO**
Se há ceticismo quanto à GM, não faltam motivos. Os componentes básicos das corridas autônomas, elétricas e compartilhadas estão sendo perseguidos por muitos competidores – de Ford a Uber. Depois de anos e bilhões investidos em carros autoguiados, o Google tem pouco a mostrar. A Apple, segundo relatórios de meados de 2016, pode estar repensando sua abordagem de produção de carros. E a Tesla perdeu quase US$ 600 milhões na primeira metade de 2016, além do fato de dois acidentes fatais com seu Model S terem despertado questionamentos sobre a viabilidade dessa tecnologia.
Mas e se todo esse jeito “nós contra eles” de olhar para as coisas estiver errado? Talvez a GM e o mundo tech não sejam rivais afinal. Barra sabe que o trabalho que ela e sua equipe realizaram até agora é só o começo de um longo processo, porém está determinada a fazer a GM renascer das cinzas.