> — Por que você quer ser treinador? Gosta tanto assim desse sangue?
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> — Eu preciso desse sangue.
O diálogo acima aconteceu em outubro de 2006, entre o experiente coach Marcelo Bielsa, que fez a pergunta, e o então recém-formado treinador catalão Josep “Pep” Guardiola, que tinha recebido o diploma e viajara da Espanha a Buenos Aires a fim de aprender mais com os treinadores argentinos.
O que o leitor vê nele? Nós vemos a intensidade de aprender de um novato.
Em 2020, antes de as competições pararem por causa da pandemia do novo coronavírus, o catalão era o técnico mais reverenciado do mundo, assim reconhecido pelo treinador do Real Madrid, Zinédine Zidane, capaz de completar dez temporadas consecutivas treinando times marcadores de 120 gols em jogos oficiais por temporada no mínimo – à frente do FC Barcelona, do Bayern de Munique e do Manchester City.
Porém, em outubro de 2006, Guardiola era um novato no métier dos técnicos e queria aprender tudo que pudesse. Aos 13 anos, ele ingressara em La Masia, escola formadora de jogadores da base do Fútbol Club Barcelona; aos 17, tinha sido chamado para o time principal do Barça por Johan Cruyff, no qual atuou como meio-campista e capitão na maior parte do tempo, e, aos 34, aposentou-se dos gramados e foi estudar para ser técnico. Não se contentou em ser um dos melhores da classe; fez uma viagem internacional para aprender mais. Guardiola tinha a intensidade necessária para realmente aprender a ser algo diferente de jogador – ser técnico.
É razoável pensar que hoje Guardiola mais ensina do que aprende. Quem olha para ele sente dificuldade em relacionar seus resultados com qualquer esforço de aquisição de conhecimentos, porque tudo parece fácil. Só que não. A ligação entre o sucesso dos times que dirige e seu aprendizado contínuo é direta: seu futebol muda constantemente, as características dos jogadores que tem à disposição também mudam. O coach catalão é tão dedicado ao aprendizado que, não fosse o luto pela morte de sua mãe por Covid-19, ocorrida no início de abril, apostaríamos que estaria usando a maior parte do confinamento para estudar futebol e fazer seu time voltar, como ele disse num vídeo,“mais forte e melhor”. Nos tempos pré-pandemia, Guardiola aprendia o tempo todo. Ficava discutindo movimentos e jogadas com os atletas mais curiosos quando terminavam os treinos. Em dia de jogo, chegava a telefonar de madrugada para amigos a fim de discutir os erros de um jogo. Aprendia num jantar informal com seu ídolo, o enxadrista Gary Kasparov, nascido no Azerbaijão, considerado por muitos o maior enxadrista de todos os tempos. Lia livros e mais livros.
O que entendemos é que Pep Guardiola, assim como um seleto grupo de técnicos esportivos que estudamos, pratica o que batizamos de “aprendizado das cinco caixas”. Trata-se de um dos oito elementos do algoritmo da vitória que descobrimos ao investigar, por cinco anos, os técnicos mais vencedores da história [leia sobre o livro O algoritmo da vitória na página 30].
**ENTENDENDO AS CINCO CAIXAS**
Como os técnicos aprendem? O consenso é que o técnico precisa, assim como um empreiteiro, ter uma boa caixa de ferramentas para enfrentar os problemas e obter o melhor desempenho possível de seus atletas, uma caixa que seja melhor do que a dos técnicos concorrentes. Essa caixa metafórica deve conter um repertório de soluções para problemas físicos, técnicos, tático-estratégicos e mentais. O que percebemos, contudo, é que não funciona bem assim; essa caixa só pode ser insuficiente. Os técnicos excepcionais mostram ter cinco caixas para manipular seu repertório.
**Caixa 1 – ferramentas.** O norte-americano Bob Bowman, técnico do maior campeão olímpico da história, o nadador Michael Phelps, descreveu para nós a primeira caixa: “Quando começa a treinar, o coach não tem muitas ferramentas. Minha primeira ferramenta foi, digamos, um martelo. Porém, nem todo nadador melhora só com um martelo, e mesmo os que melhoram não vão precisar de martelos o tempo todo. Assim, conforme avança na carreira, o coach vai aprendendo o que funciona com atletas diferentes em momentos diferentes”. Bowman ainda explica que, para um técnico iniciante, há 50% de chance de as ferramentas funcionarem com os problemas que se apresentam. E, com a experiência, o impacto tende a aumentar. Quem o tinha alto com suas ferramentas era a técnica Larisa Preobrazhenskaya, por exemplo, a “mãe russa” do tênis feminino.
**Caixa 2 – curiosidade.** Essa caixa ficou clara para nós numa definição do brasileiro José Roberto Guimarães, o único técnico de vôlei que ganhou a medalha de ouro olímpico tanto com uma seleção masculina como com uma feminina. Segundo ele nos disse, um bom técnico tem interesse em aprender simplesmente tudo sobre sobre seus atletas e os adversários. Esse tipo de coach ouve muito e fala pouco, e olha para as pessoas como se as visse pela primeira vez, não importa quanto já as conheça. Bernardinho, um dos técnicos mais vencedores da história dos esportes, nos descreveu a curiosidade de outro: “Eu fico detectando gaps, tanto os que eu tenho como os que meus times têm, e tento entender quem tem um processo melhor para diminuir esses gaps”.
**Caixas 3, 4 e 5 – destruição, manutenção, criação.** Existem mais três caixas metafóricas de aprendizado que os grandes técnicos manipulam, transferindo para elas tudo que entrou na caixa de ferramentas e da caixa da curiosidade, três caixas que são relativamente familiares aos gestores. Uma preserva soluções que estão funcionando; outra destrói soluções que não funcionam mais; e a terceira é reservada a novas soluções. Lembrou-se da referência? Caixas da criação, preservação e destruição de estratégias foram propostas às empresas por Vijay Govindarajan. Mas vimos que há tempos a prática é adotada, intuitivamente, por técnicos.
O mesmo treinador pode precisar colocar um martelo na caixa da preservação para pressionar um atleta do time, usar um alicate para colocar outro na caixa da destruição porque seu comportamento atrapalha a equipe e recorrer a uma chave de fenda para mudar as jogadas de ataque na caixa da criação. (Bowman diz que o bom técnico cria problemas para poder ganhar novas ferramentas de resolver problemas.) A caixa de ferramentas vai crescendo de tamanho, a caixa da curiosidade não tem fundo e as caixas de criar, destruir e preservar fazem fluir os conteúdos das duas anteriores, mantendo atualizado o conhecimento. Assim, o técnico aprende continuamente.
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**“MUITO MEDROSO”**
Pep Guardiola começou a montar sua primeira caixa de ferramentas quando se formou treinador em Madri, na Ciudad del Fútbol; aluno “aplicado e talentoso”, estava entre os três melhores da classe, segundo escreveu Alexandre Gonzalez na revista francesa So Foot. Mas, diferente dos colegas que foram procurar times para treinar ao receber o diploma, Guardiola foi procurar mentores com quem pudesse adquirir mais ferramentas e colocar as já adquiridas à prova. Todos eles, técnicos argentinos. O primeiro foi Ángel Cappa, que havia sido assistente de César Luis Menotti no Barcelona, no Peñarol e no Boca Juniors e morava em Madri. Como Cappa se recorda, Guardiola passou a lhe telefonar para discutir os jogos, detalhe por detalhe. “Pep tinha uma sede insaciável de debater. Eu sabia quando começavam as conversas com ele, mas nunca quando iriam terminar.” Como definiu Cappa, as trocas pareciam “coisa de doido”.
O segundo foi Ricardo La Volpe, que o impressionara quando comandou a seleção do México na Copa do Mundo de 2006. No jornal El País, Guardiola escreveu que a seleção do México era a única que lhe agradava. Os zagueiros saíam jogando, avançavam juntos com a bola, o que criava uma superioridade numérica no meio de campo.
O terceiro foi o próprio Menotti, responsável pela primeira Copa do Mundo da Argentina, em 1978, e o “mentor de Maradona”. Guardiola viajou para a Argentina para encontrá-lo. O depoimento que Menotti deu sobre o encontro, relatado por Gonzalez, é revelador: enquanto os outros aspirantes a técnicos buscavam em Menotti um “messias” que lhes indicasse o caminho a seguir, Guardiola buscava segurança. E o discurso radical de Menotti lhe deu isso. “Quer ser treinador? Não tenha dúvidas”, disse-lhe.
E o quarto foi Marcelo Bielsa, citado na abertura deste texto. Guardiola o admirava sobretudo por causa da seleção argentina da Copa de 2002, no Japão e na Coreia do Sul. O ainda jogador Guardiola declarou que a Argentina era o time mais interessante daquele torneio, com seu esquema tático 3-4-3. Em torno de um “asado”, o churrasco argentino, Bielsa e Guardiola passaram 12 horas seguidas conversando – isso mesmo que você leu, 12 horas –, assistindo a trechos de jogos antigos e analisando-os, brigando por suas opiniões e se reconciliando. Um dos assuntos foi o holandês Louis van Gaal, ex-técnico do Ajax e do Barcelona.
Em outubro de 2006, após essa peregrinação, Guardiola voltou à Espanha “seguro de si como nunca”. A segurança era tanta que ele questionou, em entrevista ao jornal A Marca: “Por que não podemos ter treinadores que defendam o jogo bonito?”. Dirigentes do Barcelona logo foram cutucar Txiki Begiristain, diretor esportivo do clube, para contratar o ex-capitão do time. (Alguns vão se lembrar de um caso parecido no Brasil.) Tanto o time principal como o Barcelona B estavam fora de cogitação para alguém inexperiente, na visão de Begiristain, mas, como ele havia jogado com Guardiola, decidiu lhe dar a direção da categoria de base, para que começasse de algum lugar. Guardiola ficou desapontado, mas aceitou; queria aprender. Seu desempenho foi tão bom que, passados seis meses, já assumiu a direção do Barça B. Foi campeão de cara e transferido para o time principal. O resto da história todos conhecem.
O curso que fez e os quatro mentores iniciais – seis, se considerarmos Van Gaal e a atenção que ele prestava ao seu técnico Johan Cruyff – foram o início da sua caixa de ferramentas, que se enriquece continuamente. Em La Roja, el triunfo de un equipo, Juan Carlos Cubeiro e Leonor Gallardo destacam muito mais fontes, entre as quais o treinador espanhol Juan Manuel Lillo e Manuel Estiarte, craque do polo aquático espanhol. O catalão se define como “um ladrão de ideias” – de ferramentas.
Quanto à segunda caixa, da curiosidade, Guardiola começa pela autocuriosidade – buscando o autoconhecimento. As entrevistas para os livros biográficos que fez com Martí Perarnau constituem rituais de reflexão para isso. Assim, Guardiola teria entendido, por exemplo, que é “muito medroso”, como explicou a Perarnau. Ele disse ter medo do ataque adversário desde os tempos de jogador, e que, provavelmente, é isso que o impele a buscar aprendizados diversos para criar um tipo de jogo que mantenha os rivais bem longe de seu gol. Com as outras pessoas, é um dos técnicos do futebol mais próximos dos atletas – preocupa-se com todos os detalhes que digam respeito a eles, incluindo sua vida pessoal – e tem o ritual de sempre conversar com os técnicos adversários depois dos jogos. Quanto às outras três caixas, de preservação, destruição e criação, Guardiola o faz sobretudo por meio de experimentos. Ele é um dos treinadores que mais experimentam para aprender, em treinos e em jogos. Por exemplo, à frente do Bayern de Munique, testou uma mudança tática a pedido dos jogadores na semifinal da Champions League, num jogo em casa em 2013, com o esquema 4-2-4. E perdeu de goleada para o Barcelona, por 4 x 0. Guardiola acionou as caixas da criação e da destruição.
Nós, brasileiros, conhecemos bem a história do técnico de futebol que brilha um dia e depois se apaga, porque parou de aprender. Se tem algo que a pandemia tem escancarado é que essa irrelevância pode acometer os líderes empresariais também, e a solução para isso está no tão falado e tão pouco compreendido lifelong learning. Grandes técnicos esportivos, como Pep Guardiola, e suas cinco caixas metafóricas são uma inspiração.
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> **SAIBA MAIS SOBRE O ALGORITMO DA VITÓRIA**
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> _Recém-lançado, o livro que inspira este artigo traz histórias e lições dos esportes extrapoláveis para a gestão, com foco no papel dos técnicos – os líderes_
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> O empresário Pedro Chiamulera, que foi corredor olímpico, disse recentemente no Festival Alma de Negócios Conscientes que seu passado de atleta olímpico o preparou para enfrentar a pandemia, porque esportistas enfrentam crises e precisam superá-las todos os dias. É verdade. Mas se isso surpreende alguns, surpreenderá mais o papel do técnico no continuum de superação de adversidades pelos atletas.
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> A figura do técnico, muito valorizada mesmo em potências esportivas como Estados Unidos, Rússia e vários países europeus, vive à sombra no Brasil. Foi esse ofuscamento que inspirou José Salibi Neto e Adriana Salles Gomes a pesquisar, por cinco anos, os técnicos mais vitoriosos do planeta. Da investigação nasceu o livro O algoritmo da vitória, que acaba de ser lançado pelo selo Planeta Estratégia. Os autores confirmaram a relação entre a qualidade dos técnicos e a probabilidade de vitórias dos atletas, e ainda detectaram um conjunto de oito regras e procedimentos comuns a eles, que funciona na prática como um algoritmo do mundo de carne e osso.
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> Agora, a expectativa é que o algoritmo possa ajudar a melhorar o desempenho esportivo do Brasil – e desde a base. “Um dos meus sonhos é que tenham acesso ao livro professores de educação física das escolas e treinadores de categorias infantil e juvenil, não só para que sejamos uma potência esportiva no futuro, mas para resolver problemas sociais também”, diz Salles Gomes. A competitividade saudável e o trabalho colaborativo sem abrir mão do brilho individual são ensinamentos para a vida. E os autores têm outros sonhos. Que, aplicando conhecimentos do livro, os líderes empresariais consigam ajudar seus profissionais talentosos a evoluir mais. Que os coaches acelerem a transformação de seus coachees com essa ferramenta. Que pais possam preparar melhor os filhos para o futuro com os insights obtidos. “A vantagem é que quase todo mundo gosta de esportes, o que os faz se conectarem emocionalmente com as histórias e se abrirem a aprender”, diz Salibi, que foi um tenista de alta performance.
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> O livro, de 320 páginas, é uma grande sequência de histórias geradoras de insights, vindas de esportes de grandes torcidas, como vôlei, futebol, basquete, tênis e futebol americano, e também de natação, atletismo, boxe, golfe, surfe, ginástica artística, ciclismo etc. “O teste de fogo foi mandar o copião para leitores bem exigentes, como Bob Bowman [técnico do Michael Phelps], Raí, Mauro Silva, Jorge Paulo Lemann e Philip Kotler. Tudo indica que passamos pelo crivo [risos]”, contam os autores.
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> Pep Guardiola, retratado neste artigo, é um personagem frequente em O algoritmo da vitória. Mais de duas centenas de técnicos foram estudados e são citados, mas o livro se concentra nos 20 em que os oito elementos do algoritmo são identificados; o catalão é um deles.
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> Em tempo: as histórias pessoais de Salibi e Salles Gomes se confundem com a história da HSM (da qual Salibi é cofundador, o “S”) e desta revista. **[Redação HSM Management]**