Por muitos anos, discutiu-se a necessidade de um padrão contábil que proporcionasse uma homogeneidade maior na comparação dos resultados das seguradoras e nos critérios para reconhecimento de suas reservas técnicas – o montante que as companhias precisam manter para arcar com os compromissos assumidos com os segurados. Tendo como ponto de partida esse objetivo, e após quase uma década de debates e minutas de exposição, estamos próximos da adoção inicial da IFRS 17/CPC 50.
A nova norma para mensuração e contabilização de contratos de seguros foi aprovada pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) e referendada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em 2021, e entrará em vigor no Brasil em 1º de janeiro de 2023. Entretanto, neste início de 2022, a norma ainda não foi referendada pela Superintendência de Seguros Privados (Susep). Assim, as seguradoras que publicam suas demonstrações contábeis de acordo com as práticas aplicáveis à Susep devem continuar seguindo as orientações dessa autarquia.
## Novos padrões de mensuração
Os efeitos da adoção da IFRS 17/CPC 50 representam uma nova perspectiva de como os resultados e a própria posição patrimonial de uma seguradora serão mensurados e interpretados. Um exemplo disso é que o montante de prêmios emitidos por uma seguradora – métrica que até hoje representa a principal volumetria de receita – não mais impulsiona de maneira isolada a “linha do resultado”. Isso porque a formação da receita e a liberação de lucros, hoje registrados basicamente com base na passagem do tempo, serão contabilizadas por meio de padrões significativamente diferentes definidos pelo novo Modelo Geral de Mensuração (GMM, na sigla em inglês). Ainda, os fluxos relativos aos componentes de investimento relacionados ao contrato de seguros não serão mais considerados como parte da receita da seguradora.
O GMM possui quatro componentes que, em conjunto, formam o passivo de seguros. Seu modelo está demonstrado na figura ao lado.
1. Os fluxos de caixa futuros representam as expectativas de entradas e saídas de caixa para que a seguradora cumpra suas obrigações estabelecidas em contrato. Correspondem, principalmente, a estimativas de prêmios menos o volume de sinistros esperados e incluem outras receitas e despesas ligadas ao contrato de seguro.
2. Esses fluxos de caixa futuros devem refletir o valor do dinheiro no tempo e, portanto, são descontados a valor presente.
3. A mensuração explícita do risco não financeiro é a grande novidade da norma. Essa métrica reflete a compensação que a seguradora requer para assumir a incerteza quanto ao montante e ao momento dos fluxos de caixa futuros. Vamos supor que estamos mensurando as reservas de seguros para apólices que cobrem plantas industriais. Antes de emitir uma apólice, a seguradora realizou uma análise da probabilidade de um incêndio ocorrer nessas propriedades e qual seria o montante estimado de prejuízos. O ajuste do risco não financeiro captura a mensuração monetária dessa análise, demonstrando assim o valor que a seguradora cobrou para arcar com a incerteza oriunda de seu negócio.
4. A margem contratual de seguro (CSM, na sigla em inglês) representa o lucro não realizado para um grupo de contratos de seguro, que será reconhecido ao longo da vida dos respectivos grupos de contratos. Apesar de, em um primeiro momento, a divisão por esses quatro blocos parecer complexa, ela é um dos maiores benefícios da norma, pois permite uma visão mais clara de como a receita de uma seguradora é formada.
## O passivo dos seguros
*Os quatro componentes do Modelo Geral de mensuração*
![Imagens Prancheta 1 cópia 40](//images.ctfassets.net/ucp6tw9r5u7d/3PCTVRluc9NQ8l0Uyix770/ce994d1ef3d4559ad0d684a8a85d332c/Imagens_Prancheta_1_c__pia_40.png)
## Impactos da transição
Toda essa transformação naturalmente exigirá um esforço para a implementação adequada da IFRS 17/CPC 50. Sistemas precisarão ser revistos, bem como os métodos para processamento de um enorme volume de dados capaz de formar os cenários estatísticos necessários para mensurar e contabilizar cada um dos blocos mencionados. Isso exigirá uma coordenação conjunta entre os departamentos contábeis, financeiro, atuarial e de tecnologia da informação de uma seguradora.
Para as companhias que possuem sistemas legados antigos em ação, pode ser necessária uma transformação digital, com a implementação de novos sistemas, além de agregadores de dados e motores para cálculo da CSM.
Independentemente da troca de sistemas, é esperado que a área de riscos da seguradora precise atualizar o mapeamento de controles existentes em seus processos, principalmente no que diz respeito à formação das estimativas utilizadas no motor de cálculo.
Outro benefício trazido pela norma é a utilização de taxas de desconto atuais na mensuração dos passivos de seguros. Tal prática, porém, poderá evidenciar eventuais descasamentos entre ativos e passivos, resultando em maior volatilidade nos resultados financeiros. Assim, ajustes podem ser necessários no desenho de produtos ou mesmo na política para alocação de investimentos.
Com tantas mudanças, não somente a administração da seguradora mas também os investidores e outros usuários das demonstrações financeiras precisarão compreender como interpretar o balanço, os resultados e as principais métricas (KPIs).
As mudanças trazidas pela IFRS 17/CPC 50 não devem afetar as seguradoras de maneira homogênea. Os efeitos para seguros de vida e previdência são potencialmente distintos e mais complexos do que aqueles para seguros de danos (apólices empresariais, de condomínio, residencial, de automóvel, entre outras).
Assim, espera-se que os seguros de vida e previdência experimentem mudanças mais significativas, com a adoção do GMM, ou da Abordagem da Taxa Variável (que é uma modificação do GMM, aplicável a certos planos de previdência). A mensuração dos passivos por essas abordagens necessariamente implicará em uma visão de longo prazo dos negócios dessas companhias.
No caso de seguros de dano, por sua vez, é provável que as seguradoras estejam elegíveis a aplicar o modelo simplificado (Abordagem de Alocação de Prêmios, ou PAA, na sigla em inglês), o que deve resultar em critérios contábeis mais semelhantes àqueles hoje adotados no Brasil. O quadro da página 57 demonstra o modelo de critérios de elegibilidade da PAA.
## Quando a IFRS 17/CPC 50 se aplica?
De acordo com a IFRS 17/CPC 50, operações com características de um contrato de seguro podem abranger empresas de qualquer segmento, seguradoras ou não. Porém, considerando que a atividade de seguros é regulada no Brasil, diretrizes e considerações adicionais regulatórias para contratos de seguros podem ser requeridas.
A norma define que um contrato de seguro é aquele em que uma parte emissora aceita um “risco de seguro significativo” de outra parte (o segurado). No cenário de um evento futuro e incerto afetar negativamente o segurado, ele ou ela tem o direito de obter uma compensação do emissor.
Uma vez que a IFRS 17/CPC 50 não limita a aplicação do conceito acima somente às seguradoras, indústrias de uma forma geral devem revisar seu leque de soluções e analisar se houve a transferência de risco não financeiro na prestação do serviço. Um exemplo em que isso geralmente ocorre é em contratos de taxa fixa, nos quais o prestador fornece assistência rodoviária para reparar ou rebocar um automóvel em caso de pane.
## Quando aplicar o modelo PAA?
*Em algumas circunstâncias, o modelo simplificado ainda pode ser aplicado*
![Imagens Prancheta 1 cópia 41](//images.ctfassets.net/ucp6tw9r5u7d/1s4p0AjBc6e42o929UJgxs/3039cde7ebd128a48710e53999353dba/Imagens_Prancheta_1_c__pia_41.png)
É por situações como essa, e para evitar a sobreposição da norma de seguro com outras normas contábeis, que a IFRS 17/CPC 50 permite, mas não exige, que a seguradora aplique a IFRS 15 aos contratos com taxa fixa, e também traz as exclusões do requerimento para aplicação da norma abaixo listadas:
– Garantias emitidas diretamente por um fabricante, revendedor ou varejista em conexão com a venda de seus bens ou serviços a um cliente – exceto nos casos em que há uma garantia estendida, com a qual o revendedor transfere essa garantia a um terceiro.
– Ativos e passivos de empregadores sob planos de benefício a funcionários.
– Obrigações de benefícios de aposentadoria reportados por planos de aposentadoria de benefício definido.
– Direitos contratuais ou obrigações contratuais que dependem do uso futuro, ou direito de uso.
– Garantias de valor residual fornecidas por um fabricante, distribuidor ou varejista e uma garantia de valor residual de um arrendatário incorporada em um arrendamento.
– Contratos de garantia financeira, a menos que o emissor atenda a certos requisitos e tenha feito a opção irrevogável de aplicar a IFRS 17/CPC 50 ao contrato.
– Contraprestação contingente a ser paga ou recebida em uma combinação de negócios.
– Contratos de seguro em que a companhia é a segurada, a não ser que estes sejam contratos de resseguros mantidos pela companhia.
– Cartão de crédito e contratos semelhantes que atendem à definição de um contrato de seguro, a menos que a entidade reflita uma avaliação do risco de seguro associado a um cliente individual na definição do preço do contrato desse cliente.
## Tempo curto
Diante dos impactos da norma, os executivos do mercado de seguros precisam tomar decisões importantes, como construir um motor de CSM ou implementar uma solução de mercado, criar grupos de trabalho multidisciplinares, revisar a arquitetura de tecnologia de informação e escrever políticas contábeis sobre estimativas relevantes necessárias à implementação dos modelos de mensuração previstos na norma.
Atenção especial deve ser dada à retenção dos talentos que conhecem e dominam a nova normativa. A necessidade de profissionais especializados na IFRS 17/CPC 50 é global.
Com uma janela cada vez mais curta para a implementação da norma, é importante que a pauta seja tratada de maneira prioritária nas empresas que serão diretamente afetadas.