Dossiê HSM

Investimentos socioambientais: o debate das métricas

Em busca de indicadores padronizados que permitam comparações, o mundo está debatendo uma proposta do fórum econômico mundial e outra da união europeia para medir açÕES ESG. Conheça os prós e OS contras das duas e outras questões que devem ser consideradas.

Carlos de Mathias Martins

Carlos de Mathias Martins é engenheiro de produção formado pela Escola Politécnica da USP com...

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Fatores como a pandemia de Covid-19 e a propalada emergência climática exacerbaram a discussão sobre os temas socioambientais que afligem a humanidade. Por isso, o desempenho de empresas nos quesitos ESG vem monopolizando a pauta dos altos escalões corporativos, das altas esferas governamentais, da imprensa e até das mídias sociais. Progressivamente, companhias ao redor do globo são pressionadas a medir e a reportar a seus acionistas, e a outros stakeholders, iniciativas e riscos associados aos temas ESG. Mas isso está funcionando bem?

Os primeiros relatórios de sustentabilidade remontam à criação da Global Reporting Initiative (a famosa GRI), em 1997, pela ONG norte-americana Coalition for Environmentally Responsible Economies, com o apoio de organismos multilaterais como ONU e OCDE. De lá para cá, houve aperfeiçoamento significativo. Surgiram os relatórios integrados, que dissecam a estratégia de criação de valor e a gestão de risco das empresas. Agora, think tanks e reguladores de diversos países correm para esboçar novos critérios que sirvam de parâmetros para aferição do desempenho de corporações ante os indicadores ESG.
Por exemplo, de um lado, temos o Fórum Econômico Mundial (WEF) – aquele de Davos –, que liderou uma iniciativa de elaboração de um conjunto de métricas do capitalismo de stakeholders (em oposição ao capitalismo de shareholders), compiladas pelas quatro grandes firmas de auditoria do mundo: Deloitte, EY, KPMG e PwC. O documento Measuring Stakeholder Capitalism, de agosto último, propõe que as métricas ESG sejam baseadas em parâmetros vigentes para que sua adoção pelas empresas seja facilitada e acelerada.

Quais parâmetros vigentes? São cinco as instituições responsáveis pelos padrões de rotulagem ESG mais disseminados no mundo corporativo: Carbon Disclosure Project, Disclosure Standards Board, Global Reporting Initiative, International Integrated Reporting Council e Sustainability Accounting Standards Board. E as cinco firmaram o compromisso de trabalhar em uma perspectiva conjunta para padronizar essas métricas.

De outro lado, está o marco regulatório ESG mais completo e avançado, que vem a ser – para surpresa de ninguém – o da União Europeia (UE). Criado do zero, ao contrário da proposta do WEF de aproveitar o que existe, foi publicado em junho de 2019 e está programado para entrar em vigor no fim de 2021. Os países que criaram “El Real Decreto para el jamón ibérico” (Espanha), a “Denominazione di origine controllata e garantita” para vinhos (Itália), a “Appellation d’origine contrôlée” para queijos (França) e a “Reinheitsgebot” para a cerveja (Alemanha) não deixariam passar a oportunidade de criar regras e métricas para um tema tão relevante como ESG, afinal de contas.

Em julho de 2018, o Technical Expert Group on Sustainable Finance (TEG), montado pela Comunidade Europeia, começou a catalogar critérios para aferição de desempenho ESG de empresas e de investimentos. Um ano depois havia o sistema de classificação de atividades e métricas socioambientais da UE, que tem sido chamado de taxonomia – termo das ciências biológicas escolhido aparentemente para conferir caráter científico ao regramento europeu.

Que métrica vai emplacar como padrão? Na ausência de métricas definidas para outros países, seria natural que fosse escolhida a referência europeia. Ou seria a do Fórum Econômico Mundial?

## ESG Europeu: Meio ambiente domina
O documento europeu, denominado Taxonomy Technical Report, contém boas regras de preservação ambiental, economia circular e controle de poluição, desenvolvidas sob medida e com uma visão abrangente. Parece, porém, ter dois problemas.
O primeiro é focar principalmente os temas da redução das emissões de gases de efeito estufa e da mitigação e adaptação do impacto das mudanças climáticas nos ecossistemas do planeta. Nesse âmbito, estabelece métricas de intensidade de carbono para uma lista ampla de atividades rotuladas de ESG, praticadas em diversos setores econômicos.

E aí surge o segundo problema. Os setores abordados são os mais relevantes para o PIB da UE. E o regulador europeu utilizou o conceito de melhor tecnologia disponível para determinar tal conjunto de indicadores, conforme se lê no próprio documento. Esse “viés europeu” da taxonomia pode ter um impacto muito importante em outros países.

Por exemplo, conforme a taxonomia europeia, as manufaturas de cimento ao redor do globo devem estar atentas ao limite de emissão de 0,498 toneladas de CO2 por tonelada de cimento produzida – e essa métrica de intensidade de carbono será presumivelmente utilizada em contratos de exportação para a UE. Não será de surpreender que os critérios estabelecidos na taxonomia da UE sejam subterfúgio para justificar o protecionismo comercial europeu. Assim, o desafio de harmonizar acordos comerciais e critérios ESG muito provavelmente vai acabar em disputas na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Por fim, vale enfatizar que não há na taxonomia europeia critérios que abordem regras de governança corporativa das empresas ou empreendimentos. Aparentemente, para os reguladores europeus, o parâmetro G do ESG já está equacionado pela legislação societária dos países da UE. Ao menos nessa primeira versão da taxonomia europeia, tampouco há menção a qualquer indicador para avaliação de impacto social associado aos parâmetros ESG além das salvaguardas definidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). O documento traz uma mensagem clara: pactuar critérios objetivos com força de lei para aferição de avanço social atrelados a investimentos do setor privado é um desafio grande demais para a UE.

“Do no harm”. Vale jogar luz sobre um critério importante que permeia todo o relatório da UE: o conceito de contenção de danos ou “do no significant harm” (não fazer estrago significativo). Ele deve ser aplicado a qualquer atividade listada na taxonomia europeia. Assim, conforme estabelecido pelo regulador europeu, atividades que contribuam para a mitigação das causas das mudanças climáticas, por exemplo, devem ser avaliadas mediante os eventuais efeitos danosos para outros objetivos da taxonomia. Então, não basta a um projeto eólico offshore atender às métricas de redução de emissões de gases de efeito estufa. Para cumprir com os critérios da taxonomia, um projeto eólico offshore deve ser confrontado com os chamados efeitos de segunda ordem da atividade e assegurar que o empreendimento não causará dano significativo para a vida marinha.

Esse critério garante que, por mais meritória que seja, nenhuma atividade listada na taxonomia europeia será executada em detrimento de outro objetivo do regramento da UE. Em outros termos, empresas e investidores precisam saber avaliar todas as consequências, intencionais e não intencionais, das suas intervenções.

Em um mundo tão complexo e com demandas muitas vezes contraditórias, cumprir o “do no harm” é um desafio e tanto. Na prática, os reguladores, o europeu e os de outras jurisdições, terão de ponderar quais efeitos de segunda ordem são aceitáveis. Como o economista americano Thomas Sowell define com bastante argúcia, problemas complexos não têm solução, apenas trade-offs. Poderemos ter confiança em que o regulador escolherá o melhor trade-off possível?

## WEF: “name and shame” & “best in class”
Measuring Stakeholder Capitalism é o nome da compilação de 21 métricas consideradas críticas e 34 métricas expandidas, ou menos estabelecidas, feita pelo Fórum Econômico Mundial. Elas são divididas em quatro pilares: governança, planeta, pessoas e prosperidade. De uma maneira geral, as métricas são declaratórias e não classificatórias. Não existe no documento do WEF qualquer critério objetivo que possa ser utilizado para desqualificar uma empresa utilizando parâmetros ESG.

O interessante nessa abordagem é trazer uma relação de métricas de capitalismo de stakeholders (SCM, na sigla em inglês) que servem como roteiro para relatórios mais robustos e substantivos. Caso a utilização das SCM seja disseminada no mundo corporativo, tais relatórios permitirão comparar a performance ESG de empresas e ranqueá-las utilizando indicadores relevantes para cada atividade econômica.
Para usar um jargão dos fundos de investimento ESG e dos ativistas socioambientais, relatórios baseados nos critérios do WEF vão facilitar bastante a identificação das empresas “Best in Class” e aquelas para “Name and Shame”, os seja, as melhores e as piores. Isso pode ter um efeito colateral indesejado: tende a expor as empresas à cultura do cancelamento que se apoderou das mídias digitais. Assim, pode eventualmente afugentar companhias novatas no tema ESG. Afinal, reportar indicadores de diversidade e inclusão social não é tarefa trivial.

Por fim, vale registrar que “capitalismo de stakeholders” é uma expressão que funciona para a narrativa do WEF, mas, no fundo, é um paradoxo, porque não existem realmente assembleias de stakeholders com poder de voto.

## ESG, métricas e o dever fiduciário do gestor de investimento
Deveres fiduciários existem para assegurar que todo agente que administra dinheiro de investidores atue para resguardar os interesses de seus clientes e não os próprios interesses. Lealdade e prudência são os deveres fiduciários mais importantes para os agentes financeiros. Assim, se o gestor é defensor da causa ambiental, mas seu cliente só quer mesmo é ganhar mais dinheiro, o gestor precisa seguir o que o cliente determina.

Pois hoje há um debate em curso sobre a interpretação e a abrangência desses deveres. Defensores dos méritos dos investimentos rotulados ESG acreditam que incorporar critérios socioambientais em análises financeiras é um imperativo. Além disso, de acordo com alguns partidários dos investimentos ESG, é legítimo auferir rentabilidade menor em troca de maior aderência a critérios socioambientais.

Minha leitura particular é diferente, alinhada com a interpretação da Justiça dos Estados Unidos. Tal como sentenciado por unanimidade pela Suprema Corte norte-americana em 2014, os deveres fiduciários de lealdade e prudência devem ser interpretados como a defesa dos interesses financeiros e pecuniários de investidores e pensionistas. Ponto.

Adicionalmente, é importante observar que, nos últimos 30 anos, o Department of Labor dos Estados Unidos, equivalente ao Ministério do Trabalho brasileiro, tem se negado a autorizar investimentos que considerem benefícios não pecuniários para fundos de pensão regulados pelo governo federal daquele país. Conforme definição do próprio regulador norte-americano, o agente fiduciário deve tomar suas decisões com “o olhar exclusivo sobre os interesses dos participantes e beneficiários dos fundos”. Tal diretriz foi, ao que tudo indica, inspirada na doutrina mórmon que determina a leitura das escrituras sagradas com “an eye single to the Glory of God”. Ou seja, vai ser difícil mudar essa regra nos Estados Unidos para comportar o ESG.

Já os reguladores brasileiros elegeram uma linguagem indireta para definir a hierarquia dos benefícios não pecuniários aos investidores. O Conselho Monetário Nacional estabeleceu, em três resoluções distintas publicadas em 2014, 2018 e 2019, que as aplicações dos fundos de pensão devem observar, sempre que possível (grifo do autor), os aspectos relacionados à sustentabilidade econômica, ambiental, social e de governança dos investimentos. A definição de “sempre que possível” é obviamente muito elástica para ser utilizada como critério de aplicabilidade de qualquer regra.

## É o risco, mais do que a rentabilidade
Pode parecer contrafactual, mas há evidência robusta de que é baixa a correlação entre investimentos rotulados de ESG e rentabilidade. Nas palavras de Aswath Damodaran, professor da New York University e referência no estudo de finanças corporativas, a relação entre as métricas ESG e performance operacional de empresas é “muito tênue”.

Além disso, estudo recente publicado pelo banco Credit Suisse demonstra que, mesmo para empresas de primeira linha, existe uma disparidade bem grande na classificação ESG feita por agências de rating distintas. O Facebook, por exemplo, no critério ambiental, recebe nota baixa da Sustainalytics, nota média da FTSE e nota alta da MSCI.

Voltando a Damodaran, ele também considera falsa a afirmação de que empresas socialmente responsáveis vão crescer mais rápido ou gerar mais lucro quando comparadas a empresas que não observam parâmetros ESG. Não dá para dizer nem que sim, nem que não. Na mesma linha, o professor Damodaran reitera que não é possível afirmar, com base em dados, que fundos de investimento rotulados ESG apurem rentabilidade mais alta do que fundos tradicionais. Se isso acontecer, pode ser só uma coincidência.

A discussão não deveria ser pautada apenas pela rentabilidade, entretanto. Independentemente dela, o futuro dos fundos ESG está garantido – por causa da Regra da Minoria. Esse é um conceito bastante intuitivo elaborado pelo financista e escritor de origem libanesa Nassim Taleb, para demonstrar que um pequeno percentual de indivíduos intransigentes basta para que toda uma população termine por submeter-se a seus desígnios. Assim como basta um casal amigo kosher ir jantar na sua casa para que toda a comida do jantar seja kosher.

Dado que uma minoria de investidores ativistas, intransigentes e teimosos demandarão a utilização de métricas ESG para fundos de investimento, e dado que o custo de gestão de fundos ESG é apenas marginalmente mais alto do que o custo de gestão de fundos tradicionais, o carimbo ESG acabará sendo reivindicado para a totalidade dos portfólios.

Por fim, e bem mais importante segundo Damodaran, evidências empíricas demonstram alta correlação entre o mau comportamento de empresas no quesito ESG e a destruição de valor. Ou seja: o desafio do gestor de recursos de terceiros, seja ele administrador de uma empresa ou de um fundo de investimentos, é justamente aplicar a ferramenta de análise ESG para identificar risco de ruína.

Em outras palavras, considere um cenário no qual eventos derivados das mudanças climáticas possam ser quantificados e traduzidos em risco de investimento. Nesse contexto, e no cenário plausível de limites compulsórios às emissões de gases de efeito estufa no médio prazo, parece arriscado para um fundo de investimentos manter ações de empresas que desenvolvam atividades associadas à mineração de carvão. Não parece?

## O maior desafio de todos
Parafraseando mais uma vez o economista americano Thomas Sowell, a razão pela qual tantos analistas e ativistas externam interpretações equivocadas sobre os critérios ESG não tem relação com a complexidade do tema, e sim com o fato de que esses indivíduos não querem métricas baseadas em evidências empíricas se elas os deixarem insatisfeitos emocionalmente. Eles querem vilões para odiar e heróis para amar. Os reguladores terão de lidar com essa idiossincrasia.

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