Quando fez seu doutorado sobre modelos assistenciais para idosos, a médica Martha Oliveira conheceu de perto a Buurtzorg, empresa criada em 2006, nos Países Baixos, por Jos de Blok. Um dos negócios de autogestão mais emblemáticos do mundo, a Buurtzorg tem desde o ano pandêmico de 2020 uma versão brasileira, mais precisamente carioca: o Grupo Laços, do qual Oliveira é cofundadora e CEO.
O autor belga Frederic Laloux tornou a Buurtzorg famosa em seu influente livro *Reinventando as Organizações*. Do outro lado do Atlântico, o negócio que serviu de modelo para a Laços já tem cerca de mil times, formados por enfermeiros espalhados por toda a Holanda para ficarem mais próximos e conectados aos idosos. O serviço prestado é assistencial, como um método resolutivo, que traz autonomia (de pacientes e profissionais) e visa à independência dos idosos: eles permanecem em suas residências e mantêm tarefas habituais.
Esses times são autônomos, ou seja, cada um faz sua própria gestão de tudo – orçamento, pessoal, carteira de clientes, frequência e tempo de visitas etc. Assim a empresa coloca o poder de tomar decisões na ponta, em vez de seguir a tradicional maneira hierárquica de fazê-lo. Apenas uma reduzida equipe na central dá o apoio administrativo de que precisarem. (Pode-se fazer uma comparação com um CSC, um centro de serviços compartilhados.)
Por meio de um acordo de cooperação internacional, assinado em 2020, o método Buurtzorg chegou ao Brasil, com algumas adaptações necessárias para se encaixar à cultura local. É assim nos 25 países em que ele está presente hoje. O acordo prevê capacitação, observação de resultados e, em contrapartida, o pagamento de royalties. Há liberdade de criar e desenvolver tecnologia, inclusive de maneira cooperativa.
A Laços Saúde, nome da unidade de cuidados a idosos, está presente em quase todo o estado do Rio de Janeiro, na Grande São Paulo e na Baixada Santista (SP), além das regiões metropolitanas de Salvador (BA), Aracaju (SE) e Brasília (DF). Cada time tem de dez a 12 enfermeiros, sendo que alguns contam com equipe multidisciplinar (médico, nutricionista e psicólogo, entre outros), dependendo do programa acertado com a operadora de plano de saúde.
No time de apoio, trabalham apenas cinco pessoas. “A recomendação da Buurtzorg é de uma equipe enxuta na parte administrativa, para evitar a burocratização”, diz Oliveira. Além disso, há três “enfermeiras-coaches”, a mesma nomenclatura usada na Holanda. “Não há hierarquia. A função da coach é ser a guardiã das boas práticas e do mesmo padrão entre os times.”
## Desafios e adaptações
As orientações principais para a operação vêm dos Países Baixos. O escritório de apoio cuida da captação e do fechamento de contratos, que são repassados para os times conforme a localização geográfica. Essa foi uma iniciativa para facilitar o desenvolvimento do negócio no Brasil. A regionalização é importante, principalmente pelo tempo de deslocamento e porque cada time entende as necessidades específicas de sua região. Se é assim na Holanda, precisa ser assim ainda mais no Brasil, um país que é muito maior. Há, porém, três grandes desafios que a Laços enfrenta.
__O primeiro desafio__ diz respeito à cultura da autonomia, como explica Oliveira. “A autonomia está sempre atrelada à responsabilidade. Quanto mais autonomia, mais responsabilidade.” É um modo de trabalho para o qual nem todos estão preparados, que nem todos desejam, ela reconhece. Para montar uma nova equipe, portanto, querer abraçar a autonomia e a corresponsabilidade acaba sendo um pré-requisito. Ainda há outro aspecto cultural, relacionado à carreira. Não existe hierarquia no modelo da Buurtzorg. “A pessoa não vai sair de coordenadora para ser gerente e depois diretora. O crescimento vai se dar no próprio conhecimento para desempenhar o trabalho cada vez melhor, sem ganhar um outro título”, explica Oliveira.
Como funciona o método buurtzorg
Ideia é fomentar autonomia e autogestão entre enfermeiros
A Laços Saúde atende dois perfis de clientes: particulares (B2C) ou operadoras (B2B). Ela cobra por pacote de linha de cuidado para os dois tipos. Uma enfermeira faz a primeira visita em que mede, em escalas, vários quesitos, como memória, aspectos funcionais, medicações, ambiente de relacionamento etc., o que gera um placar de risco do paciente. Esses dados indicam a necessidade de cuidado, que vai do nível 1 (uma visita por mês) até o nível 8 (três visitas por dia). Isso define o valor cobrado pelo serviço. Há também outro modelo, exclusivo para operadoras, feito por captação. O serviço fica disponível para toda a base de beneficiários, a um valor único por grupo de pessoas.
__O segundo desafio,__ bem delicado para a Laços, tem sido a falta de profissionais de enfermagem especializados em envelhecimento no Brasil. Apesar de a tendência de envelhecimento populacional estar evidente pelo menos desde 2002, quando se percebeu que o número de pessoas 60+ aumenta 500% em 40 anos, não houve um esforço de formação de mão de obra para corresponder a essa tendência. “Então, nós desenvolvemos um programa de capacitação. Criamos até uma especialização em gerontologia {estudo dos fenômenos fisiológicos, psicológicos e sociais relacionados ao envelhecimento do ser humano}”, diz Oliveira. A estratégia de capacitação da Laços é contínua. São 16 horas de treinamento por mês. Com um detalhe: o treinamento é remunerado. Os enfermeiros ganham para aprender.
Além de se aprofundar nas questões gerontológicas, os profissionais são treinados em outras frentes, inclusive para atuar como introdutores digitais. Ou seja, eles ajudam seus pacientes a usar os recursos tecnológicos disponíveis que auxiliam no acompanhamento profissional.
__O terceiro grande desafio,__ segundo a executiva, é a nomenclatura “home care”. Bem estabelecido na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá, o termo costuma ser associado, no Brasil, a ter praticamente um hospital dentro de casa. “Não havia uma caixinha para nos enquadrarmos. Então, tivemos primeiro que criar a cultura do cuidado em casa, para que servia, como cuidar, como organizar…”, lembra Oliveira.
O mais semelhante que temos ao conceito proposto pela Buurtzorg é o agente comunitário de saúde, um profissional que, por sua vez, não existe nos Países Baixos. A diferença do agente brasileiro, que visita periodicamente as pessoas de casa em casa, é que ele é mais um comunicador, que transmite as situações para o posto de saúde da comunidade fazer os encaminhamentos necessários, caso a caso. No modelo holandês, quem visita é o enfermeiro, que toma as devidas decisões relacionadas a procedimento, assistência ou encaminhamento.
Na Holanda, buurtzorg já tem mil times
Empresa foi criada há 17 anos e virou referência em autogestão
A Laços foi um dos principais cases apresentados no Festival Teal Brasil 2022, que contou com a presença das cofundadoras Martha Oliveira e Iohana Salla, além da enfermeira holandesa Gertje van Roessel. Atuando como coach na Buurtzorg desde a sua fundação, em 2006, van Roessel, que hoje é coordenadora internacional da Buurtzorg, contou que os desafios enfrentados pela Laços não são uma exclusividade do método no Brasil. Nos Países Baixos, aplicar o princípio também não foi nada fácil, ainda mais considerando que isso foi há 17 anos.
De acordo com a coach, os profissionais de enfermagem da Holanda não estavam nem estão hoje acostumados a trabalhar em times autogeridos. Mas isso deve mudar. “A autogestão está se tornando o novo normal. Esperamos que seja o futuro. Sabemos que começamos algo especial, como a Martha está fazendo com a Laços no Brasil”, diz van Roessel.
No início, a Buurtzorg contava com apenas uma equipe de quatro enfermeiras trabalhando em apenas um bairro da capital, Amsterdã. “Logo, outras enfermeiras, ouvindo o que estava acontecendo com essa nova pequena empresa, demonstraram interesse em também montar suas equipes”, lembra. Hoje, são cerca de mil times, com quase 10 mil funcionários, além de 50 pessoas no escritório cuidando dos processos administrativos.
O contentamento se espalhou, mas não foi fácil. “Há, muitas vezes, conflitos dentro das equipes; não é tudo cor-de-rosa como alguns pensam. Mas, no todo, a beleza de uma boa colaboração é refletida em uma boa qualidade no cuidado e na alegria dos nossos pacientes”, afirma a coach holandesa.
Por seu ineditismo em território nacional, Oliveira conta que teve que divulgar bastante o formato do negócio da Laços. “Quando você traz algo novo, tem que falar muito sobre o conceito e mostrar resultados”, explica. O modelo causa estranheza até mesmo para as enfermeiras contratadas. “Mas a dúvida é só até a primeira visita na casa do paciente. Conforme avança, surge o vínculo do profissional com o paciente e vice-versa”, garante a executiva.
## Diversificação é importante aqui
Como aconteceu com a Buurtzorg, o Grupo Laços, de Martha Oliveira e mais quatro sócios, logo diversificou sua atuação no atendimento domiciliar. A razão para isso foi a identificação de novas oportunidades.
Eles ainda não divulgam números de investimento e de faturamento, mas dizem que, com o crescimento do negócio e o interesse despertado no mercado, serão capazes de revelá-los ainda em 2023.
Entre as frentes do grupo está a Lacon, que é focada em enfermagem para oncologia. Segue a mesma metodologia, mas com diferentes recursos humanos e com treinamento específico.
A Laços Multi agrega equipes multidisciplinares para tratar demandas específicas de algumas operadoras de planos de saúde.
Já a Laços Data segue o modelo da iCare, da Buurtzorg. A unidade desenvolveu um prontuário eletrônico de navegação, com base em dados, e um aplicativo, chamado Matinê, que se propõe a ser uma espécie de clube digital de promoção de saúde e entretenimento. Ele é organizado por grupos de afinidades e voltado para pessoas acima de 60 anos. O objetivo é minimizar a solidão, promover bons hábitos de saúde e, ainda, monitorar o paciente a distância.
Por meio da Laços Data, o grupo desenvolveu uma plataforma de telemedicina para as enfermeiras terem contato com seus pacientes, além de uma assistente virtual, chamada Larissa. Essa enfermeira digital fica disponível o tempo inteiro para tirar dúvidas e enviar dicas, lembretes e vídeos por WhatsApp, entre outras funcionalidades. Para Oliveira, a noção de que os idosos não lidam bem com tecnologia cai por terra. “Eles amam. Só precisamos de um pouco de paciência e dedicação.”
O nome “Buurtzorg” tem significado: cuidados com a vizinhança. “É a ideia de estar muito próximo das pessoas”, diz Oliveira. Laços também. “Quando trouxemos essa empresa para o Brasil, queríamos dar essa ideia de vínculo, daí o nome.” Está avançando bem nesses três anos.
__Leia também: [Consciência, a nova eficiência na era da IA](https://www.revistahsm.com.br/post/consciencia-a-nova-eficiencia-na-era-da-ia)__
Artigo publicado na HSM Management nº 156.