Dossiê HSM

Liderança a muitas mãos

O perfil do líder que valoriza a colaboração e sabe trabalhar em parceria é diferente do tradicional? A pesquisa que deu origem ao livro Humanos de Negócios mostra que sim
Jornalista, fundador e CEO da Profile PR e autor de Humanos de Negócios: Histórias de homens e mulheres que estão (re)humanizando o capitalismo.

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Dizem que o velho, antigo, precisa morrer para o novo surgir. Impossível não pensar sobre isso enquanto faço aqui o exercício de listar as características do líder que valoriza a colaboração a partir do aprendizado com 27 entrevistados do livro Humanos de negócios. Qual o perfil de liderança que precisamos para esta fase da humanidade, em que teremos que consertar os estragos das últimas décadas? Que características precisam ser desenvolvidas? Em quem podemos nos inspirar?
Penso na metáfora dos “James Bonds corporativos”: homens de negócios que têm “licença para matar” desde que entreguem resultados para os acionistas. No mundo inteiro (há muito tempo) as corporações criaram modelos de negócio altamente extrativistas (seja de recursos naturais ou mesmo de recursos humanos, como o nome não faz nem questão de esconder), apoiados no marketing para gerar necessidades de consumo inexistentes nas pessoas. Com isso, entramos num caminho de exacerbação de desigualdades sociais e destruição de recursos naturais.

Em momentos de incerteza sobre as melhorias que precisamos fazer no capitalismo para criar um modelo mais igualitário e inclusivo para todos, vale olhar para trás em busca de respostas. Nos Vedas, consideradas as escrituras mais antigas da humanidade e base para muitas linhagens filosóficas e religiosas, já havia uma espécie de modelo mental para tentar organizar a incansável vaidade humana, o
Purusartha, com quatro conceitos para uma “vida com sentido”. O primeiro deles é o Dharma, a manifestação da natureza primordial de um indivíduo em uma vida virtuosa, ética e moral. O segundo é Kama, e tem a ver com o prazer, como viver aproveitando esta existência. Moksha, o terceiro item, trata da busca pela liberação das causas de sofrimento do mundo que conhecemos. E há um quarto conceito, que interessa diretamente aqui: Artha. É uma palavra que pode ter diferentes significados, como sentido, objetivo, propósito ou mesmo essência, dentro de uma visão ampla acolhendo “meios de vida”. Na sempre simplista tentativa de sintetizar, podemos interpretar como sendo os recursos materiais que são necessários à sobrevivência. São ensinamentos que se repetem em cosmovisões, filosofias e religiões pelos quatro cantos do planeta, mas parecem ter passado ao largo das teorias e dos modelos de gestão corporativos baseados na busca incessante pelo lucro.

## Líderes regenerativos
A colaboração entre empresas, academia, governos e setor social é condição essencial para a solução de desafios complexos que não podemos mais deixar de enfrentar. Os líderes empresariais atuais estão à altura do desafio? Nem todos. Mas a boa notícia é que muitos já entenderam essa necessidade e estão em busca de adaptação. Assim como a revolução não será televisionada, os líderes que estão promovendo a mudança não chamam a atenção necessária na mídia. Os movimentos de transformação estão acontecendo de maneira graduada e consistente ao redor do mundo por novos líderes. É preciso até uma nova linguagem para defini-los, inclusive com palavras que remetem à natureza ou ao orientalismo: dharmic, life-affirming e regenerative leaders (líderes dármicos, pró-vida e regenerativos).

No meio da pandemia, tive a oportunidade de entrevistar Vincent Stanley, diretor de filosofia da fabricante de roupas patagonia. Ele mencionou que, em função do fechamento dos armazéns da empresa e do comércio online, por falta de condições para os funcionários trabalharem no estoque, a empresa iria diminuir de tamanho – 50% em vendas em um ano. E tudo bem, na visão dele, pois se trata de um processo orgânico. Certa vez, inclusive, mudaram os processos da empresa para não usarem mais algodão plantado com agrotóxicos. Com a transição para o orgânico, os negócios foram impactados. Na época, o CEO Yvon Chouinard disse que, se era para usar algodão que faz mal para as pessoas, ele preferia não ter uma empresa. Além disso, nunca se definiram como uma empresa sustentável, “porque ninguém pode ser. Somos conscientes do nosso impacto”. E, mais recentemente, começaram a investir em alimentação no Patagonia Provisions, pois acreditam que a alimentação faz parte de muitas cadeias no mundo inteiro e tem um potencial regenerativo enorme. Nessa linha, são fundadores da Regenerative Organic Alliance, criada para estimular um capitalismo regenerativo.

A liderança da Patagonia embute muitas das características que elenquei dos humanos de negócios de maneira empírica e observando alguns padrões. Mas, antes de listar essas características, vale observar com atenção especial a emergência das palavras empatia e compaixão. Espécie de palavras tabu no mundo dos negócios, em geral duro, com características masculinas, empatia e compaixão estão na base das principais religiões: budismo, cristianismo, hinduísmo, islamismo e até xamanismo. Em diversos ensaios e pesquisas sobre a liderança para um mundo pós-covid-19, é quase unânime a presença dessas características. O significado disso é um grande reconhecimento da necessidade de olhar além do ego para a to­mada das melhores decisões.

## A inspiração da natureza
Se a natureza está repleta de exemplos de colaboração, por que insistimos até aqui em ignorá-los? A própria palavra humano vem do latim humus, que significa solo. Demonstra um entendimento sobre as relações harmônicas entre homem e natureza que possivelmente perdemos em alguma dobra do tempo. Uma das mais intrigantes descobertas de uma linha de pesquisa recente é sobre a capacidade de as árvores trocarem informações entre si. Na Wood Wide Web (o termo é uma analogia à World Wide Web, a internet), as árvores e outras espécies, incluindo fungos, trocam uma imensa quantidade de informação. Árvores mais fracas “pedem” nutrientes como nitrogênio para se alimentar e recebem a partir das outras árvores, “comandadas” por uma árvore-mãe que cumpre o papel em um determinado território. Na pesquisa, os cientistas buscaram entender uma espécie de planta que é diferente das demais, chamada Voyria. Ela não consegue processar a clorofila e precisa de nutrientes de outras para sobreviver. Ela se pluga à rede de fungos e pega para si os nutrientes sem dar nada em troca, uma espécie de hacker da Wood Wide Web.

No livro Underland (sem tradução para o português), Robert Macfarlane pergunta ao pesquisador Merlin Sheldrake se ele compararia essa rede de fungos a uma visão mais “mercado-livre” (a floresta conectada como um sistema competitivo) ou a uma visão “socialista” (em que as árvores cuidam uma das outras, compartilhando recursos pela rede de fungos). A resposta de Merlin é genial: “mais do que sobre as relações da natureza, estamos falando da natureza das relações”. Em uma provocação ainda mais incisiva, o pesquisador fala que, para além de socialismo, comunismo, capitalismo etc., precisamos de uma nova linguagem para entender as redes da natureza. E se as respostas para os desafios atuais forem algo além de capitalismo ou socialismo?

Talvez novas narrativas possam ajudar a compreender os desafios que precisamos enfrentar. Desafios de um mundo muito mais interconectado do que fragmentado. Precisamos, como nas palavras de R. Buckminster Fuller, “fazer o mundo funcionar para 100% da humanidade no menor tempo possível, por colaboração espontânea, sem dano ecológico e sem prejudicar ninguém”. É um desafio fantástico, que demanda novos líderes, novas palavras, novos olhares. Como nas 12 atitudes elencadas a partir das histórias dos entrevistados para o livro Humanos de negócios.

1. Humanidade
Parece óbvio, mas é importante resgatar essa característica. Um curioso estudo da Bond University aponta que entre os CEOs a taxa de sociopatia (21%) é bem maior do que na média da população (entre 1-4%). Sociopatas são pessoas que não demostram cuidado ou preocupação com o outro. Os humanos de negócios decidiram não abrir mão de sua humanidade para resgatar o verdadeiro espírito do trabalho, servir às pessoas e não ao capital. Por isso, o herdeiro responsável pelo sucesso empresarial da Porto Seguro, Jayme Garfinkel resolveu investir em soluções para a questão prisional do Brasil e criou o Instituto Ação pela Paz. Ele acha que no futuro vamos olhar para as prisões e nos perguntar, assim como no Holocausto, por que ninguém fez nada para resolver as péssimas condições de vida nos presídios. Trabalhar com esse tema implica mobilizar parceiros governamentais, do terceiro setor e da iniciativa privada.

2. Inconformidade
Na década de 1980, a inglesa Safia Minney, inconformada com os impactos da indústria da moda, começou a desenvolver uma cadeia sustentável apoiada no algodão orgânico. Foi um movimento pioneiro no mundo inteiro, que resultou na criação da empresa People Tree, na Inglaterra e no Japão. Empreendedora social, Safia investiu boa parte da sua vida para mapear os parceiros em um grande projeto de colaboração entre países para provar que a indústria da moda pode funcionar de um jeito alternativo, cuidando do meio ambiente e das pessoas. Hoje, o tema moda sustentável já é parte das estratégias das grandes cadeias de moda.

3. Senso de justiça
A carioca Thais Corral seguiu pelo mesmo caminho e, no início da década de 1990, com outras 11 mulheres, criou o WEDO, grupo decidido a elevar a voz feminina e o debate sobre justiça social, econômica e ambiental. Junto a ativistas como a americana Bella Azbug, a queniana (e prêmio Nobel) Wangari Mathaai e a indiana Vandana Shiva, mobilizou uma série de organizações para criar o Planeta Fêmea, um hub para discutir temas como direitos humanos, população e desenvolvimento humano, mulheres, paz, assentamentos humanos e segurança alimentar. Ela continua militando nessa causa no Sinal do Vale, um espaço criado para explorar práticas regenerativas de negócios.

4. Resiliência
Quem vê a multinacional brasileira Natura e o grupo Natura&Co, que surgiu dela a partir da incorporação das marcas Aesop, The Body Shop e Avon, não imagina a quantidade de resiliência depositada pelo fundador Luiz Seabra lá no início da década de 1970. Ele conta que semanalmente seu sócio inicial falava em fechar a empresa. Seabra acreditava que poderia construir algo muito grande e chegou a vender seu único patrimônio na época, um Fusca, para aumentar sua participação na companhia. O próprio crescimento da Natura, uma companhia fundamentada na crença da interação com a natureza, é um grande exemplo de resiliência no envolvimento de parceiros de diversos setores para criar oportunidades econômicas que mantêm a floresta em pé.

5. Empatia
O olhar para o outro, para valorizar o que faz sentido para aquela pessoa, para então construir algo em cima, é chave para a construção de novos caminhos e possibilidades. A paulistana Paula Dib traz um exemplo de empatia com os projetos em comunidades ao redor do Brasil, que lhe renderam prêmios internacionais e até uma parceria com o artista ativista chinês Ai Wei Wei. Ela costuma passar temporadas de três meses em pequenas comunidades para entender como é a dinâmica de relacionamento entre as pessoas para então propor projetos de valorização e geração de renda para esses grupos.

6. Ética
O argentino Ernesto Van Peborgh atuou por muitos anos no mercado financeiro comprando empresas falidas, aplicando choques de gestão e depois vendendo as companhias por um preço muito melhor. Uma maravilha do ponto de vista capitalista, um desastre para centenas de pessoas que perdiam o emprego no processo. Um dia, Peborgh ouviu de Stephan Schmidheiny, fundador da Avina, um questionamento sobre que cuidados ambientais e sociais ele aplicaria nos US$ 5 milhões que estava recebendo para seu fundo.
Depois de dez anos tentando entender a pergunta, Peborgh compreendeu que era um predador, em suas próprias palavras, e saiu em busca de uma jornada de reinvenção, que o levou ao posto de CEO do Capital Lab, fundo que investe em projetos regenerativos. Nessa iniciativa, é parceiro de John Fullerton, criador do Capital Institute, organização que defende a aplicação de princípios de sistemas vivos para repensar a economia e as finanças. Fullerton criou a iniciativa depois de mais de 20 anos de carreira no JP Morgan, onde percebeu que era necessário repensar a visão de ganhar dinheiro com dinheiro. Em 2018, criou a Regenerative Communities Network para estimular a emergência de comunidades regenerativas e de escala biorregional ao redor do mundo.

7. Comunicação ativa
É fundamental inspirar pelas histórias para mostrar que é possível fazer de um jeito diferente. Muitas vezes quase com características de pregação. Nos primeiros anos da Feira Preta, Adriana Barbosa se apoiava em uma comunicação boca a boca e em flyers distribuídos por ela própria por São Paulo. Hoje, a Feira Preta é a maior feira afrodescendente da América Latina, cuja organização envolve uma diversidade de parceiros e apoiadores para acontecer. No início dos anos 2000, a cientista política carioca Ilona Szabó liderou no Instituto Viva Rio uma intensa campanha de mobilização contra o desarmamento no Brasil. Ela lidava com o que chamava de 4Ps: padres, pastores, policiais e políticos para levar a ideia adiante. No total, recolheram 443 mil armas de fogo, na segunda maior campanha de desarmamento do mundo.

8. Idealismo
Os líderes colaborativos não se deixam impressionar por frases ou afirmações que reforçam o status quo. O paulistano Daniel Izzo percebeu que estava apenas trabalhando para gerar mais valor para acionistas que ele nem mesmo conhecia em uma multinacional. Foi quando decidiu dar uma guinada na carreira para explorar o tema da sustentabilidade. Não deu certo na multinacional em que trabalhava. No lugar de abandonar o que acreditava, partiu para criar algo. Assim nasceu o primeiro fundo de investimento de impacto do Brasil, a Vox. À frente da Vox, Izzo ajudou a liderar a criação de um ecossistema de finanças de impacto em colaboração com muitas organizações no Brasil.

9. Tomada de riscos
Quando viu seu império editorial de revistas especializadas falir em função da bolha da internet, o britânico-americano Chris Anderson resolveu comprar uma organização até então conhecida por um pequeno grupo de pessoas, o TED. O então fundador Richard Saul Wurman, líder carismático da conferência, queria fazer outras coisas. Anderson resolveu apostar, mesmo com um medo enorme de fracassar. Em pouco tempo, transformou o TED no fenômeno de mídia com palestras que chegam a milhões de visualizações, influenciando o panorama de inovação mundial. Hoje, o TED tem várias iniciativas colaborativas, entre elas o TED Countdown, que reúne dezenas de ONGs, institutos e empresas parceiras para discutir saídas para a crise climática.

10. Intuição
A cobrança por resultados trimestrais, na maneira como o mercado está organizado, exige a observação de uma série de ferramentas e padrões de gestão que pode afogar a intuição. Depois de uma sólida carreira em uma agência de comunicação e relações públicas, a indiana Nilima Bhat percebeu que caía muitas vezes no “lugar de massagear a verdade”. Certo dia, sonhou que, depois de ter enfrentado e vencido o câncer do marido, precisava trabalhar o empoderamento das mulheres e ao mesmo tempo divulgar o conhecimento ancestral da Índia pelo mundo. Assim, nasceu a Liderança Shakti (poder feminino), para ajudar a desenvolver a dimensão feminina em homens e mulheres, ajudando a tornar os líderes genuinamente mais cooperativos, criativos e inclusivos.

11. Ancestralidade
Os humanos de negócios carregam uma história de conexão com a família. Demonstram vínculos muito fortes e aprendizados que levam adiante em suas jornadas. Vínculos que mais tarde extrapolam para a capacidade de colaborar e fazer parte de algo maior. O arquiteto croata Marko Brajovic conta sobre sua infância idílica de conexão entre família e natureza para falar da origem de sua arquitetura inspirada na natureza. A executiva Patricia Santos aprendeu sobre os desafios e os preconceitos de raça e cor no berço da família, e isso inspirou a criação da EmpregueAfro, para diminuir as diferenças de raça no ambiente empresarial. A preocupação em cuidar e honrar o passado para projetar o futuro é bastante presente nos líderes preocupados com o todo e com capacidade de colaborar.

12. Espiritualidade
O argentino Alex Pryor resolveu trabalhar com orgânicos enquanto estudava na California Polytechnique State University, ao contrário da maioria da turma que se encaminhou para o ramo da alimentação industrial na década de 1990. Ele reforçou o vínculo com a erva-mate, desenvolvido na infância com os pais, e resolveu fazer disso um negócio em harmonia com as populações indígenas da região dos Pampas na América do Sul. Com os sócios da Guayaki, Pryor garante condições para as comunidades gerarem valor com o plantio regenerativo de erva-mate orgânica que abastece a produção de um negócio em plena ascensão na América do Norte, presente em grandes redes nos EUA e Canadá. Alex demonstra uma relação forte de conexão com a natureza para reforçar sua crença e respeito às plantas e interconexão com o planeta, fonte de tudo o que temos.

## Reconexão com o todo
Falar de um novo ambiente de negócios é falar de uma nova história. De reinvenção, de aventura, de esperança. Por mais curiosos ou desconectados do mundo dos negócios que alguns termos possam parecer, é justamente este o ponto aqui. Ou encontramos nosso caminho de reconexão com o todo, com a natureza, com novas narrativas, ou nosso caminho de separação dará o tom dos próximos anos: um mundo tecnológico, distópico e árido.

Natureza é o que nós somos, é o que possibilitou estarmos aqui, fruto de bilhões de anos de evolução: o exemplo mais bem acabado de colaboração, interconexão e interdependência. Enxergar isso é a chave para encontrar um caminho de oportunidades de regeneração e reinvenção para criar uma nova humanidade, capaz de entender e agir sobre os desafios que temos pela frente. É uma oportunidade fascinante e única que demanda a atuação de novos líderes – colaborativos, acima de tudo. Líderes que representam o novo que está nascendo.

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