Dossiê HSM

Mudança climática, mudança nos negócios

O modo de produção, o consumo e a vida atuais impactam seriamente o equilíbrio ambiental e prejudicam a população mais vulnerável. Enfrentar a discriminação histórica dos grupos minorizados é um imperativo moral e econômico, que também cabe às empresas

Tarcila Ursini

Conselheira de empresas e organizações da sociedade civil, mentora e investidora em startups de impacto,...

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Por princípio, a reflexão sobre o zeitgeist começa por uma pergunta: que fatores percebemos na ciência, na cultura, nos comportamentos e no pensamento econômico que determinam o espírito de nossa época? Eles nos indicam que esta é uma época de profundas transformações tecnológicas, mas não só. O cenário contempla também transformações sociais, ambientais e comportamentais, cujos sintomas são a diversificação das vozes, ao mesmo tempo em que aumentam as polarizações e manipulações de dados; avanço da ciência e da saúde, em paralelo ao avanço da desigualdade e da pobreza; consenso global sobre a emergência climática e o declínio da biodiversidade, simultâneos a esforços ineficientes para endereçar essa que deve ser a maior crise atual. De forma geral, aspectos que desafiam a vida em sociedade.

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 811 milhões de pessoas no mundo passam fome, enquanto mais de 30% dos alimentos são desperdiçados (2021). O setor agrícola consome 70% da água potável do mundo e usa 50% das terras férteis, e eventos extremos devido à emergência climática podem afetar profundamente a produção futura. O que fazer se a população mundial vai aumentar 40% a 50% nos próximos 20 a 30 anos?

Buscamos respostas para perguntas como: por que nossas ações, coletivamente, geram resultados que tão poucas pessoas desejam individualmente? Será que nós, seres humanos, não conseguimos viabilizar uma forma mais inteligente de produzir, consumir e viver que promova ganhos à sociedade e ao planeta? Há modelos que permitam mais inclusão social, diminuição da pobreza, mais justiça e democracia, preservação ambiental e melhor qualidade de vida para todos? Qual o papel que cada um de nós decide ter nesse contexto?

Em 2013, [Otto Scharmer, professor do MIT e criador da Teoria U](https://www.opendemocracy.net/en/transformation/from-ego-system-to-eco-system-economies/) – e uma das principais vozes de nosso tempo – já dizia que vivemos um paradigma ultrapassado de pensamento econômico, inadequado para lidar com o tamanho e a complexidade das crises que enfrentamos. E os impactos podem ser resumidos em três grandes crises: ecológica, social e espiritual.

A crise ecológica é provocada por nossa desconexão com o meio ambiente. Deixamos de entender que também somos parte da natureza e tratamos todos os recursos naturais como se fossem infinitos – o que levou as gerações atuais a usarem uma vez e meia a capacidade de regeneração do planeta em suas atividades econômicas.

Já a crise social se dá por nossa desconexão com o outro e com a vida em comunidade, gerando taxas crescentes de pobreza, desigualdade, fragmentação e polarização. Por fim, a crise espiritual ocorre por nossa desconexão com quem realmente somos, com nossos talentos mais genuínos e únicos, com nossa intuição, valores e sentidos mais profundos. Ela se manifesta no aumento das taxas de doenças mentais e na disparidade entre indicadores de PIB e de bem-estar e de felicidade das pessoas.

Para Scharmer, os imperativos econômicos de nosso tempo exigem a evolução de um estado de consciência baseado no ego (o atual) para outro, baseado no eco. Parafraseando Einstein, o problema do capitalismo de hoje é que estamos tentando resolver problemas com a mesma consciência que os criou.

Como podemos, então, construir caminhos pioneiros em uma nova economia? E qual o papel das empresas – e de suas lideranças – para protagonizar o futuro dentro desse espírito?

Meu chamado, há 23 anos, encontrou eco no caminho em que o setor privado – uma grande força motriz deste século – pode ser protagonista da mudança, sem a necessidade de dilemas entre retorno econômico, inclusão social, preservação ambiental e propósito, uma via de convergência entre o capital e a dimensão socioambiental. De lá para cá, vemos surgir movimentos e organizações no mundo todo que se estruturaram a partir de uma nova forma de fazer negócios, de um novo olhar estratégico, mais completo do que o bottom line financeiro.

Mudar uma mentalidade exige perseverança. Por muito tempo, a pauta socioambiental foi tratada como periférica, algo que vemos cada vez menos. Sua importância ficou mais clara em 2004, quando foi feita, pela primeira vez, [a menção ao termo ESG pelo então secretário-geral da ONU](https://www.unepfi.org/fileadmin/events/2004/stocks/who_cares_wins_global_compact_2004.pdf), Kofi Annan.

Começava a mudança: o ESG não era mais impulsionado apenas por ativistas e ONGs, mas pelo mercado de capitais e de investimentos, com todo seu pragmatismo. A sigla passou a incorporar os princípios que orientam estrategicamente os negócios, constituindo uma ferramenta de gestão de diferentes riscos: reputacional, regulatório e até de perda de funcionários.

Tais princípios são igualmente relevantes para os resultados das organizações. Afinal, este é um tempo em que clientes deixam de se relacionar com marcas que não estão em acordo com seus valores e visão de mundo. E em que os investidores se mostram preocupados se ativos a que estão expostos vão produzir valor no futuro.

__Leia mais: [Ação social: foco no microcrédito](https://www.revistahsm.com.br/post/acao-social-foco-no-microcredito)__

## A revolução socioambiental
Uma das preocupações de ativistas é se, ao tratar o ESG por essa perspectiva mais pragmática e orientada a negócios, ele perderia essência e profundidade. Eu vejo que há, sim, um risco de simplificação, de não olharmos para a estratégia, para os modelos econômico e de negócio e para a maneira como funcionamos como sociedade. Mas também percebo que este é um tempo de começar uma nova revolução.

“As revoluções acontecem não quando uma minoria de ativistas começa a gritar, mas quando a maioria silenciosa se envolve. E é nesse ponto de virada que estamos agora”, disse Gillian Tett, presidente do conselho editorial do Financial Times e editora da newsletter dedicada à pauta ESG Moral Money, em recente [entrevista à Aberje](https://youtu.be/_1nlVGfcGko) (Associação Brasileira de Comunicação Empresarial).

A pauta ESG está alcançando a maioria silenciosa. Claro que temos ainda enormes desafios, porém há centenas de inovações e tecnologias que impulsionam essa transformação. As regulações avançam no mundo inteiro, como taxação e mercado regulado de carbono. Há a conjunção de organizações internacionais, como a International Financial Reporting Standards (IFRS), Sustainability Accounting Standards Board (SASB), Global Reporting Initiative (GRI) e outras, para criar métricas globais comparáveis, verificáveis, mensuráveis, com mais transparência e rastreabilidade, assim como o avanço de órgãos reguladores, como bancos centrais e similares, em todo o mundo.

A isso, somam-se centenas de incentivos para a transição para a economia verde. Percebemos, finalmente, um senso comum e científico sobre a emergência climática, vide os resultados da COP26. Um contexto que nos coloca em um novo momento de inflexão.

Vale lembrar que, há 30 anos, entre as empresas mais valiosas do mundo, estavam petroleiras, indústria automobilística e vários bancos. A inflexão iniciada pela tecnologia móvel e pela internet rápida alçou ao topo empresas de tecnologia dos Estados Unidos, China, Taiwan, Coreia. A perda de valor da Exxon foi acompanhada pela chegada da Amgen, maior empresa de biotecnologia do mundo. O que acontecerá nesse cenário a partir da pressão do ESG e da emergência climática?

Uma certeza que temos é a de que todos os setores serão disruptados, os ativos serão reprecificados, e nossas vidas vão se transformar. A revolução socioambiental é, portanto, a nova revolução tecnológica, e o propósito, o novo lucro. E o problema não é a disrupção, mas de que lado dela você estará.

## Regeneração ou morte
Para estar no lado que vai crescer, o primeiro passo é compreender que não basta deixar de causar danos. A palavra de ordem do zeitgeist no campo socioambiental é “regeneração”. Assim, organizações que querem se destacar devem estar orientadas a regenerar florestas, biodiversidade, vidas. A emergência climática afeta direitos humanos – o direito à vida, à saúde, à alimentação e à moradia. É um imperativo moral, mas também econômico. Tudo está interconectado.

As consequências já nos afetam. Os dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) comprovam que os eventos climáticos extremos geram não apenas elevação dos oceanos, mas também o aumento de pragas no campo, entre outras mazelas. No Brasil, as variações climáticas afetaram o agronegócio, que responde por mais de ¼ do PIB nacional, e a geração de energia, ambos pressionados por redução das chuvas ou eventos extremos. Desabamentos serão tragicamente mais comuns, afetando em geral os mais pobres.

ESG interfere em decisões de investimentos

Estudo global da PwC, realizado em 2021, demonstra o valor da agenda ESG junto aos investidores. Dos 360 entrevistados, 79% entendem que o ESG é importante na tomada de decisão. E 49% afirmam que podem retirar recursos de empresas sem ações reais nesse campo. Outros números sinalizam a relevância do tema:

82% acreditam que o ESG deve estar diretamente ligado à estratégia de negócios

65% colocam a redução das emissões de carbono em destaque

44% valorizam ambientes seguros de trabalho, diversidade e inclusão

75% consideram sacrificar a lucratividade de curto prazo em prol das questões ESG

81% aceitam cortar um ponto percentual ou menos no retorno do investimento

49% não estão dispostos a aceitar qualquer redução de rentabilidade
(Redação HSM Management)

Tais consequências aumentam a pressão do ESG e abrem espaço para centenas de novos negócios e oportunidades. O mercado está permeável para viabilizar ações de bioeconomia com a economia da floresta em pé; áreas degradadas recebem plantio de árvores para captura de carbono. Agricultores adotam melhores práticas de manejo do solo, como a agricultura de precisão, favorecida pela tecnologia.

A revolução digital pode e deve estar presente nesta revolução ESG. Tecnologias para rastreabilidade, uso de inteligência artificial e machine learning estão a serviço da prevenção de riscos climáticos e do desmatamento. Energias renováveis ganham escala em diversos países. Inovações com foco na agenda ESG surgem com frequência, algumas já ocupando as prateleiras, como as soluções “plant-based”, que substituem a proteína animal. Interligando todos os processos estão mudanças culturais e comportamentais da sociedade, vide a transição da mentalidade de consumo e posse para uma cultura de serviço e uso.

“Não quero apenas ser convidada a sentar, precisamos ser donos da mesa”

Apoiar os movimentos de maneira horizontal em vez de liderá-los num olhar de cima para baixo também é um papel das empresas

Além de serem ativas e tomarem iniciativas em seus quadros de funcionários, é importante que as empresas também sejam receptivas para incorporar e fortalecer as iniciativas da sociedade, num olhar horizontal. Como diz Nina Silva, líder do Movimento Black Money, que visa dar autonomia à população negra brasileira: “Não quero apenas ser convidada a sentar, precisamos ser donos da mesa”. Para Silva, as empresas devem entender quanto o lugar coletivo é importante para o ESG. “Quero que o meu povo possa criar suas próprias oportunidades ampliando autonomia a partir de seus próprios negócios”, diz. Ela propõe o resgate inclusive de ensinamentos africanos sobre trabalhar colaborativamente.

Silva compartilha dados que reforçam a importância de um trabalho intencional com a população negra. “As pessoas pretas são 70% dos desempregados do País e precisam de melhor acesso à educação e de oportunidades; a maioria dos negócios abertos no Brasil são de pessoas pretas, mas, em sua maioria, por necessidade.” Além da contratação, que já deveria ser uma realidade, reforçar a cadeia de suprimentos com fornecedores negros e programas de aceleração de negócios são ações que podem ser tomadas para reduzir essas diferenças. (Redação HSM Management)

## Risco ou oportunidade
Outro fator que dá sustentação à revolução socioambiental são os números financeiros. Relatório da PwC indica que, até 2025, 57% dos ativos de fundos mútuos da Europa (algo em torno de US$ 9 trilhões) estarão em fundos que consideram critérios ESG.

Até a primeira metade de 2021, o volume de operações de crédito sustentável do País já foi quase o dobro de 2020 como um todo: R$ 54,8 bilhões em títulos de crédito e empréstimos ESG rotulados, contra R$ 28 bilhões no ano anterior, aponta levantamento feito pela Sitawi Finanças do Bem.

Apesar disso, ainda é comum que executivos e membros de conselhos de administração tenham dúvidas sobre o ESG ser um risco ou uma oportunidade. Costumo ponderar que o risco paralisa, e a inovação engaja e mobiliza, desde que estejamos atentos para viabilizar esse futuro.

Não há uma receita padronizada, porém quatro práticas são relevantes para uma liderança estar preparada para esse espírito do tempo:

__Apropriar-se da agenda de transformação.__ Com consciência real sobre o tema, a liderança deve se sentir responsável pela transformação e compreender que não há dilema entre lucro e cuidado. Essa visão é que nos levará ao futuro.

__Capacitar-se para a mudança.__ Assim como é preciso entender o setor em que atuamos, é preciso estudar e entender a importância da diversidade, equidade e inclusão, impactos de desigualdade epobreza, a emergência climática, a biodiversidade, entre outros temas emergentes desta nova era.

__Estar presente no ecossistema.__ Engaje-se com organizações da sociedade civil que discutem questões éticas, sociais, ambientais, que propõem uma nova política. Há centenas delas.

__Ir para a linha de frente.__ Faça escolhas e busque fazer a diferença nos temas relacionados a seu negócio e a você. Apoie empreendedores de impacto, faça mentoria reversa e conheça o ecossistema de negócios de impacto.

Nenhum desses passos é trivial. Inserir uma nova visão ESG na tomada de decisão, na estratégia e no dia a dia de uma empresa significa estar nas relações com o governo, na interface com os clientes. Implica adotar novos procedimentos com fornecedores, em processos, em produtos, em políticas de incentivos e remuneração, na forma de contratação e no desenvolvimento dos colaboradores. De forma geral, em tudo relacionado à proposta de valor das empresas e ao modelo de negócio.

E com a velocidade e a complexidade que tudo acontece hoje, o mais importante é se adaptar, colaborar, agir em rede e com propósito forte e alinhamento de valores.

É a partir dessa consciência, e das possibilidades que ela traz, que ampliamos o leque de soluções e, finalmente, estaremos prontos para mudar nossa empresa, nossa sociedade e a nós mesmos. Como disse o fotógrafo e documentarista francês Yann Arthus-Bertrand, “é tarde demais para sermos pessimistas”. Essa é a força de nosso tempo.

Ação ambiental: adaptação e resiliência

Perguntamos a Daniela Lerario, líder do Brasil na COP 26, o que ela falaria em um TED Talk de recomendações de Políticas ambientais para organizações

Ela elencou seis pontos-chave:
A crise climática está acontecendo agora e ela afeta todos, sem exceção.
Precisamos restaurar confiança e credibilidade no mundo; o futuro descarbonizado e resiliente não será possível sozinho. Estamos em um momento crítico e precisamos de muita ambição de todos e coordenação global para manter o aumento de no máximo 1.5ºC na temperatura dos oceanos ao nosso alcance.

Mensurar e reportar é absolutamente fundamental nesse caminho. Um grande desafio para a pauta ESG crescer e ganhar consistência é ter métricas que sejam comparáveis, verificáveis e críveis. Precisamos escalar o uso de ferramentas como avaliação de Impacto B, utilizada por milhares de negócios no mundo.

Manter o foco da discussão climática somente em mitigação é um risco enorme. Mas também não podemos fazer a economia descarbonizada “a qualquer custo e às custas das pessoas e da natureza“. Precisamos colocar as pessoas e a natureza juntas no centro das decisões, ou seja, falar também de adaptação e resiliência e não somente de mitigação.

Isso exigirá uma mudança estrutural e cultural gigante.
Alta ambição, yransformações sistêmicas e setoriais, muita colaboração (multilateralismo) e criatividade – isso vai muito além de compromissos.

__Leia mais: [Conselhos de administração em ritmo de startup](https://www.revistahsm.com.br/post/conselhos-de-administracao-em-ritmo-de-startup)__

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