Na semana que antecedeu à premiação do Oscar, deparei com um questionamento estranho na minha mente: como era mesmo a antiga rotina de ir ao cinema? Demorei a recordar que costumava ir às terças-feiras e que a decisão estava relacionada a momentos em que precisava espairecer e relaxar. Fiquei tentando reviver a sensação de estar na sala escura. Mesmo tendo passado os últimos dez anos frequentando salas de cinema com uma assiduidade bem expressiva, este último ano distante da telona teve um efeito devastador na minha capacidade de retomar a memória desse hábito.
Por causa desse pensamento, comecei a buscar ativamente outras experiências que caracterizavam minha vida antes da pandemia e que também estavam sendo abaladas. Festas em família, encontros com amigos, comemorações de todo tipo, viagens a trabalho e a lazer. Tudo parece estar mais no campo das recordações do que dos hábitos.
Esta é uma caraterística importante da forma como o cérebro funciona e que está diretamente ligada ao fenômeno que estou relatando aqui: a vida já não é mais do mesmo jeito não apenas porque o mundo fora de nós mudou, mas especificamente porque a percepção sobre a vida, os hábitos e os comportamentos mudou. Você já se pegou sentindo um verdadeiro estranhamento ao ver alguém na rua sem máscara? No início da pandemia o estranhamento estava em ver pessoas mascaradas. E o desconforto de chegar e não cumprimentar as pessoas com apertos de mão, abraços, um ou dois beijinhos? Também já está bem menos evidente?
Fomos obrigados a alterar muitos processos cerebrais num intervalo de tempo relativamente curto. Em geral, somos provocados por mudanças no ambiente, mas elas ocorrem de forma mais paulatina e são metabolizadas e tratadas aos poucos. De vez em quando uma mudança de cidade, o fim de um relacionamento ou até mesmo o óbito de alguém querido produz abalos importantes – mas, dessa vez, estamos vivendo um monte deles ao mesmo tempo. O sistema emocional acaba sendo mais demandado, e essa demanda excessiva produz efeitos importantes.
Um dos efeitos mais evidentes é que há uma sobrecarga de sistema. Já que precisamos analisar os novos hábitos adquiridos e prestar atenção em novos comportamentos e validá-los do ponto de vista da efetividade adaptativa de cada um deles no novo cenário, a dinâmica do sistema emocional em operar essas validações de padrão pode passar despercebida, mas é um ônus considerável. Tome como exemplo o fato de que durante uma reunião online você passa um tempo grande olhando para várias faces humanas que estão simultaneamente localizadas em uma área do seu campo visual, com alta definição de imagem. Essa área, conhecida como fóvea, tem uma quantidade maior de fotorreceptores e consegue fazer leituras precisas sobre a emocionalidade contida nas faces observadas. Nos contatos presenciais não é possível observarmos com a mesma acurácia visual porque utilizamos a fóvea para focar cada um dos rostos a seu tempo.
Quando as faces estão simultaneamente expostas em uma tela no mesmo campo visual, a fóvea recebe os estímulos de várias expressões faciais para serem processadas de uma só vez. Esse tipo de demanda emocional é semelhante àquela que um orador sofre quando fala em público, situação que é fonte de estresse para todos os que ainda não desenvolveram recursos para enfrentá-la. Além disso, no mesmo momento em que você está processando essa avalanche de informações emocionais de outras pessoas, também pode observar sua própria imagem na tela. Com horas e mais horas de telas em reuniões sucessivas, a dinâmica do sistema emocional revela uma sensação de fadiga que parece estranha, já que muitas das tarefas inerentes a um dia de trabalho no escritório, como os deslocamentos ou o trânsito, não estão acontecendo.
É um cansaço paradoxal. São emoções novas. E os hábitos que eram fonte de alívio e descompressão estão suspensos. Não há previsão de retorno e esse estado de coisas parece se instalar de forma permanente. Um estado sem hábitos. Nele, não queremos nos acostumar com máscaras, mas estranhamos quando vemos alguém sem. Não vivemos mais as situações em que viajar, passear, ir a restaurantes surgem naturalmente em nossas mentes, mas sentimos falta de cada uma delas. A qualquer momento o inesperado pode atingir uma família e provocar perdas inestimáveis. No início da pandemia, queríamos um novo normal para viver. Achamos que poderíamos achar normalidade nisso tudo. Mas, para o sistema emocional, normal é aquilo com que se pode habituar.
Assim, o aclamado novo normal ainda não se instalou. Para ser normal, deve honrar o significado que a palavra tem. Precisa ser capaz de causar habituação. Precisamos poder nos acostumar com a rotina estabelecida. Encontrar pontos de equilíbrio que nos permitam seguir investindo em nossos sonhos e propósitos. Felizmente, estamos resistentes a considerar o atual estado de coisas como efetivamente normal. Só estaremos realmente em algum novo normal quando pudermos reencontrar aqueles modelos normalizados de comportamento que surgem de forma automática e nos levam a uma sala de cinema no fim de uma terça-feira ou o que quer que seja normal para cada um de nós.