Desenvolvimento pessoal

O poder de uma visão inspiradora

Como o futuro ilumina o presente das organizações

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**A VISÃO DO FUTURO**

_“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”_ **Eduardo Galeano**

O propósito da visão é descrever como uma organização encontra a realização; é, portanto, um resultado, descreve um “fim”. Assim, seu enunciado deve começar com um substantivo e não com um verbo (ação). Por sua natureza – um misto de resultado impossível de predizer, utopia e sonho –, ela deve ser atemporal, não estar limitada pela história ou pelas circunstâncias, não podendo conter datas-limite. Da mesma forma, não pode ser quantitativa. Considerando que o marco filosófico é parte de um exercício para dar rumo e sentido a uma organização, em outros níveis dessa estrutura, outras instâncias darão conta dos números e dos prazos – para isso existem as metas, os objetivos, os KPIs etc. 

so existem as metas, os objetivos, os KPIs etc. As melhores visões trazem também uma tensão interna entre seus elementos. A visão é superior a qualquer outra coisa. Finalmente, como estamos visualizando o futuro, é impossível predizê-la: não há nenhuma garantia de que será atingida. No entanto, a mais importante função da visão é produzir brilho nos olhos! As visões devem tocar emocionalmente quem as lê. Para aqueles que as veem na parede de uma sala de espera, elas devem despertar o desejo de conhecer aquela cultura e, em alguns casos, de trabalhar naquela organização.

Por fim, uma boa visão poderia ser eterna. 

Uma pesquisa sobre o marco filosófico das maiores companhias do País é o ponto de partida do novo livro do consultor Odino Marcondes. Ele faz um diagnóstico do conjunto de missão, visão de futuro e valores declarados pelas empresas para saber se cumprem seu papel. Comunicam bem? Mobilizam as pessoas? Traduzem a cultura real? O resultado não é nada bom. O autor propõe um método para elaborar um marco filosófico eficaz e, com exemplos concretos, mostra o que de fato funciona. Para replicar uma provocação do livro, o que sustenta a visão de sua empresa? Um prego? Se for, leia este trecho relativo à visão. 

**O PODER DE UMA VISÃO INSPIRADORA**

Odino Marcondes • hsm • 2015  

**CRIANDO O FUTURO E ENTERRANDO O PASSADO COM HONRAS MILITARES**

Uma visão do futuro é uma realidade imaginada.

Ao formular uma visão do futuro, as pessoas, assim como as organizações, estão fazendo uma escolha que inverte radicalmente um modo de pensar e decidir: optam por guiar- -se por uma visão do futuro desejado, em vez de seguir influenciadas pelo passado. Em um mundo que muda a uma velocidade jamais experimentada, usar o passado como referência é a morte para qualquer empresa. Entretanto, as pessoas e as organizações carregarão do passado os elementos de sua essência e poderão escolher mantê-los: seus valores centrais. Estes são parte da identidade vertical da empresa e não podem ser ignorados na (re)formulação da visão do futuro. 

Assim, temos o futuro como mera extensão do passado e do presente. 

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Nunca foram tiradas tantas fotografias quanto hoje. E a Kodak não ganha um centavo com isso. Reinando soberana por décadas, em pouquíssimo tempo foi reduzida a nada, com o advento da câmera digital, paradoxalmente inventada por ela. 

Na história das organizações, são raríssimos os casos de reinvenção: matar a galinha dos ovos de ouro antes que um concorrente ou sucedâneo o faça. Submersas na conserva cultural, as pessoas têm imensa dificuldade para apontar os perigos iminentes que rondam o negócio. Propor a morte do próprio negócio é equivalente a um crime de lesa-pátria. E, assim, o cemitério está cheio de empresas outrora brilhantes e vencedoras. 

O desenho do futuro desejado não pode ignorar todos os impactos previsíveis sobre o negócio da organização e incorporar a coragem de repensar seu futuro, indo até o limite de antecipar a morte do próprio negócio. 

É o futuro iluminando o presente. 

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De todos os artefatos produzidos pelo homem, o automóvel é o que tem seu futuro mais ameaçado.

Jaime Lerner, arquiteto e ex-prefeito de Curitiba que priorizou o transporte coletivo na capital paranaense, chamou o carro de “cigarro do futuro”. “Você poderá continuar a usar, mas as pessoas se irritarão por isso”, afirmou.

O escritor e empresário australiano Ross Dawson tem opinião parecida com a de Lerner. “Um dia as pessoas vão olhar para trás e se perguntar como era aceitável poluir tanto, da mesma forma como hoje pensamos sobre o tempo em que cigarro era aceito em restaurantes, aviões e lugares fechados.” Quando fiz minha primeira viagem de avião, na década de 1970, éramos recepcionados pelas comissárias com a distribuição de pequenos maços de cigarro!

Na pátria do automóvel, os sinais enviados do futuro já estão disponíveis. “Em um país onde a carteira de motorista é um RG extraoficial, 20% dos jovens americanos entre 20 e 24 anos de idade não têm hoje habilitação – e o mesmo vale para 40% dos americanos de 18 anos. Em ambos os casos, o número de jovens que não dirigem dobrou entre 1983 e 2013, segundo estudo da Universidade de Michigan. Desde 2001, o número de quilômetros dirigidos nos EUA vem caindo. Na última década, o número de americanos que vão diariamente ao trabalho de bicicleta aumentou 60%, chegando a 900 mil.” [Lores, Raul Juste. No país das highways, o uso do carro patina. Folha de S.Paulo, 29 jun. 2014.]

As pessoas que moram nos grandes centros estão cada vez mais conscientes do imenso custo representado pelas enormes frotas de carros. E o australiano Dawson alerta que a questão não é apenas ambiental, é demográfica: as pessoas estão escolhendo novos modos de vida e por isso resistem também ao carro elétrico: “É importante entender que, ainda que sejam veículos com zero emissão de carbono, os carros elétricos poluem”. Ele recorda que, em um grande número de países, a geração de energia elétrica depende de combustíveis fósseis. “A poluição continua a acontecer em outra ponta, o que não ocorre com a bicicleta – e muito menos com o transporte coletivo.”

Em 1960, Theodore Levitt escreveu um texto seminal – “Miopia em marketing” – em que demonstrava os riscos de as empresas atuarem concentradas em seus produtos, em vez de centrar-se nas necessidades de seus clientes. O automóvel que pode ser comprado para atender a várias necessidades dos consumidores – mobilidade, status, poder etc. – é hoje um imenso estorvo nos monumentais congestionamentos das grandes cidades. São milhares de motoristas encapsulados dentro deles, acumulando doses cada vez maiores de estresse. 

Portanto, a miopia das montadoras pode estar selando seu fim. Elas deveriam desenhar um mundo sem carros para o transporte individual e, com base nessa visão, iniciar a reinvenção de seu próprio negócio. Mas, como mostrei no tópico 1.3, “Os ajustamentos e as identidades”, será melhor fazer isso longe, bem longe da sede da empresa.

**Uma visão perfeita.** Na década de 1990, a Divisão Agrícola da Monsanto definiu uma nova visão do futuro: “Alimentos em abundância em um meio ambiente saudável”. 

Relutei muito em usar a visão da Monsanto como exemplo: suas ações e seus produtos foram e são objeto de muita polêmica e questionamento. Entretanto, e desafortunadamente, são pouquíssimas as visões que se enquadram em um padrão de perfeição técnica, e a da Monsanto é uma delas. Peço, portanto, que, mesmo que seja difícil e aparentemente impossível, o leitor considere apenas os elementos técnicos da visão, sem entrar no mérito das práticas da empresa. 

Sempre que me pedem um exemplo de uma boa visão é essa que apresento. Aliás, ela é uma visão tecnicamente perfeita. 

Do ponto de vista formal, ela atende a todos os requisitos necessários para uma visão do futuro. São eles:

• Seus dois elementos centrais – alimento e meio ambiente – são substantivos respectivamente adjetivados: abundante e saudável. Portanto, a visão está indicando, inequivocamente, o que a organização está comprometida a produzir.

• Ela é curta, com isso é facilmente lembrada.

• Finalmente, a característica mais interessante dessa visão: há uma tensão entre seus dois elementos centrais. Senão, vejamos: produzir alimento abundante é algo relativamente fácil, existe tecnologia para isso e, no caso brasileiro, temos terras abundantes também; manter o meio ambiente saudável é fácil, basta deixá-lo como está, intocável. O desafio é fazer as duas coisas ao mesmo tempo! A tensão resultante é o elemento estimulador da criatividade dentro da organização. Ela abre espaço para o pensamento estratégico. Portanto, uma boa visão tem o poder de provocar, estimular, permitir que as pessoas sonhem, visualizem um futuro melhor.

**Outra visão de futuro exemplar.** Desde sua fundação em 1927, a Volvo sempre teve a segurança como um de seus valores corporativos. No início das operações, seus fundadores, Assar Gabrielsson e Gustav Larsson, registraram em ata: “Veículos são feitos por pessoas e para transportar pessoas. Por isso o princípio básico para todo o trabalho, do desenvolvimento à produção, deve ser sempre a segurança”. [As informações sobre a Volvo foram obtidas no site da empresa: www.volvo.com.br/pvst.] 

Em 2012, o Grupo Volvo reforçou integralmente seu comprometimento com a segurança ao preconizar um futuro com zero acidente envolvendo seus veículos. Essa visão extremamente desafiadora está totalmente alinhada com o objetivo de tornar-se líder mundial em soluções de transporte sustentável. 

A Volvo reconhece que sua visão – “Zero acidente no Brasil” – pode parecer uma utopia, mas sabe que “a realidade só será transformada com ousadia e se agirmos proativamente para gerar mudanças graduais e constantes”. 

A tensão interna que caracteriza as boas visões também está presente quando a Volvo reconhece – nas palavras de seu presidente para a América Latina, Claes Nilsson – que, “se houver riscos de acidentes em qualquer operação que envolva produtos do Grupo Volvo, evitaremos tanto pelo uso da qualidade e da tecnologia de nossos veículos quanto atuando como agente mobilizador, em cooperação com nossos funcionários, rede de concessionárias e distribuição, clientes e fornecedores, bem como junto aos demais agentes que atuam na cadeia de negócios do transporte comercial brasileiro”. E conclui: “A segurança deve ser responsabilidade de todos”. 

A visão da Volvo é consequência de um posicionamento de segurança no trânsito aprovado pelo Parlamento sueco em 1997, segundo o qual “ninguém será morto ou ferido gravemente em acidentes de trânsito”. É uma visão estratégica de longo prazo, na qual o sistema de trânsito vai se tornando gradualmente mais integrado e a responsabilidade pela segurança torna-se compartilhada por todos – projetistas e usuários do sistema. “Além de estratégica, essa é uma atitude ética, perante a sociedade, pois o princípio da Visão Zero é que, apesar do enorme desenvolvimento tecnológico de todos os setores do trânsito – veículos, vias, legislação, sinalização, entre outros –, o homem continuará a cometer erros no trânsito, mas não pode pagar por eles com sua própria vida” (grifo do autor). Depois de dez anos, a Suécia, que já tinha índices baixíssimos de fatalidades no trânsito, já reduziu em mais de 50% o número de mortos e espera chegar “a zero, ou muito próximo disso, em dez anos”. 

Já nas estradas federais brasileiras, ocorre um acidente envolvendo caminhões a cada cinco minutos. No total, os acidentes de trânsito – envolvendo todo tipo de veículo – resultam em mais de 54 mil mortos por ano e mais de 200 mil feridos, muitos dos quais morrem dias depois ou ficam com sequelas permanentes. O tamanho da tragédia pode ser dado por uma comparação: em dez anos de guerra, os EUA perderam 58 mil soldados no Vietnã. Vale repetir: temos mais de uma guerra do Vietnã por ano no Brasil. 

Em 1987, ao completar dez anos da instalação de sua primeira fábrica no Brasil, o Grupo Volvo lançou o Programa Volvo de Segurança nas Estradas para mobilizar a sociedade em torno de uma importante questão: o que fazer para aumentar a segurança e diminuir o número e a severidade dos acidentes de trânsito? 

Os acidentes de trânsito estão ligados a três fatores: o veículo, o condutor e a via – rua ou estrada. A Volvo sabe que faz caminhões seguros, mas está ciente também de que o condutor é o maior responsável pelos atos que levam aos acidentes. Portanto, não basta garantir apenas uma das variáveis; é preciso atuar sobre as outras. 

A Volvo foi pioneira e está na vanguarda em segurança, não só quando produz os veículos, mas também por meio dos dispositivos de segurança veicular, desde o cinto de segurança de três pontos até soluções inovadoras como o sistema de proteção inferior contra colisões dianteiras, o controle de alerta ao motorista, o controle de saída e de mudança de pista, entre outras. Uma das soluções mais engenhosas que a Volvo desenvolveu para prevenir acidentes envolvendo ciclistas é um spray com uma película refletiva para ser usada na roupa e na bicicleta. Esse último exemplo dá uma medida da amplitude da visão: os técnicos e especialistas da Volvo poderiam ficar limitados a criar veículos seguros, mas a natureza e a essência da visão os estimulam a ter um olhar mais abrangente e criativo. 

A declaração dos fundadores da Volvo e a visão são as evidências de quanto a segurança é parte da identidade vertical da empresa. E continua sendo quando ela declara que “segurança é praticada diária e constantemente nas fábricas espalhadas por todos os continentes, nos escritórios, nos laboratórios de desenvolvimento de produtos, nos testes de novos veículos, dentro da rede de distribuidores, e no relacionamento com todos os públicos estratégicos (stakeholders)”. 

Do ponto de vista técnico, a visão da Volvo atende a todos os requisitos de uma boa visão: curta, atemporal, traz implícita a tensão interna (veículo x condutor x via) e, apesar de conter um número (zero), não pode ser considerada quantitativa, uma vez que zerar todos os acidentes é uma utopia, mas é altamente desejável que eles sejam drasticamente reduzidos no Brasil. 

**A visão do futuro na literatura.** Há mais de quatro séculos, William Shakespeare (1564-1616) foi capaz de produzir uma visão com todos os elementos que a mantêm atualizada até hoje. É, também, uma fala primorosa de um líder que, ao mesmo tempo que motiva seus comandados, não se abstém de confrontá-los com a dura realidade da guerra: muitos poderão morrer.

A poderosa visão está em Henrique V, uma das mais famosas peças históricas de Shakespeare. Trata-se da representação daquele que é considerado um dos mais importantes monarcas ingleses, o rei-herói que governou de 1413 a 1422, pacificando internamente a Inglaterra e consolidando a autoridade da monarquia. Em um dos conflitos que compõem a chamada Guerra dos Cem Anos (1337-1453), vemos o rei em sua campanha de invasão à França – cujos dois principais momentos foram as batalhas de Harfleur e Azincourt, em 1415. O rei-guerreiro combate junto aos soldados, em um texto de exaltado nacionalismo que enaltece seus feitos de grande líder. 

O ponto alto é o célebre discurso em que Henrique V conclama seus homens a lutar com garra, colocando de lado as distinções sociais. Do alto de uma carroça, ele discursa e a visão do futuro que ele constrói é perfeita. 

Primeiro, ele minimiza a importância de cada um:

_Se estamos destinados a morrer, já somos o máximo_

_Que nosso país pode perder;_

_Depois, oferece uma recompensa:_

_E, se vivermos,_

_Quanto menos formos, maior a honra que partilharemos._

Em seguida, expressa seus valores:

_Deus! Te imploro, não queiras nenhum homem mais,_

_Por Júpiter! Não sou avarento com o ouro,_

_Nem me importo que vivam às minhas custas;_

_Não me incomoda que outros vistam minhas roupas:_

_Tais coisas de aparência não estão entre meus valores;_

_Mas, se for pecado cobiçar a honra,_

_Sou a alma mais pecadora de todas._

Ele provoca o primo inseguro e indeciso, oferece uma saída para os acovardados e os provoca para que mudem de ideia, ao mesmo tempo que qualifica os que ficarem:

_Não, tenha fé, primo, não queiras mais nenhum homem da Inglaterra!_

_Pelo amor de Deus! Eu não perderia uma honra tão grande_

_Ainda que um só homem fosse dividi-la comigo,_

_Porque espero o melhor. Não, não peças mais nenhum homem!_

_Melhor proclamar, Westmoreland, a todos os meus soldados,_

_Que àquele que não tiver estômago para lutar,_

_Deixem-no ir: nós lhe daremos um passaporte_

_E poremos uns escudos para viagem, em sua bolsa;_

_Jamais morreríamos na companhia de um homem_

_Que teme morrer como nosso companheiro._

E aí formula a visão do futuro falando desde lá, do futuro, sem criar ilusões – muitos poderão morrer:

_Este dia é o da festa de São Crispim._

_Aquele que sobreviver a esse dia e voltar são e salvo para casa_

_Ficará na ponta dos pés quando esta data for mencionada,_

_Ele crescerá ainda mais, diante do nome de São Crispim._

_Aquele que sobreviver a esse dia e chegar à velhice,_

_Em toda véspera deste dia, comemorará com os vizinhos_

_E lhes dirá: “Amanhã é São Crispim”._

_Então arregaçará as mangas e mostrará as cicatrizes,_

_E dirá: “Estas feridas eu ganhei no dia de São Crispim”._

_Os velhos se esquecem; tudo mesmo acaba esquecido._

_Mas ele se lembrará, com orgulho,_

_Das proezas que realizou naquele dia. E então nossos nomes,_

_Tão familiares em sua boca quanto os de seus parentes –_

_O rei Harry, Bedford e Exeter,_

_Warwick e Talbot, Salisbury e Gloucester –,_

_Serão, nos copos transbordantes, vivamente lembrados._

Finalmente ele define a atemporalidade da visão (“até o fim do mundo”), oferece a recompensa (“Será meu irmão”), a redenção (“seja ele o mais vil que for”) e a punição (“se acharão amaldiçoados”):

_Esta história o bom homem ensinará ao seu filho;_

_E nenhuma festa de São Crispim acontecerá_

_Desde este dia até o fim do mundo_

_Sem que nela sejamos lembrados –_

_Nós poucos, nós poucos e felizes, nós, bando de irmãos;_

_Pois quem hoje derramar seu sangue comigo_

_Será meu irmão; seja ele o mais vil que for,_

_Este dia enobrecerá sua condição,_

_E os cavalheiros ingleses que agora dormem_

_Se acharão amaldiçoados por não estarem aqui,_

_E sentirão sua honra decair, ao ouvir um outro contar_

_Que combateu conosco no dia de São Crispim._

**GRANDES LÍDERES VISIONÁRIOS**

Essa marca da liderança, que combina, paradoxalmente, otimismo e realismo, teve inúmeros representantes ilustres.

Winston Churchill (1874-1965) disse durante a Segunda Grande Guerra: “Hitler sabe que terá de nos vencer nesta ilha ou perder a guerra. Se pudermos resistir a ele, toda a Europa poderá ser livre e a vida no planeta poderá seguir adiante para horizontes abertos e ensolarados. Mas, se nós cairmos, então o mundo inteiro, incluindo os Estados Unidos, incluindo tudo o que conhecemos e do que gostamos, vai afundar no abismo de uma nova Idade das Trevas, ainda mais sinistra e talvez mais prolongada pelo uso de uma ciência pervertida. Que nós nos unamos para cumprir nosso dever, e dessa forma nos elevemos de tal forma que, se o Império Britânico e sua comunidade britânica durarem mil anos, as pessoas ainda digam: “aquele foi seu melhor momento!”.

Viktor Frankl (1905-1997), psiquiatra austríaco, preso em Auschwitz, sobreviveu – e ajudou muitos outros a sobreviver – criando uma visão poderosa e, sob todos os aspectos, impossível de predizer: deveria sobreviver para contar ao mundo o horror do holocausto. 

Durante a Guerra do Vietnã, o almirante Jim Stockdale (1923-2005) protagonizou uma das mais duras experiências como prisioneiro de guerra dos norte-vietnamitas. Sua liderança sobre os demais prisioneiros reproduziu a visão shakespeariana. Sua saga foi traduzida por Jim Collins na expressão “Paradoxo Stockdale”, que designa a ambiguidade de “manter uma fé inabalável no jogo final, a despeito da dura realidade dos fatos”. Ele foi torturado mais de vinte vezes ao longo dos oito anos em que ficou prisioneiro, mas nunca duvidou que não apenas sairia vivo de lá, como transformaria a experiência em um divisor de águas em sua vida. Em depoimento a Collins, Stockdale contou: “Você nunca deve confundir a fé em que você vai vencer no final – que você nunca pode se dar ao luxo de perder – com a disciplina de enfrentar a realidade nua e crua de sua atual situação, seja ela qual for”. 

O último quarto do século 19 e o início do 20 foram marcados pela ousadia e coragem daqueles que queriam descobrir os limites geográficos da Terra: a chegada aos polos, a descoberta das nascentes de rios históricos, as travessias jamais realizadas, os picos jamais escalados. 

De todos os grandes exploradores – Amundsen, Robert C. Scott, Richard Burton, Peary, Cook –, um deles se destaca: Sir Ernest Shackleton (1874-1992). Ele é considerado por muitos como uma das maiores lideranças já surgidas, e isso representa um enorme paradoxo, pois ele fracassou em todas as suas tentativas de chegar ao Polo Sul e de atravessar o continente antártico. Shackleton esteve na primeira tentativa de chegar ao Polo Sul capitaneada por Scott, em 1901: não conseguiram. Em 1907, organizou a própria expedição e, com o barco Nimrod, fez sua segunda tentativa de chegar ao Polo Sul. Chegaram a 156 quilômetros do destino. Apesar do fracasso, foram recebidos como heróis e, em 1909, ele recebeu do rei Eduardo VII o título de Sir. Lançou um livro, fez palestras por toda a Europa. Seu sucesso incomodou Robert Scott. Este tentou chegar ao polo em 1910 e, quando o alcançou, em janeiro de 1912, lá encontrou hasteada a bandeira da Noruega. Amundsen havia vencido a corrida. Na volta, Scott e seus dois companheiros morreram. 

Em agosto de 1914, às vésperas da Primeira Grande Guerra, Shackleton partiu com o Endurance para tentar fazer a primeira travessia transantártica, expedição que é muitas vezes classificada como a última da Era Heroica da exploração polar. Ao rebatizar o navio como Endurance (persistência), ele homenageava o lema de sua família: “Fortitudine vincimus” (Com persistência venceremos). 

Em 19 de janeiro de 1915, o Endurance foi aprisionado pelo gelo. Shackleton e seus homens só podiam ficar aguardando, mas essa espera pôs à prova sua liderança e capacidade de compor sua equipe. Durante o processo de seleção da tripulação, quando o físico R. W. James “se apresentou para ser entrevistado, o grande explorador o surpreendera ao perguntar-lhe não se ele se considerava preparado para uma grande expedição polar ou sobre detalhes de suas pesquisas científicas – mas se sabia cantar” [Alexander, Caroline. Endurance. São Paulo: Companhia das Letras, 1998]. 

Shackleton sabia os desafios para manter a paz entre seus tripulantes durante os longos períodos de confinamento que viveriam. Ele estava mais interessado em avaliar “a atitude” de sua heterogênea tripulação. E estava certo. Durante o longo aprisionamento no gelo, essas habilidades foram fundamentais para manter a equipe unida, apesar de todas as vicissitudes e desafios pelos quais passaram. 

O gelo que havia aprisionado o Endurance, em vez de libertá-lo, acabou por esmagá-lo em outubro de 1915. Flutuando no imenso bloco de gelo, Shackleton comunicou com simplicidade suas intenções: “Agora iremos para casa”. A enorme diferença de estilo que fez com que ele fosse reconhecido como um grande líder pode ser explicitada na comparação entre os desbravadores: para Scott, o objetivo era chegar lá; para Shackleton, era chegar lá com todos vivos. 

A partir daí, o objetivo passou a ser o de levar todos de volta para casa. O pesadelo estava apenas começando. Mas sua liderança inspiradora fez com que sua equipe acreditasse na visão estabelecida, o que foi essencial para afastar o desânimo e o moral baixo. 

Entre suas inúmeras qualidades, a congruência se destacava: ele não se permitia nenhum privilégio ou luxo em função de sua posição. Um episódio ilustra isso: “Falando com extrema convicção, Shackleton ressaltou que nenhum objeto pessoal tinha valor se comparado à sua sobrevivência e exortou os homens a serem implacáveis ao livrarem-se de todo peso desnecessário, independentemente do valor. Em seguida, tirou do bolso uma cigarreira de ouro e várias moedas também de ouro e as atirou na neve” [Perkins, Dennis N. T. Liderança no limite. São Paulo: Makron Books, 2000]. Mas, quando um tripulante descartou um porta-retratos de sua família, ele o recuperou e o devolveu: Shackleton sabia como aquilo seria reconfortante nos duros momentos que teriam pela frente. Em outra ocasião, já nos botes salva-vidas, um tripulante que remava perdeu sua luva. Shackleton tirou a sua e deu a ele. Ante a tentativa de recusa, ele ameaçou jogar a luva ao mar: Shackleton não se permitiria nenhum conforto maior do que aqueles que estavam lutando para salvar a própria vida. 

Em 9 de abril de 1916, eles embarcaram em três botes salva-vidas para uma das mais heroicas jornadas jamais registradas. Shackleton teria passado cem horas sem dormir durante essa viagem. Após sete dias, chegaram à Ilha Elefante. Como Shackleton sabia que ali ninguém os procuraria, a alternativa era alcançar a estação baleeira da Geórgia do Sul, mas ela ficava a mais de 1.200 quilômetros dali. Para não arriscar toda a tripulação, Shackleton formou uma pequena equipe de seis homens. Puseram-se ao mar em um bote de oito metros – o James Caird –, enfrentaram um furacão e, em 10 de maio de 1916, chegaram à Geórgia do Sul. Entretanto, a estação baleeira estava do outro lado da ilha e tentar chegar lá por mar seria muito arriscado. Shackleton decidiu viajar por terra – aliás gelo e neve – e ele não sabia que teria pela frente uma montanha de 3 mil metros. Depois de três dias, chegaram à estação baleeira. O primeiro banho quente em dezoito meses! Seu desafio agora era voltar à Ilha Elefante para resgatar os 22 tripulantes que ele deixara. Sem poder contar com ajuda inglesa – às voltas com a Primeira Grande Guerra –, ele enfrentou as maiores dificuldades para conseguir o socorro a seus tripulantes isolados na Ilha Elefante. Depois de inúmeras tentativas, a Marinha chilena disponibilizou o vapor Yelcho.

A chegada à ilha é assim descrita: “Worsley estava com Shackleton no convés do Yelcho quando avistaram a ilha. Seus corações quase tinham parado quando viram a bandeira a meio-pau, porém, examinando a praia com dolorosa intensidade pelo binóculo, Shackleton tinha contado 22 silhuetas” [Perkins, op. cit.]. E os levou sãos e salvos para a Inglaterra.

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