É consenso que temos um desafio socioambiental gigantesco pela frente. As conclusões da última conferência climática da ONU, a COP26, realizada em 2021, estão alinhadas com a insistência de investidores e líderes no tema ESG (sigla em inglês para ambiental, social e governança). A era do lucro a qualquer custo terminou, os ganhos agora precisam ser buscados sem destruir o planeta, os negócios devem neutralizar e prestar contas sobre as externalidades negativas que geram. Para Larry Fink, CEO da BlackRock, maior fundo de investimentos do mundo, optar por empresas que foquem o tema “não é mais uma escolha, é um imperativo”.
Mas temos um plano? Temos um mapa estratégico, algo para comunicar e alinhar esforços, defendido por Robert Kaplan e David Norton, grandes nomes da gestão de projetos? Na rotina corporativa, trabalhamos com metas e indicadores cada vez mais numerosos e complexos para garantir esse alinhamento. Mas, então, como criar um plano com metas simples e claras para neutralizarmos nossa emissão de carbono?
É aí que entram os “objectives and key results” (OKRs). Sua criação é atribuída a Andrew Grove, húngaro que fugiu do regime socialista em seu país e se tornou o terceiro funcionário de uma então pequena firma chamada Intel. Anos mais tarde, acabou promovido a CEO e, sob seu comando, ela se tornou a maior empresa de semicondutores do mundo.
John Doerr trabalhou com Grove nos anos 1970 e depois se tornou um lendário investidor. Em 1999, ele apresentou a metodologia aos jovens Larry Page e Sergey Brin para facilitar o cascateamento de objetivos e resultados-chave por toda organização. A empresa deles, o Google, se tornou uma das mais valiosas do mundo na década seguinte (Doerr também foi um dos primeiros a investir na Amazon). Em 2013, um treinamento interno vazou na internet e popularizou os OKRs. O tema ficou tão quente que, em 2017, Doerr publicou um livro a respeito, o best-seller *[Avalie o que Importa](https://www.amazon.com.br/Avalie-que-Importa-Funda%C3%A7%C3%A3o-Sacudiram/dp/855080455X)*.
Hoje, assim como Bill Gates e outros pensadores do Vale do Silício, Doerr tem voltado suas pesquisas para a questão das mudanças climáticas. O resultado está em um novo livro, *[Speed & Scale: An action plan for solving our climate crisis now](https://www.amazon.com.br/Speed-Scale-Action-Solving-Climate/dp/0593420470)*. Lançado no fim de 2021 e ainda sem tradução para o português, o título traz histórias de gente de peso, como Jeff Bezos e Al Gore.
Atualmente, o mundo emite 59 gigatoneladas (ou 59 milhões de toneladas) de gases de efeito estufa por ano. Para combatê-las, Doerr sugere um plano que elenca dez objetivos e 55 resultados-chave que, se alcançados, garantem que a temperatura global não suba mais de 1,5 grau.
Os seis primeiros objetivos são eletrificar o transporte, descarbonizar o sistema energético, consertar a nossa alimentação , proteger a natureza, limpar a indústria e remover o carbono. Objetivos claros, mas nada simples. Complementando o mapa de OKRs, o autor lista quatro objetivos que chama também de “alavancas”, essenciais para acelerar a conclusão dos 55 resultados-chave: vencer a política com planejamento, transformar movimentos em ação, inovar e investir.
Com cada um dos objetivos, Doerr visa eliminar uma certa quantidade de emissões. O setor de transporte, por exemplo, é responsável hoje por 8 gigatoneladas de gases por ano. Até 2050, esse número precisa cair para 2 gigatoneladas anuais. A indústria alimentícia, com o metano gerado na pecuária, é uma fonte poluidora ainda maior, com 9 gigatoneladas. Mas o setor mais crítico é a matriz energética, responsável por quase 50% das emissões.
## Plano de ação
Como cada objetivo é associado a resultados-chave (KRs) bastante específicos, o plano fica mais claro para nos guiarmos. Para eletrificar o transporte, por exemplo, os veículos elétricos precisam alcançar preços iguais aos do motor a combustão até 2024 nos EUA (US$ 35 mil) e até 2030 na China (US$ 11 mil).
A lista de resultados-chave também busca apoio dos consumidores. O KR 1.2, por exemplo, diz que os veículos elétricos devem responder por metade das vendas do mercado até 2030. Já o KR 1.3 propõe que todos os novos ônibus vendidos sejam elétricos até 2025.
A letra do ESG que você não vê
Junto com as demais iniciais, É preciso incluir o “r” de regeneração
Uma das grandes novidades do plano de John Doerr é endereçar o impacto de nossa alimentação nas mudanças climáticas. A letra R, de regeneração, é talvez um dos maiores insights de sua mensagem. Buscar sustentabilidade ambiental não é mais suficiente; a urgência climática demanda regeneração ambiental, o que depende diretamente de uma mudança em nossa alimentação.
Segundo um estudo de Oxford publicado na revista Science, seguir uma dieta à base de plantas pode reduzir em mais de 70% a emissão de carbono de nossa alimentação. É algo que podemos fazer já. Além disso, a migração para uma dieta baseada em vegetais consegue manter a mesma quantidade de alimentos produzida e “liberar espaço” para reflorestar até 76% das atuais terras agricultáveis.
A mudança na alimentação é necessária para que o planeta consiga sustentar 8 bilhões de habitantes. Segundo o Banco Mundial, com o crescimento populacional de mais 2 bilhões até 2050, a demanda por comida aumentará em 50% e a por proteína animal, em 70%. Não há terras agricultáveis suficientes para esse aumento sem destruir mais florestas ou colonizar outros planetas.
O modelo atual tem causado desmatamentos e perda de biodiversidade. A alimentação do futuro, focada em plantas e não na pecuária, gera um ciclo virtuoso de proteção da natureza. A própria COP 26, realizada no final de 2021, se preocupou em criar um cardápio sustentável e, principalmente, com opções locais. Existe um amplo espaço nas corporações para repensar o ESG no dia a dia, incluindo até o que é servido em seus refeitórios, workshops e o que é reembolsado nos almoços executivos.
Um passo inicial é incluir a regeneração na pauta principal. Regenerar a rotina das corporações e começar a conectá-las ao mapa de OKRs de John Doerr pode ser tão simples quanto trocar o pão de queijo do escritório por uma receita com queijo feito de plantas.
Para concluir, indico dois livros recentes sobre o tema. O primeiro é Regeneration: Ending the climate crisis in one generation, de Paul Hawken, um dos principais pensadores do tema regeneração. Ele aborda todas as possíveis ações, individuais e corporativas, para combater a crise climática em tempo hábil. O outro é Homo Integralis – Uma nova história possível para a humanidade, de Fe Cortez. Idealizadora do projeto Menos 1 Lixo, que transformou uma pequena ação em um impacto gigantesco no descarte de plásticos no Brasil, a autora traz uma visão possível para o futuro da humanidade, em que a palavra-chave também é regeneração (tanto do ambiente quanto das relações econômicas e sociais).
Com foco na matriz energética, o objetivo 2 aborda as já bastante conhecidas soluções eólicas e solares. Sigamos para o terceiro: consertar nossa cadeia alimentícia. O KR 3.5 aponta a necessidade de reduzir o desperdício de comida (hoje em 33%) para 10%, e o KR 3.3 demanda que a humanidade reduza em 50% a ingestão de leite e proteína animal até 2050, devendo focar proteínas alternativas menos poluentes.
O objetivo 4, de proteger a natureza, está muito ligado à alimentação. O KR 4.2, por exemplo, sugere proibir grandes redes de pesca, pois elas varrem os mares e destroem a biodiversidade.
Já o objetivo 5, de limpar a indústria, foca principalmente os setores de cimento e aço, os mais poluentes, que precisam se adaptar e inovar em processos. Hoje, para cada quilo de cimento produzido, a mesma quantidade de carbono é liberada na atmosfera. A soma dessas duas indústrias chega a quase 10% do desafio de neutralização de emissões.
O objetivo 6 é bastante direto: recapturar até 10 gigatoneladas de carbono da atmosfera, seja mecanicamente (por inovações) ou naturalmente (por reflorestamento). Não é nada fácil. Jeff Bezos, que lidera uma iniciativa que propõe antecipar em dez anos as metas do Acordo de Paris, chegou a dizer que o cenário é “assustador e muito difícil”.
A tendência é o cenário se complicar ainda mais. Primeiro, a população global tem cada vez mais acesso a produtos e serviços. Isso significa que o consumo de energia, alimentos e transporte aumentará para atender a mais 2 bilhões de pessoas nos próximos 30 anos.
Em segundo lugar, tanto as soluções para a mudança climática quanto os contratempos que podemos enfrentar, se não agirmos com rapidez suficiente, criarão novos desafios ao longo do caminho. Em 2050, os carros elétricos precisarão de 50 mil terawatt/hora por ano. A capacidade de produção atual está na metade disso.
É por isso que o autor coloca até pontos de exclamação nos dois últimos objetivos: “Inovar!” e “Investir!”. Somente com capital e pesquisa será possível chegar perto de todos os alvos necessários. Os KRs do objetivo “Inovar!” buscam reduzir o custo das tecnologias limpas e até da engenharia de retirar carbono da atmosfera.
Por último, o objetivo “Transformar o movimento em ação” possui KRs para governos, eleitores, economistas, educadores e empresas. Isso conecta ainda mais a necessidade de as corporações tomarem o mapa como um grande guia para suas iniciativas de ESG. Não é preciso reinventar a roda, todos os resultados quantitativos necessários estão lá. O que as organizações precisam agora é cascatear internamente esses desafios, apoiando e liderando o caminho nos OKRs em que seu negócio possa contribuir.
Dependendo do setor em que a empresa atua, ela consegue apoiar em grande parte os 55 KRs listados, desde ações menores, internas, até renegociação com fornecedores e comunicação com clientes.
Se é possível organizar com tanta clareza os OKRs necessários para frear a crise climática, desdobrá-los como pano de fundo no planejamento corporativo e nas ações de ESG não tem como ser complexo.
BARACK OBAMA DISSE QUE “SOMOS A PRIMEIRA GERAÇÃO a sentir os efeitos da mudança climática e a última que pode fazer algo a respeito”. Já passou da hora de agir, mas agora temos um plano.