Desenvolvimento pessoal

Por que os franceses querem parar aos 62?

O trabalho, por muito tempo e para alguns, é considerado a parte chata da vida e um meio de sobrevivência. Mas esse modelo mental e o modus operandi de trabalhar deve ser mudado
Jornalista, com MBA em Recursos Humanos, acumula mais de 20 anos de experiência profissional. Trabalhou na Editora Abril por 15 anos, nas revistas Exame, Você S/A e Você RH. Ingressou no Great Place to Work em 2016 e, desde Janeiro de 2023 faz parte do Ecossistema Great People, parceiro do GPTW no Brasil, como diretora de Conteúdo e Relações Institucionais. Faz palestras em todo o País, traçando análises históricas e tendências sobre a evolução nas relações de trabalho e seu impacto na gestão de pessoas. Autora dos livros: *Grandes líderes de lessoas*, *25 anos de história da gestão de pessoas* e *Negócios nas melhores empresas para trabalhar*, já visitou mais de 200 empresas analisando ambientes de trabalho.

Compartilhar:

A última recente tentativa de Emmanuel Macron de aumentar a aposentadoria de 62 para 64 anos causou uma das maiores revoltas dos franceses nos últimos anos. No dia 11 de fevereiro, centenas de milhares de pessoas protestaram em todo o país, aumentando a pressão sobre o governo contra os planos da Reforma da Previdência. Um mês antes, a França já tinha assistido a uma marcha de mais de 1 milhão de pessoas em protestos pelas ruas. A promessa é de “parar” o país com greves, caso o governo não retire o projeto de lei.

Sem entrar no mérito das contas de Macron e da necessidade ou não de aumentar a idade da aposentadoria para atingir um equilíbrio financeiro, a questão que levanto é outra: em tempos de aumento da expectativa de vida e de combate ao etarismo nas organizações, por que os franceses temem tanto estender seus anos de trabalho? Porque trabalho e diversão não se conversam sob a ótica dos trabalhadores franceses e, portanto, o tempo da alegria, do lazer e do descanso só pode acontecer quando não houver mais ofício na sua vida.

Para muitos, a época da aposentadoria é aquela em que finalmente você vai poder fazer tudo que o trabalho o privou de fazer durante anos. Não à toa boa parte dos jovens franceses mal ingressam no mercado de trabalho e já estão sonhando com a aposentadoria – e planejando sua vida a favor dela. Eles vivem de “sextou” e happy hours e não conseguem enxergar realização no trabalho. Segundo a Fundação Jean-Jaurès, uma espécie de think tank francês, apenas 21% dos franceses dizem que o trabalho ocupa um lugar “muito importante” em suas vidas. Ora, se não é importante, se não é legal, se não traz um pingo de realização, é natural que eu passe os meus anos sonhando com um lugar onde a palavra trabalho não vai mais existir.

Eu não consigo olhar para esse número e esse cenário sem me entristecer. Entrevistei vários profissionais mais seniores ao longo da minha carreira que me disseram ter se arrependido de dividir suas vidas rigorosamente entre o pessoal e profissional durante o maior tempo de sua existência. Ao fazer isso, eles perceberam – tardiamente – o desequilíbrio que estavam vivendo. Afinal, passaram 40 anos cultivando a felicidade apenas nos finais de semana e nas brechas das férias, esperando o dia em que iriam reverter esse quadro. Só que este momento chegou aos 60 e poucos e ali perceberam que a maior parte da vida já tinha passado e que eles ficaram apenas esperando o melhor acontecer.

Durante anos aprendemos que trabalho era a parte chata da nossa vida, o mal necessário, o meio de sobrevivência. A própria etimologia da palavra (do latim *tripalium*) remete a um instrumento de tortura usado para castigar réus condenados e escravos na Antiguidade de quase toda a Idade Média. Embora muitos anos tenham se passado provocando muitas transformações na nossa relação com os diferentes ofícios, infelizmente o conceito do trabalho como algo torturante e penoso ainda prevalece em boa parte da população.

De um lado, porque o mundo do trabalho ainda é composto por muitas empresas que cultivam hábitos antigos, muitos deles atrelados a uma era industrial, que impunha normas e regras rígidas ao trabalhador e controlava suas atividades e até seu tempo livre. O comportamento da vida industrial é ainda tão presente nos dias atuais que muitos dos termos que usamos hoje para nos referir ao universo laboral remontam a esse período da história, como homem-hora, desligamento e funcionário padrão. Em 1795, por exemplo, a França era conhecida por ter mais de 700 sistemas de medição, ao menos um para cada profissão. Certamente muitas empresas por lá ainda usam algumas dessas formas para medir e controlar seus funcionários, reforçando a ideia de que trabalho é um lugar do qual quero me ver longe.

De outro lado, está o trabalhador e sua disposição em quebrar essa lógica milenar de que trabalho é algo do mal. Para isso, é preciso uma boa dose de autoconhecimento para entender o que realmente faz brilhar seus olhos e pulsar seu coração, uma leitura crítica do ambiente de trabalho e de suas oportunidades, um interesse genuíno em aprender e reaprender e um desejo permanente de responder à sua vocação, entendo o quanto sua parte no todo impacta a sociedade.

Os dois lados – organizações e profissionais – precisam mudar o seu modelo mental e seu *modus operandi* de trabalhar. Porque a vida acontece todos os dias e não apenas no além da aposentadoria.

Compartilhar:

Artigos relacionados

Organização

A difícil arte de premiar sem capitular

Desde Alfred Nobel, o ato de reconhecer os feitos dos seres humanos não é uma tarefa trivial, mas quando bem-feita costuma resultar em ganho reputacional para que premia e para quem é premiado

Liderança
A liderança eficaz exige a superação de modelos ultrapassados e a adoção de um estilo que valorize autonomia, diversidade e tomada de decisão compartilhada. Adaptar-se a essa nova realidade é essencial para impulsionar resultados e construir equipes de alta performance.

Rubens Pimentel

6 min de leitura
Tecnologias exponenciais
O DeepSeek, modelo de inteligência artificial desenvolvido na China, emerge como força disruptiva que desafia o domínio das big techs ocidentais, propondo uma abordagem tecnológica mais acessível, descentralizada e eficiente. Desenvolvido com uma estratégia de baixo custo e alto desempenho, o modelo representa uma revolução que transcende aspectos meramente tecnológicos, impactando dinâmicas geopolíticas e econômicas globais.

Leandro Mattos

0 min de leitura
Empreendedorismo
País do sudeste asiático lidera o ranking educacional PISA, ao passo que o Brasil despencou da 51ª para a 65ª posição entre o início deste milênio e a segunda década, apostando em currículos focados em resolução de problemas, habilidades críticas e pensamento analítico, entre outros; resultado, desde então, tem sido um brutal impacto na produtividade das empresas

Marina Proença

5 min de leitura
Empreendedorismo
A proficiência amplia oportunidades, fortalece a liderança e impulsiona carreiras, como demonstram casos reais de ascensão corporativa. Empresas visionárias que investem no desenvolvimento linguístico de seus talentos garantem vantagem competitiva, pois comunicação eficaz e domínio do inglês são fatores decisivos para inovação, negociação e liderança no cenário global.

Gilberto de Paiva Dias

9 min de leitura
Tecnologias exponenciais
Com o avanço da inteligência artificial, a produção de vídeos se tornou mais acessível e personalizada, permitindo locuções humanizadas, avatares realistas e edições automatizadas. No entanto, o uso dessas tecnologias exige responsabilidade ética para evitar abusos. Equilibrando inovação e transparência, empresas podem transformar a comunicação e o aprendizado, criando experiências imersivas que inspiram e engajam.

Luiz Alexandre Castanha

4 min de leitura
Empreendedorismo
A inteligência cultural é um diferencial estratégico para líderes globais, permitindo integrar narrativas históricas e práticas locais para impulsionar inovação, colaboração e impacto sustentável.

Angelina Bejgrowicz

7 min de leitura
Empreendedorismo
A intencionalidade não é a solução para tudo, mas é o que transforma escolhas em estratégias e nos permite navegar a vida com mais clareza e propósito.

Isabela Corrêa

6 min de leitura
Liderança
Construir e consolidar um posicionamento executivo é essencial para liderar com clareza, alinhar valores e princípios à gestão e impulsionar o desenvolvimento de carreira. Um posicionamento bem definido orienta decisões, fortalece relações profissionais e contribui para um ambiente de trabalho mais ético, produtivo e sustentável.

Rubens Pimentel

4 min de leitura
Empreendedorismo
Impacto social e sustentabilidade financeira não são opostos – são aliados essenciais para transformar vidas de forma duradoura. Entender essa relação foi o que permitiu ao Aqualuz crescer e beneficiar milhares de pessoas.

Anna Luísa Beserra

5 min de leitura
ESG
Infelizmente a inclusão tem sofrido ataques nas últimas semanas. Por isso, é necessário entender que não é uma tendência, mas uma necessidade estratégica e econômica. Resistir aos retrocessos é garantir um futuro mais justo e sustentável.

Carolina Ignarra

0 min de leitura