Já foi devidamente esmiuçado e assimilado o conceito de que o cenário hoje é (e seguirá sendo) frágil, ansioso, não linear e incompreensível. É um contrassenso constatar que as empresas não são preparadas para navegar com tranquilidade pelas incertezas cotidianas. Deixamos de adotar as providências necessárias para mitigar danos e/ou aproveitar as novas oportunidades que surgirão da transformação contínua do cenário.
Há, nesse comportamento, no mínimo dois vieses cognitivos sobrepostos: o de atenuação, que nos leva a ignorar ou a minimizar o grau de incerteza de uma situação; e o de excesso de confiança, que superestima a capacidade de resolver problemas novos ou complexos.
A razão de existir de um conselho de administração (CA) é conduzir estrategicamente os negócios por uma trajetória longeva e sustentável de geração de valor, e o futuro não eximirá os conselheiros dessa responsabilidade. Porém, a certeza da magnitude e da profundidade das mudanças ocorridas no ambiente corporativo nas duas últimas décadas farão os CAs do futuro serem bastante diferentes dos atuais. Mudanças evolutivas já em curso devem continuar sendo abordadas, como a composição mais inclusiva e diversa dos CAs, inclusive considerando-se backgrounds e competências complementares dos conselheiros.
Há outros fatores em movimento no ambiente corporativo global que têm poder para exigir transformações bem mais radicais e consistentes. O primeiro é a transformação digital, muito evidenciada pela pandemia. Seus avanços possibilitarão novos modelos de negócio, que hoje nem conseguimos vislumbrar, e riscos que não podem ser ignorados pelos CAs, como um colapso de redes de comunicação, e que podem afetar até mesmo os mais inovadores e bem-sucedidos empreendimentos.
Se tais riscos já seriam suficientes para levar a uma alteração na atuação dos atuais conselhos, essa medida é reforçada pelas mudanças climáticas e pela ameaça crescente de esgotamento dos recursos naturais. Mesmo com metas consideradas tímidas pelos ambientalistas, a COP26 impôs a necessidade premente de reduzir as emissões de gases de efeito estufa e tornou imperativa a transição energética global.
Tudo o que conhecemos terá que ser repensado e refeito, trazendo novas ameaças às empresas de setores mais tradicionais. Em contrapartida, surgirão novos segmentos para a atuação empresarial. Seja para mitigar riscos ou para aproveitar oportunidades, os CAs devem provocar e instigar a inovação contínua e o reposicionamento mercadológico ágil dos negócios.
## Pressão dos stakeholders
Esses fatores, somados à possibilidade de novos eventos disruptivos, colocam em evidência os dois outros elementos da sigla ESG: social e governança. Desde a crise de 2008 no sistema financeiro global, o ativismo dos investidores institucionais na pauta ESG vem se ampliando, inclusive no Brasil, e isso afeta os conselhos. Entre 2018 e 2020, a BlackRock votou contra a eleição de 1,2 mil conselheiros e contra a reeleição de outros 5,1 mil por fatores ligados à governança e à sustentabilidade.
Esses temas colocam toda organização sob escrutínio de seus stakeholders, tendência que deve se intensificar. [Estudos recentes, como o de Sharon French](https://www.etf.com/publications/etfr/understanding-esg-investing?nopaging=1), demonstram que, nas próximas décadas, US$ 30 trilhões de riqueza serão transferidos para as mãos dos millennials e que, nos próximos dez anos, 66% do poder de compra nos EUA será controlado por mulheres. Sendo dois dos segmentos populacionais mais atentos aos impactos da má gestão corporativa em ESG, será inevitável que os CAs – orientados por objetivos estratégicos de expansão empresarial e conquista de novas fatias de mercado – contemplem as expectativas dos stakeholders como investidores e como consumidores nessa temática.
Aos poucos, os conselheiros estão mais conscientes da necessidade de transformar o atual modelo de atuação dos CAs para fazer frente ao mutante cenário do século 21 e investem mais tempo no debate de temas estratégicos e na construção de uma visão estratégica prospectiva dos negócios. É o que mostra a segunda edição da pesquisa [“Conselheiros: dedicação de tempo dentro e fora das salas de conselho”](https://bettergovernance.com.br/2021-11-09-Conselheiros_Pesquisa_Dedicacao_de_Tempo_2.pdf), que entrevistou 194 conselheiros. Os dados indicam que, nos últimos dois anos, houve evolução em prol da estratégia: em 2021, apenas 17% afirmaram dedicar mais de um terço de seu tempo à gestão (eram 37% em 2020); 34% dizem olhar mais para o passado do que para o futuro (46% em 2020) e 89% passaram a realizar reuniões com foco exclusivo em planejamento estratégico (78% em 2020).
## Passado ainda presente
Mesmo que a transformação seja gradual, os conselheiros vêm se empenhando em acelerar o ritmo. Do ponto de vista comportamental, porém, boa parte dos conselhos (e seus integrantes) permanecem reféns de uma dinâmica conservadora, mantendo processos, rotinas e práticas implementadas desde o século passado. O processo decisório ainda segue um ritmo ritualístico – lento e inflexível – que não cabe mais no cenário do século 21.
Não bastassem os ritos cristalizados, há a tendência de se homogeneizar perspectivas, sem grande abertura ao contraditório e à diversidade de opiniões. E de rejeitar abordagens mais inovadoras, justamente aquelas que poderiam conduzir os negócios a melhores desempenhos futuros. Em [A Caixa-Preta da Governança](https://www.amazon.com.br/caixa-preta-governan%C3%A7a-edi%C3%A7%C3%A3o-ampliada/dp/6556700088/ref=sr_1_5?adgrpid=79572090165&gclid=CjwKCAjw0a-SBhBkEiwApljU0tVN_c5wSZf2XtMprywbMtALBZR8ReiibEihGwNDWP19YViFrb_UqhoCqUsQAvD_BwE&hvadid=426016286792&hvdev=c&hvlocphy=1001650&hvnetw=g&hvqmt=e&hvrand=1130068740902450108&hvtargid=kwd-328928622372&hydadcr=5658_11235231&keywords=a+caixa+preta+da+governan%C3%A7a&qid=1649165510&sr=8-5&ufe=app_do%3Aamzn1.fos.6d798eae-cadf-45de-946a-f477d47705b9), relato casos de rejeição de vozes dissonantes que chegam ao limite do bullying. Na época em que escrevi o livro, César Souza disse, em entrevista, que esse “bullying” é um sistema de pressão para desestabilizar quem pensa diferente, principalmente se não for do mesmo setor da empresa.
Tais comportamentos não estão restritos aos conselhos de empresas brasileiras. Guerra, Barros e Santos fizeram, em 2020, pesquisa com 340 conselheiros de 40 países, dos quais 60% disseram que a reação negativa frente a ideias inovadoras varia entre “muito grande” e “média” nas reuniões de seus CAs; 82% deles afirmaram que as ideias tendem a ser homogêneas entre seus pares, o que, para 65% dos entrevistados, resulta em propostas de soluções menos criativas e inovadoras.
Embora admitam o alto grau de homogeneidade de pensamento e de falta de abertura ao novo, 55% dos entrevistados veem o desempenho de seus conselhos como “muito bom” e “bom” e a satisfação com o processo decisório é “média” ou “alta” para 83% deles. A autopercepção positiva não impede que 42% sintam uma atmosfera tensa nas reuniões. A dinâmica e a efetividade do processo decisório são afetadas por outros fatores negativos, como fadiga (32%) e rotinas inflexíveis (60%).
Para mitigar os efeitos nocivos, a abordagem comportamental disponibiliza mecanismos que ampliam a diversidade de alternativas de decisão, como checklists ou desenvolvimento de cenários, e outros específicos para evitar excesso de otimismo – como pré-mortem, o advogado do diabo e a interrupção da reunião. Entretanto, o estudo de Guerra, Barros e Santos mostra que esses recursos raramente são usados para aprimorar a dinâmica dos conselhos.
Surge outro contrassenso: os conselheiros estão conscientes de que a inovação é um direcionador estratégico para gerar valor no médio e longo prazos, mas utilizam muito pouco o instrumental disponível para dinamizar o processo decisório. E quando a mais alta instância de liderança estratégica mantém uma atitude fechada ou pouco afeita ao novo, é válido questionar se a visão de negócios construída por ela é inovadora. E mais: esses conselhos conseguirão, de fato, manter no radar a relevância crescente das questões de ESG para assegurar a geração sustentável de valor? O atual espírito do tempo requer que os conselheiros pensem, ajam e decidam como se estivessem à frente da estratégia de uma startup ou de uma scaleup.
## Métodos de melhoria de decisões ainda não são comuns
*Mesmo com ferramentas para melhorar tomadas de decisão, elas são pouco adotadas pelos CAs*
![Métodos de melhoria de decisões ainda não são comuns](//images.ctfassets.net/ucp6tw9r5u7d/2snKOlLfa8aOP4s6yjRGHw/18067ddcc18f951f5c8d8df3e902484a/grafico.png)
## O conselho do futuro
Para se adequar ao presente e avançar para o futuro, os CAs terão que adotar uma dinâmica mais aberta, flexível e ágil, com reuniões mais frequentes e relacionamentos mais próximos. Os conselheiros terão que redobrar seus esforços para conseguir manter a boa prática de deixar “nose in, fingers out”. Isso significa aplicar o arsenal comportamental para ganhar dinamismo nas interações entre os conselheiros ou do conselho com os gestores.
Vai além: uma transformação evolutiva mais profunda e consistente inicia-se quando o CA é protagonista na definição do propósito da organização. Essa perspectiva só se constrói quando há mais proximidade com o negócio e com seus colaboradores, e com o exercício constante de escuta ativa de todas as demais partes interessadas. A interação mais próxima e mais frequente exigirá dos conselheiros, além das competências técnicas, soft skills para apoiar esses novos desafios comportamentais.
Além disso, ao exercer duas outras atribuições essenciais – aconselhar e, ao mesmo tempo, supervisionar os gestores – não será mais viável assumir apenas uma postura cética e crítica. É preciso que a diretoria veja o CA como um órgão gerador de valor, mas sem prejuízo ao seu papel de supervisão. Mais do que nunca é importante a abertura ao diálogo, a perspectivas inovadoras e a críticas construtivas, mindset esperado de conselheiros (e de todos os líderes corporativos).
Pode parecer contraintuitivo, mas essa revolução comportamental deve ser suportada e promovida pelas tecnologias digitais, indo além dos portais corporativos que hoje agilizam o acesso e o intercâmbio de informações e oferecem mais transparência e eficiência ao processo decisório dos membros de órgãos de governança. O aumento do realismo e o barateamento de equipamentos levarão as salas dos conselhos para o metaverso, por exemplo. E, ao eliminar barreiras geográficas e linguísticas, a diversidade nos conselhos será ampliada. Seus membros participarão de reuniões em qualquer lugar do mundo, falando sua língua nativa, que será traduzida simultaneamente pela plataforma.
Outro avanço que beneficia os CAs é a inteligência artificial (IA), que pode agilizar a análise prévia do processo decisório, etapa que consome muito tempo e energia. E o machine learning transformará a atuação dos conselhos ao gerar aprendizados das decisões anteriores, reduzindo vieses cognitivos que possam interferir na melhor decisão.
Alguns questionamentos são fundamentais. Seu CA está preparado para agir em um cenário de transformação contínua? E para uma dinâmica mais fluida, aberta e muito mais ágil? Desenvolve a habilidade de usar protocolos e tentativas até decidir qual solução irá prevalecer? Dedica tempo a questões de impacto futuro? Está qualificado para monitorar avanços tecnológicos e traçar cenários futuros? Está apto a avaliar estratégias de inovação, como trade offs entre desenvolvimento interno ou open innovation?
Se a maioria das respostas foi negativa, fique alerta: manter as ideias do século 20 e esperar resultados do século 21 definitivamente não conduzirá os conselhos de administração para o futuro.
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